quarta-feira, 30 de abril de 2008

Preces atendidas - 26

Zadie Smith

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"Deus, Pátria, Autoridade", reloaded

Ontem passou no TMG o filme "Deus, Pátria, Autoridade". Trata-se de um documentário de Rui Simões, produzido em 1975 a partir de imagens de arquivo. E que pretende ilustrar a marcha da história no Portugal do séc. XX, especialmente a partir do declínio do Estado Novo. O título advém da invocação da célebre trilogia durante um discurso de Salazar, em 1936. Este registo constitui uma pérola da propaganda difundida por círculos ligados ao PCP, durante o PREC. O conteúdo programático não deixa lugar a dúvidas. Lê-se como um livro aberto. A ganga marxista está lá toda: a luta de classes, onde o "povo" aparece sob a forma de anjos imaculados arrotando palavras de ordem e palitando os dentes depois de uma sande de coiratos; a "burguesia" como uma galeria de personagens sinistras, fúteis, sádicas, que vivem para explorar o "bom selvagem" proletário. Os mesmos que detêm os "meios de produção" e tomaram conta da superestrutura política e ideológica (o Estado Novo e o "façismo"). Os mesmo que sustentaram uma guerra colonial destinada a assegurar os "lucros" de meia dúzia de exploradores e colonialistas sanguinários (neste ponto é curioso estabelecer uma comparação entre o rigor e a competência do documentário "A Guerra", de Joaquim Furtado e esta peça propagandística). Uma fábula onde só há os "bons" e os "maus". E com um final feliz, para sossego das consciências: a "evidência" da superação do materialismo dialéctico, o créme de la créme da vulgata marxista. Como? Pois bem, através do "fim da luta de classes", da marcha inexorável da história, conduzida na altura pela V Divisão, os governos do General Vasco Gonçalves e um vasto lumpen ululante, devidamente pastoreado pelos factotum comunistas. Era este o cenário que se perfilava no momento. Uma peça para um único personagem, "o povo escolhido", isto é, o proletariado. Formado pelo operariado fabril, intelectuais "progressistas", camponeses pobres", assalariados rurais e alguns burgueses transviados, depois de feito o indispensável acto de contrição. Neste ponto, a pequena-burguesia foi convenientemente silenciada, pois esperava-se que fosse a reboque dos actores privilegiados da História. Também a saga reivindicativa que hoje subsiste nos meios ligados ao PCP: os culpados são sempre os outros, o ressabiamento, a menoridade cívica, a endogamia. Para os comunistas, o uso das capacidades próprias e a iniciativa individual como factores de criação de riqueza são olhadas com desprezo; a essência dos indivíduos é determinada pela sua existência social, enquanto actores colectivos, convenientemente ensaiados para um só palco, a História pré-determinada e finalista. Depois, há pormenores deliciosos, como a desconfiança perante a autogestão, vista como um perigoso desvio pela ortodoxia pró-soviética. Ou os momentos em que é dada a voz ao bom povo, que papagueia um guião tosco e "normalizado", generosamente fornecido pelos agentes do aparelho comunista e engages avulso em voga na altura. O expediente mais não é do que uma forma insidiosa de paternalismo, ideologicamente orientado. Por último, a ira de um agricultor ribatejano, depois de lhe terem tirado a posse da sua terra, após uma questão judicial. Se a equipa de realização estivesse mais atenta, daria conta de que os desabafos perante as câmaras deste João Semana têm a ver unicamente com uma disputa de propriedade, cujo direito ele invoca urbi et orbi. Ora, segundo os comunistas, a propriedade é um roubo, uma indignidade. Enfim, distracções... Esta obra é, digamos, um poderoso registo acerca da cartilha marxista-leninista aplicada com fervor à revolução em curso em 1975. Está lá tudo o que é preciso saber sobre uma doutrina e uma prática política que quase triunfaram em Portugal. Não sem alguma ironia, um filme com propósitos documentais acabou por ser o melhor testemunho do ambiente político e ideológico que o determinou.

terça-feira, 29 de abril de 2008

Belisquem-me, por favor!

Atenção, senhores passageiros! É favor apertar os cintos! A aterragem será difícil e imprópria para pessoas mais sensíveis. Último aviso: preparem-se para o embate. Aí vai: "PCP acusa Governo de «subestimar» problema da «insegurança»". O "C" da sigla partidária não está a mais nem é Paulo Portas o acusador, mas o gauleiter Jerónimo, el rojo. Não acreditam? leiam aqui. E mais não digo.

Uma música para uma vida



Atmosphere, Joy Division, (edição original:1980, em formato EP)

Imposto sobre rodas

A imaginação governamental ao serviço da extorsão fiscal continua em alta. Um bom exemplo é a da entrada em vigor do regime fiscal dos veículos automóveis. Refiro-me à substituição do imposto Municipal sobre Veículos pelo famigerado Imposto Único de Circulação. Como se sabe, o imposto só era exigível, na prática, para os veículos que efectivamente circulassem na via pública. Agora, o contribuinte tem que liquidar o imposto relativo a todos os veículos registados em seu nome. Estejam ou não na sua posse. Mesmo que vendidos ou entregues para sucata, desde que a titularidade se mantenha. Claro que, milhares e milhares de cidadãos, ao consultarem a situação fiscal do(s) seu(s) veículo(s), são confrontados com desagradáveis surpresas. Mormente, aí constarem viaturas que foram vendidas há largos anos, sem que tenha havido mudança do titular. Ou deixadas na sucata e para as quais nunca foi pedido o cancelamento da matrícula. Ora, para todos os efeitos, a liquidação do imposto terá que ser feita até ao final do mês correspondente à matrícula original do veículo a que diz respeito. Como se poderão, então, fazer cessar as situações anómalas atrás descritas? Há várias possibilidades:
1º O veículo foi vendido. Poderá, nesse caso, ser solicitada a sua apreensão administrativa junto da IMTT (ex DGV), mediante a entrega do modelo 1406. Ou então, de preferência, no portal Automóvel Online, o que é possível a partir de hoje. Recomendo esta última opção, pois são dispensados alguns itens, é simples, prática e imediata, podendo ser obtido um comprovativo no acto. Não é demais salientar que o pedido tem efeitos suspensivos relativamente aos prazos de liquidação do imposto, até à decisão sobre o pedido. Altura em que deixará de ser exigido, naturalmente, se a resposta for afirmativa. Para entrar, basta introduzir o NIF e o código de acesso às declarações electrónicas via internet. Em alternativa, se o veículo foi vendido até 2005 e desde que disponham de uma cópia da declaração de venda com os elementos do comprador, poderão pedir o registo compulsivo em seu nome, embora pagando as despesas respectivas.
2º O veículo foi (ou irá ser) entregue para desmantelamento. Ora, a partir de 2000, este processo tornou-se possível em operadores autorizados. A declaração emitida, no acto, por estas entidades certificadas, passou a bastar para ser pedido o cancelamento da matrícula. A lei previu um período de adaptação, até 2003, em que a declaração seria facultativa, tornando-se obrigatória depois dessa data. O que resultou no seguinte: se o veículo não foi sujeito a inspecção periódica até 2003, basta então pedir o cancelamento da matrícula, juntando uma declaração em conforme o veículo foi demolido e os documentos do veículo. Na hipótese de ter havido uma inspecção depois dessa data, o cancelamento só será aceite mediante declaração da oficina que prodeceu ao desmantelamento, constante da lista autorizada. Neste caso, se por qualquer motivo o veículo acabou numa sucata, ou foi demolido para peças, ou se extraviou, resta uma única solução: pedir a apreensão administrativa do veículo. De preferência, via internet, no site mencionado. Voilá!

Navegar é preciso

O 25 de Abril vale também pelo simbolismo que carrega consigo. Assim, trouxe também uma alteração editorial neste blogue. Nada mais nada menos do que o regresso da caixa de comentários. Os quais, como poderão, de resto, os leitores verificar, foram suspensos de há três meses para cá. As razões que invoquei na altura mantêm-se. Mas a elas se sobrepôs a evidência de que a blogosfera é um espaço interactivo. O que quer dizer que, se os resultados não forem os esperados, voltará o modelo anterior. Não é um "disclaimer", mas é quase. Obrigado.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

A jangada de plástico

Assisti ao inesquecível espectáculo de Carlos do Carmo no Teatro Municipal da Guarda, assinalando os três anos desta instituição, no passado dia 25. A páginas tantas, o cantor fez uma referência a José Saramago, a propósito de uma colaboração pontual para um fado recentemente gravado. Grande parte do público aplaudiu a alusão. Vi mesmo pessoas de reconhecido mérito intelectual a fazê-lo com um entusiasmo semelhante ao dos participantes nos congressos do PCUS, nos tempo de Estaline e Brejnev. É claro que fiquei em silêncio. Não gosto do homem e não gosto do escritor. A imagem do ex director do DN a denunciar e sanear jornalistas, por "delito de opinião", consegue sobrepor-se a qualquer juízo de mérito que possa fazer de Saramago. As bujardas estalinistas e o neo realismo de conveniência que foi cultivando são simples decorrências de uma intolerância e de um ressabiamento sem paralelo na literatura portuguesa. Mesmo assim, poderia perfeitamente reverenciar a sua obra. Mas não o faço. Céline, Garcia Marquez ou até mesmo Manuel da Fonseca, só para dar alguns exemplos, posicionaram-se politicamente em lugares que não são os meus. No entanto, não deixarei nunca de reconhecer o seu talento de grandes escritores. No caso de Saramago, tal é impossível. Como escritor, é claramente medíocre. Escreveu dois ou três livros com algum interesse. As questões da modernidade passaram-lhe ao lado. Quis criar romances que fossem "laboratórios do apocalipse", mas ficou-se pela repetição pífia do mesmo desenho ficcional: o herói, um alter ego do autor que só muda de nome, é invariavelmente um "homem comum" com tiques sofistas. Corporizando uma dilaceração ideológica que o autor transporta de uns livros para os outros, mais cedo ou mais tarde encontra uma musa omnisciente, uma heroína guerreira saída das estampas da propaganda da 1ª república. Esta acaba sempre por salvar o nosso herói da obscuridade e da hesitação. Uma fábula para um whisful thinking preguiçoso e repetitivo. Por mim, vale mais uma simples crónica do Lobo Antunes do que a obra completa deste gongórico dos tempos modernos, levado ao colo por certa intelligentzia ibérica.

Momentos Zen - 39

Para passar pela poeirenta confusão do mundo, deves escolher a estrada principal
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domingo, 27 de abril de 2008

A arte da guerra

Metade do recém constituído Governo de Zapatero é integrado por mulheres. Correu mundo esta fotografia de Carme Chacon, Ministra da Defesa. Daniel Oliveira e os bloquistas-caviar, em geral, exultaram com este enorme passo em direcção a um futuro radioso, em que haverá quotas para tudo, menos para o mérito. Não sei se em Espanha também existem quotas, como cá, no preenchimento de cargos políticos. Se bem me recordo, no cinema americano existia um sistema desses, até aos anos 80. A coisa era assim: tinham que aparecer nos filmes x mulheres e x pretos. Quem não cumprisse, seria penalizado. Claro que, no caso espanhol, ou onde quer que seja, se as senhoras forem competentes, se forem as melhores escolhas, rejubilo com a decisão. Ao invés, se as nomeações só servirem para a fotografia, para os arredondamentos eleitorais, a coisa é preocupante. Principalmente para as mulheres. Todavia, estou curioso em relação às próximas nomeações de Zapatero. Será que vai convidar um transexual? Um parzinho de gays recém-casados? Um bissexual com ímpetos bestiais? Um voyeur tipo pestaninha? Um onanista fanático por aeromodelismo? Um columbófilo hermafrodita? Estarei atento.

Nota: durante a minha recruta em Mafra, na EPI, esta imagem estaria no plano da ficção científica. Especialmente na parada, com uma G3 às costas e um sol abrasador a impôr as regras.

sábado, 26 de abril de 2008

TMG, três anos


O Teatro Municipal da Guarda acabou ontem de cumprir três anos de existência. Para esta longevidade, contribuiu um cúmulo de factores: a tenacidade, a vontade política, a reunião de meios, a arquitectura, o trabalho, a ambição, uma gestão cuidada e reivindicativa, entre outros. E um nome por trás de cada um deles: Américo Rodrigues. Todos tornaram possível que uma utopia se tornasse realidade. Que um local de cultura se tenha afirmado, definitivamente, como um sinal distintivo da cidade e região. Parabéns.

Varrer a tralha

A candidatura de Manuela Ferreira Leite é uma boa notícia para o país. Só por si, o sinal de que o PSD está a balbuciar os primeiros passos para sair do pântano onde a inimaginável trupe de populistas comandados por Menezes o quis enfiar. O qual, se lhe restar um pingo de bom senso, voltará, sossegadinho, para o seu limbo autárquico. Rio seria o melhor candidato. Mas ainda não chegou a sua vez. Restam ainda dois "cavalos" na corrida. De um lado, o eterno Lopes. Em qualquer país do hemisfério ocidental, já se teria retirado da política, tornando-se um empresário de sucesso da "noite" e estrela das revistas côr-de -rosa, segmento rasca. Porém, em Portugal abusa-se da compaixão com a mediocridade e condena-se ao ostracismo o mérito. É sina. Na linha de partida está igualmente Passos Coelho. O tal "jovem" que cedo foi velho demais. Mesmo para querer parecer um "velho" a fazer de "novo". É o produto perfeito das fornalhas de nulidades criadas nas juventudes partidárias: só aprendem os vícios; uma simples ideia que saia das suas cabeças é uma mera probabilidade estatística. Essas escolas de habilidosos estéreis conhecia-a bem de perto, lutando contra elas durante as minhas lides associativas na Faculdade de Direito de Lisboa. Vendo bem, uma perda de tempo. O recrutamento dos políticos em Portugal atingiu níveis de qualidade de tal forma baixos que põe em risco a sobrevivência do próprio regime. Para animar a banda, só faltou mesmo avançar o impagável Jardim.

Stalker

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Lido

"Deixei de frequentar «cerimónias comemorativas» de Abril. Sessões de reprise, quase sempre organizadas por pessoas com saudades de si próprias ou por autarcas com escassez de imaginação. Transformadas tantas vezes em dever. Repetindo, ano após ano, as mesmas palavras de ordem, as mesmas canções, as mesmas histórias, o mesmo cravo vermelho ao peito que a todos fica bem"

Rui Bebiano, no "A Terceira Noite"

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Chamem a polícia!


Muitos dos leitores mais frequentes deste blogue devem estar admirados com a publicação deste anúncio. Não é caso para isso. Como já tive ocasião de esclarecer num comentário deixado na notícia do "Público", nunca iria a uma manifestação destas. Porque não perfilho a sua fundamentação teórica, os desenvolvimentos violentos associados e, de um modo geral, a violência como argumento político-ideológico. E até porque, já agora, a malta dos djambés é algo repetitiva e previsível. Sabe-se que a lei regulamentadora do direito de manifestação - Decreto Lei nº 406-74, de 29 de Agosto - é claramente arcaica, inconstitucional e necessitada de substituição urgente. Pelas razões que aqui aduzi. Porém, não é dela que agora me ocupo, mas sim de possíveis actos de vandalismo ou de confrontação com polícias ou civis. Foi esse o cenário do ano passado e que, espero, agora não se repita, na suposição de que as partes envolvidas tenham retirado os devidos ensinamentos. Mesmo assim, em defesa deste tipo de acções, gostaria de acrescentar o seguinte:
Esta é uma manifestação anti-autoritária e não anti-policial, ou anti-autoridade. São coisas muito diferentes, como se sabe.
Ao contrário do que afirma Paulo Pinto Mascarenhas, no blogue "Atlântico", não me parece que se deva "punir" o que ele considera ser a extrema-esquerda associada a estas flash mobs, da mesma forma que foi punido Mário Machado. Convem desfazer a confusão. O líder dos skinheads foi condenado pela prática de vários crimes. Se os manifestantes desta acção de rua praticarem algum ilícito, deverão ser igualmente sujeitos à acção penal. A lei é igual para todos. Outra coisa, bem diferente, é a motivação ideológica do extremismo de uns e de outros. Será mais merecedor de legitimidade pública o apelo à violência racial ou a denúncia pacífica, ainda que exaltada, dos abusos cometidos pelas autoridades policiais? A resposta é bem clara, como devem supor.
Tenho lido várias reacções na blogosfera e fora dela, sobre este assunto. Vou-me ocupar só de dois tipos de comentários: os do tipo securitário e os que advêm de arcaismos culturais. Os primeiros, já se sabe, resumem-se em duas frases: "querem atacar a polícia, esta malandraje? não pode ser, queremos é mais polícias na rua e menos criminosos à solta!" Os segundos atestam uma realidade um pouco mais complexa. Mas que se sintetizam, grosso modo, naquele fantástico naco de retórica bem português "olha olha, vão mas é trabalhar, malandros!".
Numa sociedade onde se cultiva o ócio e o hedonismo, as interjeições mencionadas já começam a ser anacrónicas. Mais ainda para discípulos de La Boétie, o grande amigo de Montaigne e autor do "Discurso da Servidão Voluntária", como é o caso do escriba. Os queixosos que tenho lido lamentam-se que têm que se levantar cedo para ir trabalhar, ao contrário destes "calões e vadios". Pergunto: e então, não gostam do que fazem? Se gostassem, não se queixavam! Os regimes mais sinistros de que há memória começaram assim, com o ressentimento do homenzinho comum em relação àquilo que é incapaz de compreender ou sequer de imaginar: precisamente que há mais vida para além da vidinha.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Nuvem

pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade...
Sintra: vendedor de bifanas em greve de fome há dez dias junto à câmara municipal
pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade...
Ozono mata, confirma estudo
pensar com delicadeza, imaginar com ferocidade...
Frente Comum pondera manutenção de greve
Parlamento discute a 23 de Maio redução do IVA de 21 para 20 por cento
p e n s a r c o m d e l i c a d e z a, i m a g i n a r c o m f e r o cidade...

(colagem a partir de um verso de Herberto Helder)

terça-feira, 22 de abril de 2008

Man Ray revisited

Tentativas para um Regresso à Terra



O sol ensina o único caminho
a voz da memória irrompe lodosa
ainda não partimos e já tudo esquecemos
caminhamos envoltos num alvéolo de ouro fosforescente
os corpos diluem-se na delicada pele das pedras

falamos rios deste regresso e pelas margens ressoam
passos
os poços onde nos debruçamos aproximam-se
perigosamente
da ausência e da sede procuramos os rostos na água
conseguimos não esquecer a fome que nos isolou
de oásis em oásis

hoje
é o sangue branco das cobras que perpetua o lugar
o peso de súbitas cassiopeias nos olhos
quando o veludo da noite vem roer a pouco e pouco
a planície

caminhamos ainda
sabemos que deixou de haver tempo para nos olharmos
a fuga só é possível dentro dos fragmentados corpos
e um dia... quem sabe?
chegaremos

Al Berto

Playlist da casa (9)


Eis um trabalho singular na discografia de J.M. Que com ele quis prestar um tributo ao célebre contrabaixista. Uma obra notável, que inclui a participação, como músicos convidados, de Herbie Hancock, Wayne Shorter, Jaco Pastorious e Peter Erskine.

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segunda-feira, 21 de abril de 2008

O amigo da onça

Ainda mal tirou o pó à secretária, nas novas funções de presidente da "Frente Tejo" - uma empresa municipal criada para a recuperação da zona ribeirinha de Lisboa - José Miguel Júdice acaba de propor a fusão do PSD e do PS! Aconteceu, no meio das habituais boutades, em declarações à TSF e DN. A ideia seria os sociais-democratas de ambos os partidos juntarem os trapinhos. Deixando de fora a tralha esquerdista no segundo e os liberais(?) e populistas no primeiro. Mas por uma questão de clareza, convem colocar a hipótese, por analogia, nos termos do direito societário. Ora, o senior partner da advocacia lusa não esclarece se se trata de uma fusão proprio sensu ou de uma cisão. Portanto, seria interessante verificar se, no primeiro caso: a) haverá uma transferência global dos "activos" de um partido para outro; b) ou essa operação se faz, de raiz, para um novo, a criar para o efeito. Ou então, na segunda possibilidade: a) se ambos destacam parte do seu "património", para com ele formar outro partido; b) se ambos se dissolvem, dividindo os seus activos e com eles constituem novo partido; c) quer num caso quer noutro, se é para dividirem o que fica em fatias e fundi-las com organizações políticas já existentes ou com partes destas. Em qualquer caso, o negociador e mentor seria, como já adivinharam, o transumante causídico. Por sua vez, os honorários por si cobrados consistiriam na criação de caminho livre para a constituição de um partido por si apadrinhado. E onde Santana Lopes teria lugar cativo, por supuesto. E quem sabe se Menezes, como médico de campanha. Como esclarece João Tunes, este arremedo filantrópico aparece «por amor de quê? Júdice explica: para dar espaço a um “partido da direita”. Do género: “levem a tralha que sobra do PSD e deixem-me formar o meu partido”. É no que dá dar a mão a gente desta, apanham-na e já se estão a agarrar aos pés.»

A mentira em edição de luxo

Julgava eu que, do lado dos comunistas, já nada me podia surpreender. Incluindo, sobretudo, a falsificação da História. Eis que deparei, agora mesmo, com algo que supera a mais febril alucinação: o anúncio de uma edição especial do "L' Humanité" - o órgão oficial do PC gaulês, como é sabido - intitulada "Mai 68, le grand tournant" (Maio de 68, a grande viragem). Contem 132 páginas, abundantes declarações de estudantes e assalariados envolvidos, e faz-se acompanhar de um DVD. Repare-se no hirsuto manifestante, quiçá após um tirocínio na Sierra Maestra, tentando assemelhar-se aos seus heróis. Além disso, desfila (bem) acompanhado por uma moçoila que, por contraste, parece saidinha de um filme do Godard. Só falta um "pormenor" nesta imagem antológica: empunhar o protagonista um puro habano, em vez de uma bandeira.
Os comunistas estão na fase de tomar como seus todo o tipo de ícones que sinalizem movimentos sociais e políticos. É um autêntico processo de usurpação. Neste caso, a história é conhecida. O Maio de 68 nasceu em meios estudantis politizados, em grande parte fora dos circuitos marxistas. Pretendia-se uma forma nova de combate político, pela afirmação de uma liberdade integral, da espontaneidade, da imaginação. Os meios sindicais ortodoxos, controlados pelo PCF, cedo perceberam que esta não era a sua luta. Que passava já só pela adesão à sociedade de consumo e nunca por outro tipo de reivindicações. E, naturalmente, só por razões tácticas a elas pareceram aderir. O que quer dizer que, só em meios operários ligados ao anarco-sindicalismo, ou onde a influência dos comunistas era residual, o apoio e a participação nas revoltas teve alguma expressão. No final, conta-se que foram mesmo os comunistas que traíram a "revolução", tudo fazendo para que definhasse um movimento por definição inorgânico, não controlável. Entregando-o aos pés de de Gaulle. Esta estratégia já dera frutos durante a Guerra Civil Espanhola, com a jovem República e, sobretudo, com os anarquistas catalães, repetindo-se aqui. Portanto, esta apropriação de um movimento de contestação sem paralelo no Ocidente é tão incongruente como sinistra. Como se os algozes se quisessem desculpar, tomando como seu o discurso das vítimas. Por outro lado, nos tempos que correm, o comunismo não se poderá descredibilizar unicamente por via política ou doutrinal. Esse trabalho competirá à História e só a ela.

Columbine foi há 9 anos

Ontem, completaram-se nove anos do massacre do Liceu de Columbine: os alunos Eric Harris e Dylan Klebold, com 18 e 17 anos, entraram armados na escola e mataram doze colegas. Em seguida, suicidaram-se, deixando uma nota que mais parece um tenebroso "disclaimer": "não culpem ninguém pelos nossos actos. É desta forma que queremos partir". Com base neste trágico acontecimento, Michael Moore realizou aquele que, para mim, é o seu mais brilhante documentário: "Bowling for Columbine".
Coincidência ou não, o pré-candidato democrata Barack Obama afirmou recentemente, durante a campanha para as primárias na Pensilvânia, que o uso das armas é um símbolo de uma cultura arcaica, associada ao fanatismo religioso e à xenofobia. Segundo as sondagens, estas declarações caíram mal no eleitorado rural branco daquele Estado, que irá penalizá-lo fortemente na consulta. Saindo a ganhar Hillary Clinton. Desde o início do processo eleitoral das presidenciais norte-americanas, tenho aqui manifestado a minha simpatia pela candidatura desta. Pelas razões que já apontei, mas, sobretudo, porque vários sinais no programa de Obama apontam para um messianismo perigoso e, a nível externo, algum isolacionismo, a eliminação de referências à Europa como parceiro estratégico indispensável. Ao contrário de Mc Cain, por exemplo. Todavia, estas suas declarações, a propósito do uso de armas, sem restrições, não podiam ser mais apropriadas e justas.

domingo, 20 de abril de 2008

Stalker

Horto



homens cegos procuram a visão do amor
onde os dias ergueram esta parede
intransponível
caminham vergados no zumbido dos ventos
com os braços erguidos - cantam
a linha do horizonte é uma lâmina
corta os cabelos dos meteoros - corta
as faces dos homens que espreitam para o palco
nocturno das invisíveis cidades
escorre uma linfa prateada para o coração dos cegos
e o sono atormenta-os com os seus sonhos vazios
adormecem sempre
antes que a cinza dos olhos arda
e se disperse
no fundo do muito longe ouve-se
um lamento escuro
quando a alba se levanta de novo no horto
dos incêndios
prosseguem caminho
com a voz atada por uma corda de lírios
os cegos
são o corpo de um fogo lento - uma sarça
que se acende subitamente por dentro.

Al Berto

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Jornalismo de sarjeta

Conhecem-se os expedientes utilizados pela maioria da imprensa para forçar o sangue, o suor e a lágrima. Nem falo, sequer, daquela a que se convencionou chamar de sensacionalista. Essa já nada esconde, seja o resultado, sejam os artifícios. Não! Refiro-me a um nicho particular, com alguma expressão no nosso país: a imprensa local. E dentro desta categoria, àquela que, quase sempre, concilia o proverbial paroquialismo e o recurso aos métodos da pura propaganda. Soube hoje de uma situação que ilustra perfeitamente esta tese. Em conversa informal, um colega de profissão comentou um caso em que tinha intervindo, relativo a uma rixa entre vários estudantes do secundário, num estabelecimento nocturno da Guarda. Que incluía queixas cruzadas e vários pedidos de indemnização. Uma vez que os envolvidos provinham de uma faixa social, digamos, "importante", o caso adquiriu alguma notoriedade mediática. De tal forma que, segundo me informou, foi contactado insistentemente por um jornal local - se insistirem muito, digo o nome - para um pequeno depoimento sobre, imaginem, a violência nas escolas. Exactamente. Não acreditam? Pois é mesmo verdade.

Graffitis - 30


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quarta-feira, 16 de abril de 2008

A cidade e as serras

Lembram-se ainda da figura do coleccionador? Esse mesmo, um tipo meta-humano que prospera na blogosfera. E cujas carências básicas ao nível cultural se escondem atrás de um vertiginoso up to date de informação acessória. Já recomendava Eugénio de Andrade: não colecciones dejectos / o teu destino és tu. Ele lá sabia porquê. Entretanto, abriu mais uma loja FNAC em Viseu. Este tipo de estabelecimentos, juntamente com os índices dos livros, a literatura promocional que acompanha os Cds, os DVDs, os recortes noticiosos e o Wikipédia, é o habitat natural do coleccionador. Mas nada de confusões. Claro que o panorama da oferta de bens de consumo na área da cultura, em Portugal, se pode dividir entre o pré e o pós FNAC! Claro que, depois da Fnac, nada voltou a ser como era. Claro que as vantagens para o público são inúmeras. Especialmente em localidades onde nem sequer há uma livraria ou uma loja de venda de audiovisuais dignas desse nome! Mas não é disso que aqui se trata. Quando vou a uma FNAC - tenho uma predilecção pela loja do Fórum de Almada, a mais cuidada e diversificada, em termos de oferta, na área da Grande Lisboa - levo sempre na cabeça uma lista de aquisições pré-definida. Deixando uma margem de 1/3 para os amores imprevistos, à primeira vista. Os coleccionadores, pelo contrário, vejo-os em êxtase contínuo, zombies capazes de um orgasmo múltiplo a qualquer momento...
Voltando ao tema, recebi um email anunciando a abertura da tal loja no Palácio do Gelo, em Viseu. Sobra porém uma outra questão, esta talvez mais séria. O cabeçalho do email diz: a FNAC chegou a Viseu. Como se dissesse: foi inaugurado mais um troço da estrada que levará a civilização até ao interior recôndito e arcaico. Como se assim fosse debelado, por momentos, o síndrome da altitude de que o desenvolvimento padece neste país. E de que a organização aparece como lídima mensageira. Ora, a Fnac é uma empresa privada. Poder-lhe-á ser censurado o facto de só abrir lojas onde há população e poder de compra que o justifique? É claro que não. Mas se a cadeia fosse realmente tão ambiciosa como quer dar a entender, não poria nunca de lado a ideia de abrir uma loja nas capitais de distrito onde elas ainda não existem. Seria um risco calculado e com resultados surpreendentes. Refiro-me não ao habitual formato megastore, mas com uma dimensão mais modesta, semelhante à loja que existe no Centro Comercial Vasco da Gama, em Lisboa: reduzida, oferecendo o indispensável, embora mantendo a diversidade, a acessibilidade e o preço. E o Estado, e as autarquias, podiam ter algum papel neste processo? É claro que sim. Negociando contrapartidas sensatas e exequíveis. Até já.

NOTA: sobre este tema, embora num registo diferente, ver este texto do Américo Rodrigues, no "Café Mondego".

terça-feira, 15 de abril de 2008

Preces atendidas - 25

Alexandra Maria Lara

Quarteto

Soube agora que o cinema Quarteto, em Lisboa, encerrou as suas porta no mês passado. Isto após a IGAC ter detectado alguns problemas relativos à segurança. Por outro lado, o seu fundador (1975) e proprietário, Pedro Bandeira Freire, está hospitalizado há três dias, sendo o seu estado considerado grave. A notícia está no "Público" online. Seria interessante imaginar o quanto aquele local, num gaveto da Av. dos EUA, representou para gerações de cinéfilos, simpatizantes ou curiosos do cinema. Para mim, era um regalo circular por aquelas salas, pois havia sempre um filme certo para a hora certa. Durante muito tempo, ir ao cinema, para o público que não dispensava a qualidade, era sinónimo de "ir ao quarteto". Era algo que nem sequer se questionava, precisamente porque ninguém o faz com as rotinas. Recordo com especial emoção as maratonas anuais com sessões contínuas, onde eram exibidos, em retrospectiva, os grandes títulos mostrados nos anos anteriores. E para assistir, bastava ter na mão um simples bilhete, a um preço simbólico! A coisa começava às 20 00h e acabava às 10 00h da manhã do dia seguinte! Valiam sempre os cafés "tipo" pólvora servidos no bar. Eram autênticas provas de resistência, mas sem esforço... Recordo-me também de uma figura lendária, um espectador crónico daquele cinema, celebrizado por mandar sonoras e solitárias gargalhadas, precisamente nas sequências mais avessas ao humor. O qual ele descortinava onde mais ninguém o fazia. Mas sem que alguma vez tivesse dado conta de alguém se importar com isso. Antes pelo contrário... Em suma, o cinema em Portugal muito deve ao Quarteto. E alguns dos meus sonhos nasceram lá.

NOTA: lamentavelmente, nos últimos 5 anos, o espaço entrou em franco declínio, tornando-se pouco mais do que um cinema de reprise. Um glamour decadente e fantasmagórico foi tomando conta dele, sendo agora o seu traço mais notório. Claro que é triste. Mas lembra-nos como tudo é efémero, passe o lugar-comum.

Playlist da casa (8)

Bill Evans, "You Must Believe in Spring", Warner, edição original: 1981

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Acordo Ortográfico? Não, obrigado! (3)

É deprimente ver uma escritora da dimensão da Lídia Jorge a papaguear uma argumentação de vão de escada no programa "Prós e Contras", na RTP, sobre o "Acordo ortográfico", a favor desta coisa. Se antes eu já era absolutamente contra, depois deste debate fiquei a saber ainda mais porquê. Já agora, vou-me recusar a escrever uma palavra que seja que resulte das modificações operadas pelo acordo. Sabem uma delas? Pois aqui vai: já imaginaram o que é escrever fodasse? Foda-se! Nunca!

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O saltimbanco

Espero bem que o "Volta a Portugal", o périplo de Luís Filipe Menezes pelo país, contemple igualmente umas visitas relâmpago a Linhela, Lebução, Tronco, Pinelo, Coelhosa, A-do-Barriga, Algoso, Urros, Labruja, Bico, Cabração, Oldrões, Chazendo, Sobral de Casegas, Farroupa, Alfrivida, Folgas, Souto, Capelins, Funcheira, Sáfara, Brinches, Trevões, Prova, Freixedo, Besselga, Avelãs de Cima, Bajancos, Fármio, Chão de Vã, Lentiscais, A-do-Alho, Soalheira, Ciladas, Gafanhoeira, Tojais, Peladinho, Picota, Currais de Boeiros, Vaqueiros, Cães de Cima, Darei, Cassurães, Cunha Alta, Anais, Relíquias, Dossãos, Lações, Chorense e A-de-Parceira. Pode bem acontecer que o ar sadio do campo e a sageza das pequenas comunidades induza o líder do PSD a dizer menos disparates por cada cm3 de discurso. Vou estar atento.

Os Verdes


Para quem não sabe, o partido ecologista "Os Verdes" é uma força política com representação parlamentar assegurada e vitalícia, de há 25 anos para cá. Uma vez que "concorrem", invariavelmente, em "coligação" com o PCP, dando origem a essa extraordinária construção, decalcada do frentismo dos anos 30, chamada CDU. Nasceu numa época em que os verdes (os verdadeiros) começavam a dar cartas em todo o Ocidente, sobretudo em França, Itália e Alemanha. Quando os temas ambientais tinham finalmente uma audiência considerável. De tal forma que as agendas políticas nacionais e os fóruns de discussão internacionais não podiam ignorá-las. Na Alemanha, os sociais-democratas foram mesmo obrigados a uma coligação com os Verdes. Por cá, as luminárias comunistas perceberam que havia um "mercado" novo, uma bolsa de contestação "interessante" na luta contra o seu inimigo principal: a democracia "burguesa" e os EUA. Numa altura em que a escalada nuclear decorrente da guerra fria atingiu na Europa o seu ponto mais alto. Todavia, para os comunistas, os SS 20 soviéticos colocados nos países do pacto de Varsóvia eram inofensivos, sendo a sua deflagração considerada "fogo amigo". O único e verdadeiro Mal estava nos Pershing II que Reagan e a Nato chegaram a instalar na ex RFA. No fundo, os amigos russos só queriam proteger-nos do papão americano. Cheguei a ver, numa manifestação organizada "a favor da paz", na Avenida da Liberdade, em Lisboa, elementos do PCP a destruírem faixas que colocavam ambos os mísseis no mesmo plano de destruição. Neste contexto, seria bem vindo um capacho "ecologista", destinado a fidelizar algum eleitorado sensível às questões ambientais e açambarcar um tema que é infinitamente complexo e transversal. Para assim o colocar ao serviço de uma simples estratégia de sobrevivência partidária. Foi então aí que o monstro pariu um monstrinho: simpático, indy, a tal melancia que todos conhecem. O qual, de vez em quando, numa espécie de prova de vida, faz voz grossa e lança uma achas para a fogueira pública. Como que a dizer, nós também existimos, estamos ainda por cá! E de invisíveis passam a translúcidos. Com vantagem para o anedotário nacional e para a confirmação da risibilidade do seu "programa". Agora vieram com uma campanha contra os EUA, por estes não terem ainda ratificado o protocolo de Quioto. Lançaram mesmo uma "acção de protesto", dirigida aos "estudantes", para que estes inundem de postais a caixa de correio de Bush. Em vez de Antrax, contendo um protesto veemente, redigido pelos dirigentes verdes num gabinete secreto da Soeiro Pereira Gomes. Esquecem-se, no entanto, do nome do segundo maior consumidor mundial de energias fósseis: a China. Exactamente. A super-potência emergente, que mal ouve falar nos acordos de Quioto comporta-se como o diabo diante da cruz. E cujo crescimento económico se faz à custa de uma verdadeira catástrofe ambiental. Numa altura em que a pressão da comunidade internacional está a colocar o regime chinês num aperto considerável, nada melhor do ques estas bombinhas de fumo. A nova "pátria do socialismo" (já que é a única que resta) agradece o gesto a Jerónimo y sus muchachos.

domingo, 13 de abril de 2008

sábado, 12 de abril de 2008

Stalker

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Os benefícios do tabaco

"Finalmente, já posso andar de cabeça erguida!" Quem anuncia a boa nova aos sete ventos, presta um tributo, ainda que inconsciente, ao magma que tudo constrói e refaz, a seu bel-prazer. Aquilo que repõe a zeros o saldo contabilístico do declarante em relação à humanidade. O epílogo de um casus belii que se acredita ser a contento de todas as partes. Ocorrem-me duas situações onde este efeito analgésico se pode dar. A primeira é o expurgo da culpa, a absolvição de uma acusação que pendia sobre o próprio. A segunda, mais rebuscada, é a daquele que anda enterrado na merda até ao pescoço. Por isso, anda com a cabeça bem erguida. Pudera! Mas há ainda uma outra possibilidade, esta ainda mais desconcertante. Até porque, do ponto de vista fisiológico, é inatacável. Trata-se daqueles casos em que o levantar da cabeça é uma consequência natural da alteração do centro de gravidade. Que busca as suas causas no aprumar da coluna vertebral e distensão da caixa toráxica. E sabem porquê, meus amigos? Porque os alvéolos pulmonares começaram a ficar limpos. Tão só! Pois bem, 10 meses depois do tabaco, de já não sei quantas caixas de nicorette e de uma azia inenarrável produzida nos brônquios, a espaços, durante o seu processo primário de limpeza, eis que posso declarar, urbi et orbi, que já an... exactamente, caros leitores, de cabeça erguida! Claro que continuo enterrado na merda até aos joelhos, mas isso fica para outra lição de anatomia existencial.

A liberdade em forma de tocha

campanha reporters sans frontières

Gordon Brown acaba de anunciar que também não estará presente na cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Pequim. Angela Merckel já o tinha feito. Aposto que Sócrates não deixará de pontuar na comitiva oficial. Tudo por causa de mais uma negociata de amendoins que ficaria em risco. Uma ditadura corre o risco de cair por causa de uma chama olímpica. Uma vingança helénica com 2500 anos. Entretanto, o incansável Jerónimo foi a Luanda visitar o amigo do peito José Eduardo dos Santos. Sentindo-se em casa, louvou esse grande "país em construção, livre e soberano", onde não sentiu a corrupção "como um fenómeno instalado e em desenvolvimento". Que ideia! Corrupção em Angola? Mentiras propagadas pelo torpe imperialismo e pelo venal capitalismo! Ler aqui a entrevista na íntegra. Recorde-se que o PCP foi o único partido na Assembleia da República que se recusou condenar a violência no Tibete. O PC chinês também andava assim a modos que distraído. Até levar com uma tocha em cima! Acontece...

quinta-feira, 10 de abril de 2008

aqui está o fogo







aqui está o fogo, bebe. aqui estão as estrelas cujos nomes alguém inscreveu a sangue. aqui está a terra onde me sepultarás. longínquos dias, travessia de séculos, noites perdidas na inutilidade irrequieta dos quartos-minguantes. aqui estou, perdido para sempre, sozinho, quase sem mim, a evitar o pior. pego num cigarro, fumo-o sofregamente. desejo-te ainda. se o telefone tocasse, se batessem à porta, se me apetecesse sair daqui. já não estou contigo nem com os outros. eles estão vivos, movimentando-se. eu não sei se estou vivo, imobilizo-me. os cães ladram junto à janela, ouço-os cada vez mais longe.

Al Berto, in "O Medo", Livro X, 1985

quarta-feira, 9 de abril de 2008

O carrossel dos leitores


Para que cessem as dúvidas, também há o Escritor-Que-Mede-Leitor-A-Metro. O tal que vai anotando, à margem, alguns dos seus tipos de ouvintes: Leitores de Ontem, Leitores do Ano Passado, Leitores da Rua A, Leitores da Rua B, Leitoras de Olhos Claros, Leitoras de Cachecol, Leitores Pouco Interessantes, Leitores Estratégicos, Leitores Tácticos, Leitores Inimigos, Leitores Bajuladores, Leitores Raivosos, Leitores Traidores, Leitores na Patagónia, Leitores de Berlim, Leitores Insuportáveis, Leitores Sentados no Trono, Leitores que Mexem com os Lábios, Leitores de Cueca, Leitores Professores, Leitores de Faculdade, Leitores com Verrugas no Nariz, Leitores em Tese, Leitoras com Bâton cor de Abacate e Leitoras a dez mil metros Acima de Nós.

A ver navios

A notícia chegou-me através do Américo Rodrigues: António Piné acaba de doar a sua colecção de arte à Associação Nacional de Farmácias. O espólio, que inclui um desenho de Picasso, é preenchido com obras de artistas plásticos contemporâneos, ligados a várias correntes artísticas do séc. XX. A lista dos autores representados pode ser aqui consultada. Segundo o DN Online, as 44 obras consideradas mais representativas da colecção estarão expostas na sede daquela instituição, a partir de dia 11. Que, para quem não sabe, se situa num local de eleição: as portas de Santa Catarina, em frente do jardim com o mesmo nome, à Bica. A colecção, avaliada para efeitos de seguro em 3 milhões de euros, havia sido prometida a Pinhel, terra natal de Piné. Por outro lado, este tinha proposto à Câmara da Guarda a aquisição da colecção, a fim de ser exposta em local adequado. Quer num caso quer noutro, segundo o próprio explicou, as negociações chegaram a um impasse, nunca desfeito. Até agora, e pelas piores razões. Embora o desfecho da história se adivinhasse, graças às hesitações da autarquia. A indignação e o desapontamento que sinto é comum a todos os guardenses. E não só. A cidade ficou assim privada de um acervo artístico que, exposto e tratado em local condigno, faria entrar a Guarda no roteiro internacional da arte contemporânea. Como diz o o Director do TMG, seria a cereja no cimo do bolo. Quanto à sua gorada localização, remeto para as sugestões que o mesmo adianta. Acrescentando que o modelo institucional mais apropriado teria sido o da criação de uma fundação que gerisse o conjunto. Em qualquer caso, a comparticipação financeira e técnica do Ministério da Cultura seria indispensável. Desperdiçar esta oportunidade terá um preço muito alto para a Guarda e região e irá certamente hipotecar o seu desenvolvimento. A todos os níveis e não só o referente à criação de uma excepcional mais-valia cultural. Que agora foi esbanjada, sem honra e sem glória.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Fechado para balanço

Antiga Estação da CP de Barca d'Alva

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O preço certo

Hoje dei pelos sinais de alarme: ando a sofrer de menos. É que, de acordo com uma antiga estatística panglossiana, é necessário que mantenha os índices de sofrimento em alta, para poder pensar "como deve ser". Basta distrair-me um bocadinho, acreditar na felicidade, ou coisas desse género e pronto. É o desmentido, em toda a linha, do célebre refrão que nega o machado que corte a raiz ao pensamento. Portanto, nada de desconcentrações. "Depois queixa-te!", ouço sussurrar, no fundo do bosque, a voz da consciência. Nem mais.

Crimes exemplares - 22

Com uma denúncia, começa sempre com uma denúncia, naquele café está uma máquina de brindes que dá dinheiro. Este país é muito assim, pequenino e medricas, um rosto irrelevante (que seria desprezível se por acaso atentássemos nele) escondido atrás de um telefone, de um email, de uma folha de papel. O arguido vinga-se, já que falaram demais, agora é ele quem não fala. Na verdade não é desforço, é estratégia: o advogado disse-lhe que se cale, que nada confesse e ele cumpre, que o doutor é que sabe. É-lhe perguntado o nome, a filiação, a naturalidade. Olha receoso para a esquerda do púlpito, está na dúvida. Ao aceno subtil do advogado, que finge cofiar a barbicha, responde a tudo, mas responde baixinho. Hesita envergonhado no segundo nome do pai, que não chegou a conhecer. Se já respondeu em Tribunal. E ele mudo, os olhos aflitos e os sons a quererem fugir-lhe da boca cerrada, a cabeça que acena ligeiramente, não se percebe se num não se num talvez. Então o juiz percebe a razão dos silêncios, dos balançares, da estranha linguagem corporal e lembra-lhe de que, quanto aos antecedentes criminais tem que falar e falar com verdade. Ele não acredita, acha que é uma armadilha; um embuste para que desagrafe a boca e confesse o chorrilho dos seus pecados, e por isso continua calado, os olhos agora no chão, fixos nos nós do soalho. Finalmente o advogado, que responda ao meritíssimo, o silêncio vem depois. O corpo descontrai, e o alívio que dele flui quase se ouve contra os quatro cantos da sala. Que não, que nunca respondeu nem esteve preso.

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Lido

Quando cheguei
Encontrei as palavras fechadas
E nenhuma chave sob a memória
Mas sentei-me à porta do poema
Mesmo sabendo que não regressas
E que já não moro aqui

in "A Imitação dos Dias"

domingo, 6 de abril de 2008

O céptico

Pelos vistos (gostaram deste trocadilho a puxar ao humor britânico?), certa publicidade, mesmo que com uns aninhos, vai mais longe ainda do que a célebre sentença de São Tomé. Para crer, já não basta ver. É preciso sobretudo experimentar. Por mim, acho bem.

sábado, 5 de abril de 2008

Acordo Ortográfico? Não, obrigado! (2)

A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) pondera a possibilidade de suscitar a apreciação da constitucionalidade do Acordo Ortográfico de 1990 junto do Tribunal Constitucional. O acordo, como se sabe, pretende "unificar" a ortografia de acordo com a norma brasileira. A notícia do DN refere ainda que, segundo Vasco Teixeira, presidente daquela associação, "em causa está a possível ilegalidade do protocolo modificativo de 2004, que prevê que a ratificação do acordo por três países o torne válido em todos os estados da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A versão inicial, de 1990, previa que o documento só seria efectivo se aceite nos sete países." Recorde-se que o protocolo já foi ratificado pelo Brasil, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. O que significa que, por absurdo, vigoraria mesmo que a ratificação portuguesa fosse anulada. Vasco Teixeira considera que esse cenário deixaria "a falar sozinhos" os três outros países. "Três em sete nem sequer é uma maioria simples", ironizou, com propriedade.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

O barnabé das costureirinhas


Mário Nogueira, o chefe do soviete Fenprof é um dos últimos exemplares vivos da espécie comunio defenestadoris sapiens, segundo designação aceite pela maioria dos antropólogos. Aquele derrame espasmódico de ódio corporativo e aquele bigodinho à Rolão Preto são só o disfarce de uma natureza cruel e brutal, o atributo mais associado àquela espécie. Soube-se agora que o antigo mandatário da candidatura do chefe Jerónimo tem um altar em casa com uma imagem do Zé dos Bigodes, segurando umas criancinhas, como o georgiano mais conhecido da história costumava fazer. Todos os dias, depois de umas abluções e uma sessão de tiro ao alvo na fotografia da Ministra da Educação, o Mário faz um acto de contrição jdanovista, seguido de uma breve simulação de uma execução em massa de todos os que "atentam contra os direitos dos associados do sindicato" - "Só para descontrair do stress diário", veio mais tarde a reconhecer - acabando por entrar numa espécie de êxtase xamânico, por se sentir tão pertinho do "pai dos povos". O Mário, recentemente, tem-se multiplicado em entupir os tribunais com umas preciosidades legais. São acções atrás de acções. Mas o homem, pelos vistos, é pouco conhecedor das minudências jurídicas. Canta vitória sobre vitória para os basbaques da comunicação social, ignorando que os tribunais se limitaram a aceitar o que lá mandou colocar, sem nunca terem decidido sobre o fundo da questão. Até agora. O Tribunal Constitucional, através do acórdão nº 184/2008, de 12 de Março, veio chumbar as pretensões dos requerentes, 25 deputados que pretendiam ver declarados inconstitucionais certos aspectos da Lei que alterou o Estatuto da Carreira Docente. O Mário, esse tem estado caladinho que nem um rato. Fazendo jus ao outro atributo da sua espécie: a demagogia sem limites.

Playlist da casa (7)

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Top dúzia

Os doze livros de ficção mais importantes que já li antes de morrer e que, certamente, têm vindo a tornar a minha vida muito, muito excitante:
  • Viagem so Fim da Noite, Céline
  • O Som e a Fúria, William Faulkner
  • Os Passos em Volta, Herberto Helder
  • O Vermelho e o Negro, Stendhal
  • Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
  • Os Possessos, Dostoievski
  • As Benevolentes, Jonathan Littel
  • Os Sonâmbulos, Hermann Broch
  • O Estrangeiro, Albert Camus
  • Os Irmãos Karamazov, Dostoievski
  • Palmeiras Bravas, William Faulkner
  • Auto dos Danados, António Lobo Antunes

O amuleto

Afazeres profissionais levaram-me hoje de manhã a um Tribunal situado perto de uma escola secundária. Enquanto esperava pelos meus clientes, reparei em algo comum aos adolescentes de ambos os sexos que passavam: a grande maioria sozinhos, pois que acompanhados do seu telemóvel. Que tratavam como se fosse o único elo com o mundo que possuíssem. Um objecto no qual centravam todas as suas necessidades de comunicação, aprovação social, pertença ao mundo. Como se tudo o resto fosse superfluo. Pois. Não admira mesmo nada o que se passou no tal episódio da escola do Porto. Que já todos os blogues comentaram, excepto o "Gaijas da TV", o "Galáxia Wrestling" e o "Aqui é só Gatas". E que deu certamente 80 voltas ao mundo num microsegundo.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Instantâneos

Avizinha-se uma luta interessante pela liderança das estruturas concelhias da Guarda do PS e PSD. O interesse reside na significativa subida de qualidade das personalidades envolvidas, relativamente aos fósseis sempre em pé que por lá abundam e que, definitivamente, não passarão à história.

A porta


Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas não há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta.

Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de sopetão
Pra passar o capitão.

Só não abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa . . .)
Que se uma pessoa é burra
É burra como uma porta.

Eu sou muito inteligente!

Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no céu!

Vinicius de Morais

Stalker

terça-feira, 1 de abril de 2008

Reflexões sobre política cultural (2)

(ler anterior)
Prossigo o lançamento de alguma matéria comburente para o debate acerca do modelo público de cultura. O que atrás se disse acerca do Humanismo, significa que só graças ao esforço individual seremos capazes de nos apetrechar com um critério que nos permita viajar através da história. Ao fazê-lo, apropriamo-nos dela, conseguindo distanciar-nos da ditadura cultural do tempo presente. O humanismo, definitivamente, é isso, o cultivo da nossa inteligência e sensibilidade para podermos julgar os resultados das artes e das letras com discernimento e liberdade. O contrário de uma política cultural cujo objectivo não é o diálogo com o passado, mas a transformação desse passado numa indústria de entretenimento. Nisso consistiu a transição de um modernismo transgressor para um posmodernismo consumista e multicultural. O mais significativo na acção do Estado cultural no modelo francês, seguido entre nós, é o seu fracasso perante a redução da cultura a uma variante do consumo de massas. Um consumo que o próprio Estado, no melhor dos casos, fomentou. E no pior, a sua impotência diante da pura e simples eliminação da cultura. Esta eliminação é alimentada pela deterioração progressiva dos saberes humanistas, mas também científicos, no terreno da educação. Deste modo, os paladinos do relativismo, em particular as cadeias televisivas, viram, na liquidação do cânone e no empenho oficial em impôr o vanguardismo e a ruptura no mundo artístico, o melhor passaporte para o vale tudo. E assim, porque tudo é igual e tem o mesmo valor, "a vida guiada pelo pensamento cede suavemente o seu lugar ao terrível e ridículo cara a cara do fanático e do zombie" (Alain Finkielkraut, A Derrota do Pensamento). Isto é, diante das duas principais nódoas que obscurecem o panorama da cultura actual: a monomania identitária do nacionalismo e o relativismo consumista e omnívoro da posmodernidade.