domingo, 30 de abril de 2006


"Estados Alterados" on tour 2006 - Ponte romana sobre o Tejo, Alcântara, Espanha

A prole

O Governo da República está a estudar a forma de extorquir mais umas coroas ao incauto cidadão, antes do período de defeso do Mundial de Futebol, altura em que, podendo, pedirei asilo político num iglo algures no ártico. Desta vez, segundo o jornal "Público" de ontem, vai agravar a taxa social única de 11% para 13% para quem não tiver filhos ou só um, mantendo-se para quem tiver dois e beneficiando de "desconto" quem tiver mais que dois. Estou enternecido. Não há dúvida que o Estado pensa em nós, mesmo enquando concepturos.
Entretanto, vão fechando maternidades por esse país fora. Contraditório? Não. Existe uma explicação para o paradoxo: afim de concretizar o messiânico boom demográfico, vai dinamizar-se a circulação automóvel, com as pessoas a passar a vida entre a sua casa e a maternidade a 100 Kms, aprovisionando as despensas com fraldas, roupa para bebés, chupetas - adivinham-se tendências especulativas com estes artigos - e a aviar os receituários de Viagra, pois que o investimento é capaz de valer a pena. Agora pergunto: e aqueles que não podem (por razões económicas, clínicas, ou religiosas), ou não querem, por opção, obedecer ao célebre comando bíblico da multiplicação, vão ser penalizados por isso? Em que planeta estamos?
Se o Governo quer assegurar a sustentabilidade da Segurança Social, como lhe compete, então recorra a outras medidas, sem pôr em causa as liberdades individuais. Se essas medidas forem tomadas para encorajar o aumento da taxa de natalidade, então que os incentivos funcionem pela positiva - aumento do abono de família e dos períodos de licença de maternidade e de parto, por exemplo - mas nunca por uma penalização discriminatória. Só espero que o Presidente da República requeira a apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer diploma naquele sentido que lhe chegar às mãos.

quinta-feira, 27 de abril de 2006

Hic et nunc (não é Latim, estou com soluços, bolas)

A Senhora Professora Luísa Queirós de Campos, doutorada em Literatura Inglesa e Professora Coordenadora de Literatura Inglesa no Instituto Politécnico da Guarda, acaba de escrever neste jornal (Vd. edição da semana passada) um texto intitulado Usque Quantum, Americe, patientia nostra abutris?
Ora, a Senhora Professora começa por fazer uma minuciosa análise semântica de declarações públicas prestadas pelo director artístico do T.M.G. Demonstra assim uma invulgar sintonia com a recente técnica da vivissecção vocabular, aplicada à crítica literária e popularizada por João Pedro George, no seu livro Não é Fácil Dizer Bem. Que a cultura não precisa da autorização nem do aval dos poderes, estamos todos de acordo. O único senão é que esquece o contexto em que aquele enunciado se produziu. Esquecer o referente não parece ser muito ortodoxo, Senhora Professora!
Mas a Doutora, para além do inusitado e burocrático zelo dispendido com as habilitações escolares do Director Artístico do TMG, nada traz de novo quanto a uma crítica consistente e sustentada sobre as opções de programação do TMG. É que, em 272 actividades desenvolvidas até agora (não contabilizando as que dizem respeito ao Serviço Educativo), a Senhora Professora elegeu, como referência…duas! Será porque só presenciou essas? Porque não quer falar das outras a que assistiu? Porque já viu o mesmo em Itália, Londres ou Nova Iorque? A dúvida subsiste. Mas é muito pouco, e demasiado leviano para ser credível, afirmar que a programação é pouco “popular”, sem apresentar dados, grandezas, informação objectiva, matéria-prima que legitime qualquer tratamento crítico que depois faça.
Por outro lado, enunciar de forma avulsa uma série de nomes de referência da música e do teatro é colocar o problema de forma caricatural, não lhe parece, Senhora Professora? Julga que encenações desses autores e repertório desses compositores andam por aí, a pairar, à espera que um programador detecte o sinal e as traga ao palco? Anda iludida, Senhora Professora! Programar, segundo creio, é antes de mais, saber não ser neutro com o que se escolhe. Mesmo no âmbito daquilo a que se designa serviço público. Diria até que se pode sempre escolher, de entre o que há em determinado momento, de acordo com a natureza da programação que se elegeu (e do orçamento, é claro). Pode-se mesmo, o que é desejável, mobilizar agentes locais e acolher produções originais, a solo ou em regime de parceria (já participei em duas, por sinal). Em contrapartida, quase nunca essas opções se fazem por obras ou autores pré determinados. Pelo menos, neste tipo de instituições.
A Guarda tem ainda alguns trunfos estratégicos que seria insano largar mão, Senhora Professora. Um deles é precisamente o facto de, há duas décadas para cá, ter sabido ganhar e consolidar uma posição de relevo no roteiro cultural nacional, conquistando públicos e o reconhecimento da crítica especializada. Não quer que voltemos atrás, pois não?
Concordo obviamente consigo quando adverte dobre a pluralidade do público. Até iria mais longe: em rigor, o público não existe, mas indivíduos cuja motivação para com as manifestações culturais que frequentam é vivida de modos infinitamente diferentes. Mas se falarmos na relação constante que mantêm com essas manifestações, desde logo se cria uma clivagem fundamental: para alguns, como já escrevi, a cultura é normalmente invocada como um lugar onde se nivelam e apagam as tensões e os desequilíbrios éticos e sociais. Para esses, tudo se esgota na simples presença em dado evento. Para outros, porém, as culturas são expressões de permanente tensão entre as várias representações que vários grupos fazem de si e do outro. A sua expressão pública não é, nem pode ser, pacífica nem ingénua, sendo certo que a imprevisibilidade do resultado será um modo possível da sua manifestação. Para esses, em suma, as opções de vida que tomam raramente são desligadas das opções artísticas que perfilham, sobretudo as que dizem respeito à modernidade.
O T.M.G pode e deve existir para uns e para outros.
A Senhora Professora afirma, por outras palavras, que a programação do Teatro Municipal da Guarda tem sido um regabofe elitista e experimentalista. Onde pretende chegar? Não é que eu acredite, mas será que pretende recolocar o debate em paragens onde ele já esteve – o populismo – só que agora revisto e aumentado com uma retórica esquerdista e atávica?

Texto publicado no jornal "O Interior"

GUARDA, vista de poente

a Andrei Tarkovski
na rota da luz


depressa se arrasta o corpo
até à luz, enquanto se pintam
na estepe os últimos ícones

depressa os dedos alcançam
a margem, enquanto
os barcos inventam outros barcos

é só o tempo de escutar
como as sombras se esvaziam
e te atravessam os lábios
os mais claros objectos
as mais fugazes cintilações.

in "Labirintos"

segunda-feira, 24 de abril de 2006

A insustentável leveza da águia

Os comportamentos irracionais são algo que me fascina. Um deles, quiçá o mais típico, diz respeito ao futebol e, mais propriamente, às rivalidades clubistas. A título excepcional, falarei aqui desse tema. Mesmo sabendo que está para além dos meus recursos e deste espaço uma análise pormenorizada das claques, do neo-tribalismo associado, ou da histórica rivalidade entre clubes...
Mas para o que agora interessa, existe um tique recorrente nos adeptos do F.C.Porto e Sporting: usam e abusam de tudo o que exprima anti-benfiquismo. Dúvidas? Basta ouvir certos programas da rádio, ver os noticiários da TV, ler certos blogues, certos jornais e, sobretudo, estar atento às conversas que se ouvem aqui e acolá. Julgar-se-ia que esses adeptos louvassem a excelência das respectivas equipas, reflectissem sobre os seus resultados negativos e naturalmente festejassem e exultassem com os positivos. Não! Puro engano! Seja qual fôr o desfecho dos jogos, das contratações, do mérito desportivo e cívico em confronto, o essencial é o vigor empregue em denegrir o Benfica, inventar mil e uma formas de atacar a instituição, o treinador, os jogadores, os adeptos, a memória do clube…
Um resultado directo com vantagem para esses clubes serve unicamente para uma retórica de humilhação do Benfica, como se o facto de este perder esses jogos, ou campeonatos, fosse mais importante do que o facto de os clubes rivais os terem ganho! Mas se, pelo contrário, fôr o Benfica a ganhar, certos portistas e sportinguistas criam imediatamente uma teoria da conspiração em larga escala, atribui-se essa vitória a forças mesquinhas, ou sobrenaturais, mas sempre explicáveis na hora! Reconhecer que o Benfica ganhou por mérito? Nunca!... antes a morte que tal sorte!!!
Para além dos exemplos neste sentido que todos já leram e ouviram, veja-se um recente episódio, onde um grupo de jogadores do F.C.Porto e alguns adeptos, comemorando a sua vitória, se limitavam a debitar cânticos e palavras de ordem anti-benfiquistas. Esclarecedor.
Mas posso contar outro episódio, vivido em directo. Recentemente, numa movimentada noite de convívio, travei conhecimento com alguns adeptos sportinguistas. Ora, por diversas vezes e, sobretudo à medida que a noite ia avançando, esses adeptos em momento algum celebraram as qualidades da equipa que apoiam, ou demonstraram ter um conhecimento profundo do seu futebol! Não senhor! Em vez disso, limitavam-se a lançar umas chalaças, invectivando de forma gratuita o Benfica, tipo concurso da TV a ver quem conseguia ser mais original, ou simplesmente falar mais alto. Sobretudo depois de saberem quais as minhas simpatias clubistas.
Diga-se, by the way, que, da mesma forma que nunca as escondi, também nunca as apresentei como cartão de visita. Simplesmente, tento fazer uso delas com alegria e desportivismo, não esquecendo que se trata de um saudável tributo que a razão presta à paixão. É claro que, tranquilamente, ia tentando dialogar, lembrando os méritos e deméritos de ambas as equipas....Debalde! Fiquei esclarecido: Isto é mais forte do que eu! "O sono da razão produz monstros", como bem dizia Goya numa das suas gravuras...
Para enquadrar esta compulsividade doentia em caluniar e denegrir o Benfica, por parte de adeptos de clubes rivais, socorri-me de alguns conceitos importados da psiquiatria e da antropologia. Assim, enquanto explicações possíveis, temos:
1. Défice identitário, que desta forma expeditiva se preenche;
2. Inveja, uma característica que, sendo universal, em Portugal atinge dimensões devastadores, tal como explica José Gil no seu livro Portugal Hoje - o Medo de Existir;
3. Complexo de Édipo mal resolvido, em que se assimila uma autoridade simbólica - o Benfica, pelo peso que detém no panorama desportivo nacional - a uma autoridade efectiva e coerciva, algo que os portugueses, ao mesmo tempo que desejam, também lidam mal;
4. Falta de cultura cívica e ausência de desportivismo pura e simples.
Por outro lado, este comportamento:
1. é transversal, pois atravessa todos os níveis sociais e culturais - basta ver certos comentários de Miguel Sousa Tavares e Pedro Boucherie Mendes, p.ex.
2. não é generalizável: veja-se a forma isenta e séria como Rui Moreira defende o seu clube, no programa televisivo Trio de Ataque;
3. encobre outro tipo de conflitualidade, que qualquer poder teme, e por isso é encarado como garante da chamada paz social;
4. é comum a muitos adeptos do Benfica. Só que, neste caso, nunca atinge a dimensão e o alcance do que aqui descrevo.
*Sobre o tema, é essencial consultar detalhadamente este documento, no site oficial do SLB, bem como este texto, de Pedro Neto, em "Mar Vermelho". Ambos vêm desmistificar definitivamente certas estórias acerca do Benfica e do futebol nacional. Para rematar, e num tom cinematográfico, "veja-se" este delicioso conto do vigário .

sexta-feira, 21 de abril de 2006


GUARDA, intermezzo

A choldra

O recente post de JPP intitulado "A Fauna das Caixas de Comentários" coloca uma série de questões deveras interessantes e que dizem directamente respeito à blogosfera. É claro que o fenómeno deverá ser circunscrito a uma percentagem de comentadores que JPP retrata, não se podendo generalizar aos restantes. A blogosfera permite assim que determinados comentadores assumam uma espectacularização da sua identidade virtual, usando um espaço de troca de ideias e de debate aceso como um simples mini chat onde vagueiam como figuras tutelares e castradoras de qualquer tipo de debate aberto e construtivo.
Como JPP refere, figuras cinzentas e ressabiadas que não saem do anonimato sempre houve, só que agora apresentam-se munidas do tal upgrade comunicacional que os blogues permitem, funcionando como uma espécie de proletariado dotado de uma superioridade moral, imposta numa ciberluta de classes que só agora dá os primeiros passos.
No seu livro "Portugal Hoje, o Medo de Existir", José Gil refere a inveja como a maior perversidade nacional, que associada a outros traços, compromete a existência de um autêntico espaço público. A blogosfera poderia ser o dealbar desse espaço, mas ficará seriamente comprometida com a propagação deste fenómeno.

quinta-feira, 20 de abril de 2006

O Silêncio

No passado dia 19 cumpriram-se 500 anos do bárbaro massacre de cerca de 4000 Judeus, na cidade de Lisboa, às mãos da cristianíssima populaça, fanatizada por alguns frades. Para que a memória não esmoreça, e para que o público conheça mais um rosto do fanatismo, foi convocada uma vigília, organizada por um grupo de cidadãos, onde simbolicamente se acenderam velas em memória das vítimas. A propósito, vale a pena ler este post em "Almocreve das Petas", mas também o texto de Nuno Guerreiro.

Páscoa no Museo Vostell-Cáceres

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Páscoa no Alentejo

A ovelha negra
Biblos

segunda-feira, 10 de abril de 2006

BLITZ

em tebas o nilo,
mais além um chão de névoa:

fazer da vida
um oceano sem náufragos
um risco largo e ardente
nenhum búzio inútil
o mar é tanto.

expulsar as aranhas
dos muros, das profecias, dos altares,
surpreender a cidade
quando beija os seus fantasmas

e mesmo assim poder dizer-te,
na berma do apocalipse,
quantos mortos sentiram o frio
dos teus dedos

quantas vezes o céu estalou
pela noite dentro,
aceso ao sinal dos teus passos.

em frankfurt um retrato
esquecido numa manhã de facas
-espuma na boca-
no mármore a juventude

velha lenda, velha senda,
baile de máscaras em Veneza.

dos muros caiados
a raiva escorre
-nunca mais um nome
para a nossa sede:
andreas baader

in Labirintos
A propósito da crítica literária, publicou João Pedro George um excelente texto no seu blogue, numa perspectiva essencialmente dinâmica e funcional. De realçar que as três categorias de instância crítica aí enunciadas, a saber, jornalística, ensaística e académica, correspondem, grosso modo, às três espécies por mim aqui consideradas, respectivamente os provadores, os tribunos e os guardiães.

domingo, 9 de abril de 2006

Imagens da Revolução Espanhola (8)


ESTA BOMBA NÃO REBENTARÁ

(história baseada num episódio relatado em A Esperança, de André Malraux)

Verão de 1938. Campos de Talavera, Espanha.
Decidia-se, na frente do Tejo, o apocalipse da jovem república espanhola.
Milicianos, colunas da F.A.I., (Federacion Anarquista Ibérica), membros da U.H.P. (Union de Hermanos Proletarios), oficiais, voluntários da XI Brigada, guardas de assalto, soldados do 5º Regimento de Lister, sindicalistas da C.N.T... Tal era o saldo das forças que cercavam Toledo há duas semanas.
Os rebeldes eram comandados pelo general Moscardó, à frente dos elementos da Guardia Civil, das tropas amotinadas e dos civis armados pelos nacionalistas. Entrincheirados no Alcazar e tomando como reféns muitos habitantes de Toledo, resistiam ferozmente ao assalto dos republicanos. Ficou conhecido este cerco como um dos episódios mais trágicos da Guerra Civil Espanhola.
I
De Burgos levantavam, prenhes de bombas, Savóias e Junkers, mensageiros de aço, recortes negros por cima das oliveiras, dos penhascos, dos montes aloirados, do caudal de sangue do Tejo, do vento, das barricadas, dos jogos de cartas, dos altifalantes espalhando pelo ar a Internacional e a Cavalgada das Valquírias, intrusos nesta paisagem austera, imensa, castigada pelo sol e pelo tempo. A morte descia, lenta e ágil, como as figuras de El Greco, escorria pelas valas comuns, pelos canais de irrigação, pelas trincheiras, pelo casario branco bordejando o rio. A morte era uma carícia de aço fumegante, bolas-relâmpagos de granito róseo que caíam aos milhares do céu azul, azul como que indiferente ao labor eterno da Criação.
II
Manuel atravessava os corredores do Alcazar, juncados de destroços e corpos queimados pelo lança-chamas.
Há pouco, tinha invertido uma dessas mangueiras de fogo contra o fascista que a empunhava. Porém, a sua coragem esbarrou no olhar do outro, "não é possível queimares vivo um homem que te olhe de frente", dissera-lhe um dia um companheiro da FAI, em Barcelona, após a tomada do Hotel Colón.
Dois segundos de hesitação ser-lhe-iam fatais. Não fora a intervenção rápida de um miliciano, seria a sua vez de ser consumido implacavelmente. Ouviram-se três tiros - o carrasco, procurando o vazio com os braços, caiu para trás com um baque surdo. As paredes do subterrâneo ficaram caiadas de sangue quente. Foi então que sentiu uma dor lancinante na mão direita. Olhou - a pele havia ficado colada ao cano em brasa.
Seguiam, um pouco atrás, alguns milicianos, absortos no abismo do seu ódio. Crispavam os dedos nas espingardas. "Talvez muitos deles tenham a mulher ou os filhos presos como reféns, lá em cima na torre", pensou.
"Deus pode esperar... como poderá esta gente pensar nele, depois de ver as igrejas repletas de oiro e os padres desculpando os assassinos no massacre dos mineiros asturianos, há quatro anos em Oviedo?"
Lá fora, o ribombar contínuo das explosões cessara. Ouviam-se, aqui e acolá, sons de metralha e gritos de comando. Subiu. Um luar de Verão, como só há no coração de Castela. Gradualmente, iam-se desenhando por entre as sombras os vultos no campo de batalha. Ao longe, as paredes desmoronadas e a torre sobranceira do Alcazar, a arena onde outrora os reis de Espanha assistiam aos torneios medievais. Porém, o cenário era já outro: um aglomerado trágico e disforme de terra levantada pelos obuses, no que antes fora uma mancha de trigo. Era se como por ali tivesse passado um arado gigantesco.
O pequeno grupo caminhava, aos tropeções, através dos destroços. " Ao menos teriam os dinamitadores de Pepe feito recuar os tanques dos marroquinos?". "Talvez sejam menos importantes os motivos porque os homens se matam do que os meios de que dispõem para matar os inimigos", teria por certo acrescentado Garcia, chefe do Servício de Investigacion Militar, envolto pelo fumo do seu cachimbo. Mas agora havia que encontrar, a todo o custo, Lopez, que coordenava a instalação das minas no sector avançado das posições defendidas pelos falangistas, no lado oposto da colina.
Na Primavera de 1934, durante a greve dos operários de Saragoça ( a maior e mais longa até então registada em Espanha), Manuel havia dirigido, com Durruti e Puig, um assalto aos camiões que transportavam o ouro do Banco de Espanha, em Gigon, para auxiliar os grevistas e suas famílias. A sabotagem dos eléctricos de Barcelona ficou igualmente célebre... Eram os tempos do Solidariedad, da Livraria Anarquista e do café Tranquilidad. " A tudo renunciaremos excepto à vitória", costumava dizer Durruti.
Uma barricada, "Quem manda aqui?", "todos e ninguém... porquê?", respondeu-lhe uma voz com sotaque mexicano. Continuou. Sucediam-se os gritos dos agonizantes, o brilho vago das lâmpadas dos delegados de secção, pedaços de metal retorcido, canhões desmantelados... "a organização do caos", dir-se-ia.
Subitamente, entre duas oliveiras apinhadas junto a um muro esburacado, distinguiu uns reflexos esverdeados, provenientes de um objecto metálico. Abeirou-se. Era afinal uma bomba que não tinha explodido. Pediu ao miliciano que segurava a lâmpada que se aproximasse. Cuidadosamente, pegou no obus, desmontou o percussor e extraiu do invólucro um papel amarelecido. " Fábricas de Toledo?" Olhou novamente o papel. Surpreendentemente, deu conta de uns caracteres impressos numa das faces. Foi então que pode ler, em português, a seguinte mensagem: " CAMARADAS, ESTA BOMBA NÃO REBENTARÁ. É TUDO POR AGORA ".
O novo dia ganhava contornos no horizonte. Suavizavam-se as sombras na terra revolvida. " A tudo renunciaremos e Deus esperará por nós..." Manuel sorria agora, ajoelhado ainda sobre a raiz esventrada de uma oliveira.

sábado, 8 de abril de 2006

VINCÈNS

para Van Gogh,
algures em Saintes-Maries


Há uma flandres inteira
de campinas rasas,
uma flor suicida
entre o céu e a neve
entre lábios e vésperas de sol

há uma meda de palha
esmagada
sob o ar tenso de Agosto.

mesmo errante nas colinas
olhando-se nas ravinas
uma lua, pobre louca,
num capricho de reflexos

não é ainda a agonia,
o demónio ainda não ruge,
o portal abre-se ainda
e a loucura passa além.

vai: os altos dragões de rocha,
atentos a todos os voos,
já previram desde há muito
a paz para esta noite.

sobre as suas negras chamas,
do grande céu verás chover
os fogos, frutos coloridos
que fazem estalar os ciprestes.

e se gira, gira, gira
o teu céu, é que ele suscita
a abundância, é que ele agita
a paisagem onde é sempre meio-dia.

in Labirintos

terça-feira, 4 de abril de 2006

A Memória das Coisas -9

VILA SOEIRO – Ervas
Ela pôs-se a atirar tudo pela janela. Depois começou a falar muito, depressa, sem cessar, até parar. Um dia, puseram-lhe nas mãos lápis de cores e colocaram diante dela uma folha de papel. Inerte, ela traça, distraída, alguns pontos e riscos, e depois, sem parar, flores, flores sem suporte. Flores de corolas simples, flores oferendas, flores de nascimento, flores tingidas de inocência. Muitas, muitas. Palavras, nenhumas, nunca mais. Flores é a sua única resposta. Flores, flores, flores.

O regresso dos mortos-vivos

A Associação Fonográfica Portuguesa, em conluio com as multinacionais da indústria discográfica, representadas na poderosa IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica), acaba de processar 28 cidadãos por, alegadamente, terem descarregado ficheiros de música na Internet, em programas de peer to peer. Trata-se de 28 perigosos meliantes, a maioria jovens, a que estes senhores decidiram dar o adequado correctivo. Para que os restantes milhões que utilizam este meio para aceder àquilo de que gostam – música – pensem duas vezes ou mais antes de prosseguirem a sua actividade “criminosa”.
É evidente que as multinacionais do ramo estão apavoradas com a descida dos lucros, na ordem dos 45%. De tal modo que a sua estratégia, anunciada com pompa e circunstância, inclui a vinda ao nosso país do presidente da IFPI, de nome John Kennedy (juro que é verdade, mas sempre é melhor que John Smith), para dar uma mãozinha aos seus amiguinhos nacionais. A figura é sinistra. Numa manobra de puro marketing, multiplicou-se em entrevistas aos jornais da praça, destinadas a intimidar os indígenas. O senhor diz coisas surpreendentes, capazes de fazer estremecer La Palisse: “a indústria da música sofre terrivelmente” (snif); “estes infractores estão a ROUBAR (?) os artistas – que deixam de ter a possibilidade de viver do seu trabalho”; “a questão do preço é uma desculpa esfarrapada, utilizada frequentemente pelos infractores que roubam música” (em que século vive este senhor?)…”as pessoas devem olhar para esses 99 cêntimos (das descargas “legais”) e pensar no que podem comprar. Um café? Uma lata de coca-cola? Um bilhete de autocarro?”. Mas as verdadeiras pérolas vêm a seguir: “Quem rouba música não pode ser um verdadeiro amante da música”; “O preço de um CD em Portugal é muito inferior ao preço de um concerto ou de uma peça de teatro”. Chega? Vamos por partes:
1. Direitos de autor: o pano de fundo e justificação da repressão, é realmente um tigre de papel. Senão vejamos: será que a indústria estará mesmo preocupada com o não pagamento dos direitos aos criadores, sabendo-se que estes representam um percentagem ínfima do preço final?
2. Preço. Em Portugal os CDs e DVDs - à venda por 18 e 22 Euros, como valores de referência - custam praticamente o dobro dos EUA. Em vez de se queixarem da quebra de facturação, que tal baixarem significativamente o preço, aproximando o PVP do custo real do produto?
3. Multiplicação de fontes de registo. Sabendo-se que a simples menção da palavra MP3 cria logo convulsões no estômago a estes senhores, esquecem-se que existem outras fontes sonoras no ciberespaço, igualmente passíveis de captação e registo, como as rádios e TVs em streaming? Quem o faz está igualmente a defraudar a lei?
4. Melomanias. Quem gosta realmente de música, e ao contrário do que a IFPI apregoa, não se contenta, antes pelo contrário, com o mainstream que inunda o mercado. Tem que ir onde a indústria não chega. Então porque não tomam a sério uma política de reedição de fundos de catálogo, de modo a fazer circular no mercado obras de difícil acesso, não se limitando a editar o costumeiro lixo de três minutos?
5. Partilha versus contrafacção. Partilhar músicas, livros, bens culturais é uma prática que existe desde sempre. Faz-se entre quem comunga de mesmo gosto. Falo de uma domínio que é, por definição, pessoal e transmissível. Fazê-lo na Internet é uma conquista civilizacional com vantagens consideráveis. Outra coisa é tirar partido dessa disponibilização, para com isso obter vantagens económicas. O que sem dúvida constitui um ilícito, devidamente tipificado na lei penal. E só ai se deveria centrar a atenção de quem se sentir lesado.
Em conclusão, esta postura repressiva da indústria não poderá colher junto dos tribunais, nem muito menos na opinião pública. É bom não esquecer que a Constituição, no seu artigo 78º, garante o acesso à fruição e criação culturais, incumbindo o Estado de promover “uma maior circulação das obras e dos bens culturais”. Se a indústria quisesse realmente enfrentar o problema, numa estratégia prospectiva e não repressiva, deveria adequar a oferta à procura, a lógica do mercado à diversidade das preferências dos consumidores e às liberdades individuais
Graças às medidas propostas, as descargas a partir de programas de partilha de ficheiros baixariam como que por milagre. Para já, preferem fazer de cada cidadão um potencial personagem kafkiano, ignorando as novas modalidades de divulgação, consumo e fruição musicais.
Publicado no jornal "O Interior"

sábado, 1 de abril de 2006

Nkonsonkonson

era verde verde
o rio quebrado
na minha garganta

nas vagas um rodopio
de incêndios amantes

na proa o sinal
para o princípio dos ventos,
quando o princípio
era o mar


melhor seria
chamarem-me as navegações
para o mistério das marés:

na voz
um porto ausente

nos flancos
um leme partido

no mármore, mais ao sul,
um só horizonte
de bússolas salgadas
à espera de movimento.


in "Labirintos"

Imagens da Revolução Espanhola (7)