quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Stalker

Gigabook

da série 'Books', 'Dictionary', 1994, Abelardo Morell

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Os comissários da memória

O Professor Rosas desdobra-se numa inusitada indignação por causa da presença da Fanfarra do Exército na cerimónia oficial da evocação do regicídio e da memória de D. Carlos, no próximo dia 1. O seu partido já apresentou mesmo um protesto em letra de forma no hemiciclo. O que levou o Ministro da Defesa a não autorizar a participação de unidades do Exército no evento. Pelos vistos, certa esquerda ainda se julga dona do regime e da História, sem perceber que se vai sumindo no limbo da insignificância emplumada. Desta vez, nos saldos das causas de ocasião, comprou uma guerra que já teve os seus dias de glória: Monarquia versus República. Para esse sector, repetir o óbvio é simplesmente redundante: a evocação do regicídio tem um significado, digamos, humanitário, antes de qualquer apropriação política. É um tributo público à memória dos que pereceram no atentado. Limpo, sem fantasmas. Quem os quer lá pôr são aqueles que não conseguem viver sem os agitar.
Esta polémica transporta-me para um episódio que hoje vivi. Quando me dirigia para casa, após os afazeres profissionais, sou abordado por uma equipa de reportagem da TVI. Perguntaram-me se estava disposto a responder a algumas questões. Porque não? Ora bem, para começar, adivinhem, se sabia distinguir a República da Monarquia. Depois, qual dos dois regimes preferia. À primeira lá gemi, bem espremidinho, o vulgo de Lineu. Quando à segunda, o caso foi mais complicado. Fiquei com aquela sensação por que todos passaram perante a sacramental pergunta a que nenhuma criança escapou: "então gostas mais do pai ou da mãe?" "Há monarquias onde não me importava de viver e certas repúblicas de que fugiria como um tigre da água e vice-versa. Portanto é só uma questão de fazer contas." Lá consegui dizer à menina. Tenho dúvidas que este "depoimento" seja incluído na reportagem, igual a tantas outras acerca do que pensa a populaça sobre isto e aquilo, a propósito de uma tema da actualidade.
Voltando ao caso da fanfarra, quem andou bem, mais uma vez, foi o historiador Rui Ramos. Eis alguns excertos da sua crónica de hoje no "Público". Chama-se "O nosso outro passado" e está lá o essencial.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

O altar

(clicar para entrar)

Se houvesse degraus na terra...

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Leis com brancas

A polémica Lei 37/07, mais conhecida por lei do tabaco, contem alguns momentos notáveis de humor, como é o caso deste:




Blogues da terra (2)

A propósito da pertinência da recente lista de blogues regionais no "Arrastão" e destaques individualizados a um blogue por região, já aqui me pronunciei. Contudo, faltava uma abordagem à questão de fundo: o que permite classificar um blogue como regional? A colocação do sujeito ou do objecto num centro imaginário? A geografia? O móbil? A extensão do olhar? A linha editorial? A agenda? No fundo, combinando caso a caso cada uma destas hipóteses obteremos a resposta. Mas ela é frágil, não resistindo à prova dos factos: há blogues que, embora se auto-limitem a uma área, uma cidade, um bairro, uma região, fazem-no como se falassem para a paróquia e nada mais. Há outros, nas mesmas circunstâncias, que de tanto fazerem cintilar o terreno que focam, acabam por fazer dele um objecto valioso, universalizando-o. Por outro lado, invertendo o âmbito comunicacional em que o meio (o blogue) se coloca, já vi muitos quererem falar do mundo para o mundo e acabarem na paróquia, sem o saber. Portanto, haverá que acescentar mais um critério decisivo na arrumação, de ordem qualitativa: o modo de abordagem da realidade que se quer observar. Se empregarmos este critério com honestidade, ficarão de fora da categoria aqueles blogues que se limitam a enaltecer de forma patética as virtudes reais e imaginárias da "terra". Aparecem como autênticos panegírigos, cujo umbiguismo só tem correspondência em alguns blogues confessionais que tenho encontrado. Não os verdadeiros, mas aqueles que se disfarçam de outra coisa. No exemplo mencionado, esses espaços de exaltação desmedida deveriam ficar de fora desta arrumação, remetidos para a publicidade online da "marca" local. Há outro caso, mais controverso: os blogues focados em aspectos da vida política e social local, não numa perspectiva de serviço público, de acção de cidadania, mas numa simples decorrência da luta partidária ou corporativa. Exemplos: blogues de políticos locais no activo, de notáveis afectos a esta ou aquela força política, de cabeças de lista derrotados na eleição anterior, de uma tendência no interior de determinado partido, que assim faz valer as suas posições, de sindicatos locais, os puramente reverenciais em relação à situação política do momento, aqueles cuja razão de ser é o simples ataque intuitu personae ou o blog swarm, etc. Note-se que, em alguns destes casos, os blogues são anónimos. Confesso a minha dificuldade em considerá-los verdadeiros blogues regionais e não simples caixas de comentários para agendas exclusivamente pessoais. Mas aqui é a casuística que comanda. Em conclusão, creio que os verdadeiros blogues regionais são aqueles que falam da paróquia como se o fizessem para o mundo inteiro. Os que querem o mundo inteiro na paróquia são simplesmente provincianos.

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Stalker

domingo, 27 de janeiro de 2008

Momentos Zen - 33

O Caminho tem duas regras: começar e continuar.
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Preces atendidas - 22

Rita Hayworth

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Blogues da terra (1)

Daniel Oliveira acaba de publicar no "Arrastão" uma listagem de blogues por si compilada, com o título "Blogosfera Regional" e cujo conteúdo dispensa explicações. Dela consta, entre outros por sinal aqui linkados, o "Guarda Nocturna", um blogue assumidamente local, mas já não o "Boca de Incêndio", que só ocasionalmente o tem sido. Pela parte que me toca, uma avaliação correcta, a ser creditada no autor da lista. Ora, independentemente do que se pensar desta classificação, aplaudo desde já a iniciativa. Por várias razões:
  1. Os blogues locais são muitas vezes os únicos espaços onde é possível assumir posições criticas e denunciar situações "no terreno", preencher a lacuna do pluralismo onde ele é tímido ou inexistente, reunir propostas convergntes para a defesa de determinada causa, suscitar a dúvida onde tudo parece transparente, exercitar a cidadania de proximidade, assumir identidades "não conformes"; em suma, são a garantia do espaço público possível.
  2. Essa rarefacção do espaço público está relacionada, como se sabe, com o caciquismo, a ausência de checks and balances eficazes nas autarquias, o afunilamento da vida pública local em torno de interesses e empreendimentos muitas vezes duvidosos e, sobretudo, uma imprensa regional na maioria dos casos domesticada pelo compromisso político e pela sobrevivência.
  3. Não é por acaso que, estatisticamente, de entre os processos judiciais intentados com base em delito de opinião contra autores de blogues, a maioria diz respeito a blogues com incidência local.
  4. Faltava ainda o justo reconhecimento da sua importância, dentro e fora da blogosfera, a atribuição de maior visibilidade a este "nicho". Quer nesta lista, ou por outro meio, era um passo fundamental para que as questões locais fossem seguidas por quem, embora distante, nelas tenha interesse ou curiosidade, e/ou no seu debate queira intervir. Alargando a troca localizada de experiências e de opiniões, já existente, a zonas geograficamente distintas, mas com questões semelhantes. Enfim, a aldeia global ao carregar da tecla.
Pelo que me apercebi, Daniel Oliveira fez uma selecção cuidada. Onde a qualidade, a pertinência e o interesse temático pesam mais do que o simples alinhamento político. Todavia, estarei atento à existência de uma hidden agenda de cariz político por detrás da lista. Em suma, uma iniciativa muito positiva, para além de, ao que julgo, inédita.

Nota: Em
jeito de declaração de interesses, devo dizer que, sobre política e não só, quase nunca tenho opiniões coincidentes com as de Daniel Oliveira. Entre um não-alinhado com simpatias liberais, avesso a fundamentalismos (sobretudo os mais perigosos) e tendo como paradigma programático o Manifesto de Euston (de que brevemente aqui farei uma extensa referência) e um trotsquista leitor de Chomsky e adepto do multiculturalismo, vai uma diferença abissal. O que nada impede, antes pelo contrário, que reconheça qualidades cívicas e intelectuais a uma figura de referência da vida pública e da blogosfera. Como é o caso.

O Irão aqui tão perto

Imaginemos um protesto organizado por uma organização religiosa durante o funeral de um actor celebrizado pelo papel de homossexual reprimido que desempenhou num filme premiado com vários óscares. "Ora bem, isso foi no Irão, na Líbia ou no Sudão?" dirão muitos leitores. Pois bem, isto acontece nos EUA, em 2008. Segundo relata o jornal online brasileiro "Última Hora" (23.01.08), a Igreja Baptista de Westboro, pela voz do reverendo Fred Phelphs, criador da comunidade 'Deus odeia Bichas', em tradução literal, anunciou que o actor Heath Ledger - protagonista de "O Segredo de Brokeback Mountain" - está no "inferno", pois segundo aquela instituição, tratava-se de um "pervertido" e "calunioso". Para já, desconhecem-se as fontes do reverendo, presumindo-se a sua origem diabólica. Não se sabe igualmente porque é que Deus há-se odiar assim tanto as bichas. Será que algum negócio tipo "Gaiola das Malucas" se tornou demasiado popular no Paraíso? Repare-se que o Freddy Baptista poderia perfeitamente afirmar que "Deus odeia quem não tem armas", ou "Deus odeia todos aqueles que têm vindo a fazer crescer o meu par de cornos". A gente acreditava à mesma.

Voltas (2)




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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Bird on the wire

A partir deste desabafo de Victor Afonso, circula na blogosfera uma abaixo-assinado no sentido de Portugal ser incluído na próxima digressão europeia de Leonard Cohen, muito em breve. A petição em causa poderá ser assinada aqui. Vá lá, depois não se queixem...

Jogos perigosos

Num comentário deixado no "Guarda Nocturna", alguém me pede para visitar um blogue apologista da regionalização e deixar por lá uma opinião. Pondo-me à frente a esfuziante projecção de que a Guarda seria natural beneficiária de tal processo, podendo reivindicar o seu estatuto de "verdadeira" capital da "Beira Interior". Confesso que já não tenho qualquer benevolência com estas golpadas. Portugal é um país relativamente homogéneo, na sua fantástica diversidade. Dispensa bem estes delírios virtuais de gente com muito a ganhar por trás. Com interesses tenebrosos, sejam eles puramente expansionistas, económicos, laborais, de afirmação política, and so on. Por outro lado, nestes processos há sempre vencedores e vencidos, há sempre alguém cujo benefício foi feito à custa de outrem. O natural é que as regiões mais fortes cresçam ainda mais à custa das mais fracas. Aliás, no tal blogue descobri a pérola da ilustração em cima. Note-se como o litoral e o interior ficam de costas voltadas. Como se esquece a demografia, a geografia, as culturas e tradições, o equilíbrio, o hinterland natural de cada área, a estratégia de desenvolvimento do país como um todo. Dá para ver até onde chega a insanidade desta gente, que prescindiu da seriedade onde ela é precisa e se porta como se estivesse num jogo de computador. E que confunde o whisfull thinking com a realidade.
No referendo sobre a regionalização, em 1999, fiz campanha contra. Como se lembram, o retalho a granel na Nação proposto por meia dúzia de luminárias foi inequivocamente chumbado, uma vez que o eleitorado sabiamente rejeitou a abencerragem que lhe foi apresentada. Ora, as razões dessa posição mantêm-se: quer económica, quer política, quer administrativamente, a criação de regiões nada resolve no nosso país. Só serviria para criar mais uma estrutura burocrática intermédia que desse emprego ao pessoal político sem ele. Se nas autarquias abundam os caciques, com as regiões teríamos mega-caciques, tipo Jardim, Loureiro e afins. De resto, não é por nada que os grandes defensores da regionalização estão no Porto, onde não descolam do costumeiro discurso bairrista e provinciano. Essa guerra Lisboa-Porto é uma luta de galos que o resto do país se habituou a olhar com desdém. A solução para a macrocefalia e o distanciamento dos órgãos decisores em relação à realidade está na desconcentração e não na descentralização. Um bom Manual de Direito Administrativo explica estes dois conceitos. Aceitaria de bom grado um figurino de 5 regiões, correspondendo às actuais CCRs, como parece estar neste momento em discussão. Por outro lado, isso da "Beira Interior" é um mito criado para servir os intuitos expansionistas de interesses económicos e políticos ligados à Covilhã e alimentado por alguma comunicação social local, como se sabe.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Stalker

Transpiração

Outro dia, durante uma sessão de natação na piscina, ocorreu-me que o subtítulo mais apropriado para este blogue poderia ser "Inventário da desintegração".

Declaração de interesses

A telenovela do BCP, com um final a contento para as transumantes nulidades, socialistas ou não, que integraram a lista vencedora, como Armando Vara, tornou-se tema central dos media e da blogosfera de referência. Aqui não ocupou nem ocupará uma linha que seja. É um assunto demasiado sinistro, demasiado longínquo, com demasiados condottieri armados em cavalheiros da finança, com demasiada sordidez abstracta e solene. Que me deixa tão indiferente como as corridas de fórmula 1 ou o último concerto dos Radiohead. Nem mesmo romper a casca cinzenta, colocar alguns dos protagonistas num sólido romance clássico com laivos de modernidade, à maneira de Musil ou Sándor Márai, tornaria este assunto tema deste blogue. Nem como offshore.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Voltas (1)

Sempre que posso, reservo dias luminosos, sem vento e sem muitos visitantes para uma breve incursão à Serra. Para além de tudo, há sempre mais uma perspectiva, um troço ou um recanto por explorar. Pois bem, hoje estavam reunidos todos esses requisitos, pelo que me fiz ao caminho. Para ilustrar o resultado, aqui vão algumas fotos.



segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Crimes exemplares - 20

Tinha ido a mais uma sessão perfurante ao seu dentista. Depois da conversa de circunstância, veio o momento em que o médico desatou a fazer perguntas imediatamente após a empregada ter colocado o tubo da refrigeração na sua boca. Ocasião pois para exercitar onomatopeias expressivas e linguagem gestual básica. Passado este supremo momento comunicacional, vieram as sondas, as brocas, umas coisas que apitam por tudo e por nada, outras que aquecem, outras ainda de utilidade desconhecida mas certa. No preciso momento em que os neurotransmissores começaram a dar os sinais de alarme, ouve-se na rádio a voz de Robert Plant, no celebérrimo tema "Stairway to Heaven", dos Led Zeppelin. Acto contínuo, o dentista começa a trautear a música, num karaoke esforçado, mas sincero. Primeiro entrou em pânico. Vieram-lhe à lembrança imagens de uma conhecida sequência do filme "O Homem da Maratona", onde um ex-torcionário nazi foragido - por sinal dentista e uma réplica de Mengele - arranca uns dentitos a sangue frio ao protagonista, interpretado por Dustin Hoffman. O problema é que aí também havia "ambiente sonoro", embora a música fosse outra: Wagner, comme il faut. Por outro lado, recordou os momentos felizes que passou ao som daquela inesquecivel balada, na sua adolescência. Ao fim ao cabo, associada às maiores "tauladas" que tinha apanhado, num certo período. "Será que o dentista tem um sentido de humor rebuscado?", "O que irá ele fazer a seguir?", as perguntas sucediam-se na sua cabeça. Acabou por encolher os ombros. Afinal, o trautear era a forma possível e inocente que o outro encontrou para quebrar a ansiedade, uma maneira indirecta de lhe dizer: "Vá, isto é um instantinho, não vai doer nada". Claro, só podia ser isso. Embora a ironia da situação fosse por demais evidente... Foi nessa altura, que um sono pesado se abateu sobre ele, diluindo-se o branco das paredes numa vertigem incandescente que o puxava para longe dali. Quis reagir, mas era já impossível. Por último, ainda conseguiu distinguir o sinal que o médico dirigiu à empregada e a resposta dela: "Jawohl, herr doktor"...

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Ler os outros

Stranger than Paradise, de sua graça, é a minha última grande descoberta na blogosfera. Um espaço anónimo, pois então (and so what?). Gosto dos blogues assim, nada a fazer: um laboratório onde se pega num não tema e se dá a conhecer como tema, depois de uma heterodoxa observação microscópica. Um restaurante onde não são servidas entradas, pois todas as postagens são pièces de résistence. Um painel onde se afixam os resultados da vagabundagem, sendo que os objectos apresentados - sejam eles livros, discos, paisagens, tendências, movimentos na margem, obras gráficas - descrevem um movimento circular, ciclotímico. De modo que o leitor não é esmagado pela proficiência do autor, pela vastidão do seu "conhecimento", pelo mosaico narcísico que lhe é apresentado no formato enganoso da partilha do gosto, como tenho visto em inúmeros blogues. Aqui não. Cada objecto é apresentado como uma possibilidade permanente de desconstrução, o resultado de uma curiosidade insatisfeita. Um espaço em branco num convite descomprometido e não uma peça de um catálogo. Um sítio onde se entra e se vai saboreando sem horários a cumprir. Ah, já agora, os danos colaterais são mais do que certos.

domingo, 20 de janeiro de 2008

Visões - 5

Amanita Phalloides (o mais perigoso cogumelo conhecido)

O fim da ironia

Há dias, no "Combustões":
Com Sir Edmund Hillary, agora levado pela Parca, já poucos heróis trágicos restarão. Que me lembre, Neil Alden Armstrong, com 77 anos, é um sobrevivente dessa raça de gigantes que passou de moda. Os tempos de glória - glória mercenária, glória para marketing - ou vão para os gladiadores dos tempos modernos (os futebolistas, os motoqueiros, os corredores da Fórmula 1) ou para os santos laicos das ditas grandes causas que se profissionalizaram na arte de condoer o coração dos telespectadores. Não os considero, porém, heróis, mas angariadores de pífias cruzadas em que o Zé Ninguém descarrega em outrem a responsabilidade de curar as feridas da consciência colectiva. Os Life Aid, os Médicos disto e daquilo, as ONG's, os profetas do descalabro ambiental, todos eles, são a negação dessa heroicidade que se fazia de rasgos individuais de ousadia extrema. Os horizontes fecharam-se para as grandes aventuras individuais, todo o planeta deixou de ser mistério: há estradas, telefones, internet e hotéis no Tibete e nas estepes da Ásia Central, paquetes de luxo nos mares do Ártico, turismo exótico no Pólo Sul, para ver baleias e focas, Massai de telemóvel em riste no Quénia, heliportos no coração da Amazónia, satélites e GP'S para navegadores solitários perseguidos pela CNN. O mundo perdeu a magia e o feitiço. A geração dos gigantes e dos heróis passou à história...

Acrescento que não é o homem que escolhe o seu destino, mas sim o destino que escolhe o homem. É nesta visão do heroísmo individual que assenta o teatro grego. O profundo significado da tragédia está simplesmente na ironia: ela trata não dos pontos fracos dos protagonistas, mas dos seus méritos. O herói é empurrado sem apelo para a metáfora trágica não pelos seus defeitos mas pelas suas virtudes. Será que já esquecemos este legado fundamental?

sábado, 19 de janeiro de 2008

Preces atendidas - 21

A corrida ao ouro

Fazem falta novas latitudes na Guarda. Novas raças. Raças novas. Gente a fazer o pino. Gente a não fazer o pino, mas a tentar. Gente com outros movimentos, outro zénite. Gente com outra música no olhar. Gente com outra língua, outro prazo de validade para os gestos. A Guarda foi feita para os grandes voos, as eternas ambições. Os felizes momentos em que a irrealidade se mistura com a suspeita de uma vereda não sinalizada. O lugar da simplificação do desejo e do esquecimento. Um Olimpo de granito com pronúncia cerrada e um jeito irresponsável de sonhar.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Sucupira


Como escreveu Yeats "Nos sonhos começa a responsabilidade". Ou seja, a nossa responsabilidade começa na responsabilidade de imaginar. Todavia, por mais que nos esforcemos, a voragem e a imprevisibilidade do real engole esses tímidos lampejos com a maior das facilidades. Ontem fui visitar um cliente, actualmente a cumprir pena num estabelecimento prisional algures neste país. Depois de tratados os assuntos relativos á sua defesa, confidenciou-me o seguinte: nesse estabelecimento, todos os pedidos de transferência dos presos são sistematicamente recusados. Será devido à perigosidade que envolve a deslocação? Razões de oportunidade, ou falta dela? Sobrelotação nos EPs solicitados? Nada disso. No estabelecimento em causa, existem 58 reclusos e imagine-se - 40 funcionários. Ora, de acordo com as novas regras do Código de Processo Penal, resultou uma diminuição substancial da aplicação de prisão preventiva. Basta agora juntar dois e dois. São os funcionários que estão em pânico por falta de "clientes". Ao fim ao cabo, a razão de ser do seu emprego. São os cidadãos efectivamente condenados a pena de prisão que pagam a factura da irracionalidade na gestão de pessoal afecto à D.G.S.P. Pois a previsível diminuição da população prisional operada pelo novo CPP não foi acompanhada pela redução dos efectivos. Mantendo-se uma ratio aberrante como a mencionada na maioria dos EPs. É assim que funciona, em muitos casos, a Administração Pública. Primeiro criam-se os serviços. Depois vão-se engordando, muitas vezes para satisfazer clientelas eleitorais. Um dia, cessa a sua razão de existir, ou desaparece o fundamento para a sua dimensão. De modo a que acabam por sobreviver alimentando-se a si próprios. Tornam-se uma redundância, uma abencerragem paga pelo erário público. Isto é, são capazes de engordar até à obesidade mórbida, mas quanto a emagrecer, tá quieto ó preto. Para aqueles que não se lembram, ou não viram, a notável telenovela "O Bem-Amado", que passou em 1982, contarei em resumo a história. Sucupira era uma pacata cidade ficcionada do nordeste brasileiro. Tinha um Prefeito, Odorico, (numa interpretação memorável de Paulo Gracindo, na foto) um político cheio de "qualidades": corrupto, ditador, demagogo, chantagista, adúltero e sei lá mais o quê. O seu objectivo número um era inaugurar o novo cemitério, a jóia da coroa do seu magistério. Até contratou um pistoleiro. Mas debalde, pois a côncava funda teimava em não chamar ninguém para junto de si. Até que acabou por ser o autor a estrear a obra. Pois bem, mutatis mutandis...

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Mosaicos - 3





Jaime Hernando Osorio Jaramillo, Sementes


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quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O fascismo não tarda

Dois textos de leitura obrigatória:
1. "PS, S.A.", de António Barreto, publicado no "Público" em 30.12.2007. Uma radiografia do tenebroso assalto às grandes empresas do sector público e privado pelo Partido do Governo. A fase seguinte, depois de ter tomado o aparelho do Estado. Esta ofensiva, de que o caso BCP é só o sinal mais visível, tem sido convenientemente silenciada pela dócil comunicação social.
2. "Os "Velhos do Restelo" contra a West Coast da Europa", de Pacheco Pereira, versão publicada no "Abrupto" de um artigo saído no "Público" em 12.1.2008. A desmontagem do clima de intimidação e os ataques ao pluralismo por parte da maioria socialista e seus comentadores avençados. Comum, de resto, aos clones do actual patético PSD. É o sacrifício da política às mãos do marketing. Este texto notável vem na sequência da polémica aqui assinalada.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Contas furadas

Aos políticos, grandes pequenos ou médios, aprendizes de políticos grandes, pequenos e médios, grandes aprendizes de pequenos políticos, respectivas famílias, primos afastados, correlegionários maixegados, respectivíssimos satélites e esposas, homens da regisconta aparelhística, autarcas, amigos do peito dos autarcas, amigos de betão dos autarcas, afilhados das éeme dos autarcas, primos dos afilhados das éeme dos autarcas, amásias e amásios dos autarcas, zé lobi, manel lobi, quim lobi, irmão gémeo do quim lobi, mário lolo, lobi propriamente dito, sócio do lobi, ex do cunhado do sócio do lobi, tó marreco que tem um primo na PJ que lhe entregou umas escutas telefónicas catitas, zé pixa que ia a passar e ouviu um palpite, a todos aqueles, sem excepção, que compraram uns terrenozinhos na zona da Ota, aqui vai a minha solidariedade e o meu aconchego, enquanto não vem, naturalmente, um apoio de emergência a fundo perdido.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Momentos Zen - 32

Silêncio - e um dedo apontando o Caminho.
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Puro prazer


Na caixa de comentários do post com o guia dos bares "free smoking" (link ao lado), no "Origem das Espécies, descobri um blogue a reter: "Aquela Opinião", da autoria de João Gomes. Um apreciador dos pequenos grandes prazeres da vida, como se nota. Em especial dos puros habanos, a quem dedica uma rubrica onde apresenta várias marcas dos famosos charutos. Que aparecem como a verdadeira pièce de résistence do blogue. Fiquei a saber, por exemplo, que existem vários sítios, onde é possível adquirir online todo o tipo daqueles requintados objectos de prazer de combustão lenta. E também encontrar abundante informação sobre a sua história, variedades, processo de fabrico, quais os vintage, etc. Acedam ao Puros, ao Clube do Charuto da Casa Havaneza, ao Cigars Club ou ao Cigarworld e comprovem. É aproveitar agora, enquanto a ASAE - esse simpático grupo de mórmones que velam pela nossa saúde - não mandar encerrar tal comércio. Aliás, vendo bem, é um erro apontar o dedo aos executores do absurdo. A atitude correcta é corrigir a pontaria em direcção aos políticos que o legislam, o aprovam e dele beneficiam. Os tais da "ética da responsabilidade" e do país-spa.

Desobediência civil (2)


Tem ecoado na blogosfera, e não só, uma das polémicas mais interessantes e virulentas dos últimos tempos. Tudo começou com um artigo de opinião de Pedro Magalhães no "Público" (7.1.2008), intitulado "Liberalismo de pacotilha". A resposta não tardou, pela mão de Vasco Pulido Valente (link só para assinantes), com o notável texto "Ordem e muito respeitinho". A questão de fundo é naturalmente a recente fúria regulamentadora do Governo - maxime a lei do tabaco - e a actuação da ASAE. Já aqui disse o que pensava sobre este assunto. Todavia, os argumentos trazidos por Pedro Magalhães revelam um agastamento que não lhe conhecia e um tom punitivo que deixou de surpreender. Adiante. Ora bem, quais os argumentos enganosos apontado por P. M. aos "liberais de "pacotilha"?
1º Invocam o interesse cultural, por tudo e por nada, para defenderem a "sua" tradição. Chega mesmo a equipará-los aos turistas do Norte da Europa que nos visitam todos os anos: o "pitoresco" é muito giro para visitar e saber que existe, desde que sejam os outros a levar com ele todos os dias.
2º Encaram determinadas proibições legais como um invariável atentado à liberdade, ou até um primeiro passo na abolição de direitos políticos fundamentais.
3º Na qualidade de "fatalistas", aceitam as limitações à liberdade enquanto cultura cívica e não por imposição legal. P.M. conclui que, no fundo, desejam que tudo fique como está. Aliás, recomenda mesmo aos tais liberais uma visita aos países anglo-saxónicos, para verem como a lei é respeitada e cumprida, mesmo que doa.
Ora, creio que os primeiro e terceiro tópicos de discussão trazidos pelo autor não são sequer sérios. Comungam do mesmo truque retórico, que pode ser definido como a afirmação do consequente. Isto é, uma falácia em que se ignoram outras causas a partir da ocorrência de um efeito. A fórmula seria: P, então Q; Q; então, P. Exemplo: "se estiver a chover (P), o correio atrasa-se (Q). O correio atrasou-se (Q), então está a chover (P). O segundo, pelo contrário, é motivo de algumas reflexões. Quer por si próprio, quer pelo que arrasta consigo. Obviamente, P.M. posiciona-se do lado "progressista" da opinião pública. Do outro lado, por exclusão de partes e unicamente por conveniência narrativa, coloca os "liberais". Os quais, para o efeito pretendido, subsume aos conservadores. Esquecendo-se que, hoje em dia, ser liberal ou conservador não é o mesmo e também já não é o que era. Mesmo que as categorias coincidam, o que é possível, a regra é que assim não aconteça. Ser conservador é quase sempre "uma forma de cepticismo", como dizia Borges. Ser liberal é uma qualidade compósita, que vai beber às referências mais díspares. Desde Max Stirner a Gianni Vattimo. De um modo geral, prezam a independência, a responsabilidade individual. Desconfiam da manipulação e do autoritarismo. São difíceis de arrumar no emergente espectro político de séc. XXI. É precisamente isso que confunde e irrita o articulista. A propósito do paternalismo estatal, PM sacou da cartola Stuart Mill, que identifica como o mentor dos liberais, o que faz com um subtil tom depreciativo. Conclui então que as limitações à liberdade são legítimas, desde que os comportamentos envolvidos sejam "nocivos" para os outros. De acordo, se as regras da civilidade ou o direito penal apreenderem tal abuso de direito. Todavia, para P.M. o atributo "nocivo" é um saco sem fundo: equipara o consumo do tabaco em locais públicos à condução sob efeito de álcool e ao estacionamento selvagem. Este raciocínio é perigoso. Pode fundamentar a responsabilidade penal objectiva. Mete no mesmo saco a criação concreta de um risco para a vida e integridade física do próprio e de terceiros, ou a infracção a regras do código da estrada tendentes à liberdade de circulação e a suspeita, não comprovada cientificamente, de que o fumo passivo pode causar doenças. É claro que o fumo em espaços fechados incomoda os que não fumam (a mim também, pois deixei de fumar; aliás, por falar nisso, se fumar é uma questão privada, deixar de o fazer também é). Para contentar gregos e troianos, bastaria uma repartição racional dos espaços, sem estigmatizar ninguém. Ora, culminando o seu raciocício, P.M. defende, no limite, que se proíbam comportamentos que têm consequências nocivas exclusivamente para aqueles que os adoptam, sem que isso implique necessariamente uma colisão com a liberdade de escolha individual. Chegados a este ponto, qualquer convergência é impossível. Repare-se que, de acordo com esta bitola totalitária, poderíamos perfeitamente aí incluir, por exemplo, a edição de livros "impróprios", a exibição de arte "decadente", o consumo de qualquer tipo de estupefacientes, a obesidade, os piercings, o mau hálito, o Luiz Pacheco, o campismo "selvagem", as sandes de coiratos, a pornografia, os pêlos do nariz, a partilha de ficheiros na net, os cultos esotéricos, os ovos frescos, os míscaros, etc. E é precisamente aqui que há que saber ser intransigente. Não reconhecer qualquer legitimidade ao Estado para nos dizer que não podemos fumar um charro, comer uma arrozada de míscaros, ou que tenhamos que acreditar, impávidos e serenos, no marketing quotidiano do primeiro-ministro, dos seus homens de plástico e respectivas réplicas no Bloco central, todos inodoros, insípidos, sem convicções, permanentemente monitorizados por legiões de spin doctors, zelosos em erradicar tudo o que sinalize a autonomia individual, que substituíram a política pela TV Shop, os camaradas pelos sócios, a grande mentira pelas pequenas meias verdades. Em suma, saber opor à sanha totalitária a virtude do vício e a delícia do erro.

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sábado, 12 de janeiro de 2008

Contraponto (4)

"O que um gajo escreve é sempre invenção." Palavras de Luiz Pacheco na sua última entrevista publicada, aos jornalistas Ricardo Nabais e Vladimiro Nunes, do semanário "Sol". Às tantas, lança o camafeu, imagino que com ar canalha: "Um gajo fica deitado na cama. E a gaja faz-lhe o broche. Até aí, é como o outro. É trivial. Mas de repente é de pino: a cama está encostada à parede, ela faz o pino, abocanha, apoia os pés na parede, está para ali a funcionar e um gajo à espera que ela de repente caia, porque tem uma mão apoiada na cama. Um gajo, se pensa, começa a ver o perigo que aquilo é. Se ela, de repente, se chateia, perde o equilíbrio, e lá vai… Mas isto são coisas que saem, porque um tipo não está a fazer pose." Bom, leiam a entrevista, porque vale mesmo a pena. E talvez (re)descubram a identidade literária de Luiz Pacheco como uma invenção impar.

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Balanxo


A convite do Américo Rodrigues, autor do blogue "Café Mondego", elaborei uma lista assinalando o que de positivo e de negativo aconteceu na Guarda no ano que passou. A iniciativa dos balanxos nasceu e decorre naquele espaço, estendendo-se a uma série de convidados a quem A.R. lançou o repto. Recomendo a leitura desses textos.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Smoking zone


Há coisas que só mesmo na blogosfera podem funcionar. No "Origem das Espécies", Francisco José Viegas surgiu com uma feliz iniciativa. Assim, com a ajuda dos leitores, criou um utilíssimo guia nacional dos cafés, bares e restaurantes onde é permitido fumar. O qual se encontra em permanente actualização. A listagem está disponível a partir deste blogue, mediante uma ligação no sidebar.

NOTA: como já por várias vezes referi, deixei de fumar há cerca de um ano. Com esta mensagem pretendo demonstrar que, no combate ao terror higienista em curso, certos valores civilizacionais são muito mais importantes do que a simples conveniência pessoal...

Ah, disse ele...

Desobediência civil (1)

1. Dois artigos de opinião recentemente publicados no "Público" expressam uma preocupação comum com a ameaça infligida pelo Governo às liberdades e à independência dos cidadãos. São eles "Sócrates e a liberdade", por António Barreto (6 de Janeiro) e " Primeiro-ministro ou 'personal trainer?", de Helena Matos (7 de Janeiro). Barreto exprime a sua apreensão pelo higienismo em marcha e a dimensão do autoritarismo e controlo do Estado sobre os cidadãos: O Primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três décadas.TEMOS DE RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo... Helena Matos faz um retrato implacável do Primeiro-ministro, aludindo ao seu jogging como uma metáfora do seu estilo de governação, o erzatz do actual momento político : Dir-se-á que era tempo desta geração chegar ao poder. Claro que sim. Mas o que nos sobrou não foi um líder com convicções políticas ou um homem temperado pelos factos. Foi sim um produto da máquina partidária. E por isso Sócrates governa como corre: começou por correr vinte minutos, agora faz meia maratona. A própria concepção que tem do poder é a dum personal trainer. E o seu objectivo é transformar o país numa espécie de spa. Sócrates trocou o socialismo pela saúde. As polícias políticas pela ASAE e pelas balanças. Transformou os fumadores numa espécie de inimigo público. Os gordos virão a seguir. (...) Sócrates tem de correr, correr cada vez mais. Porque acredita que o impulso de cada uma dessas passadas se pode tornar no movimento perpétuo que o manterá no poder.
2. Barreto coloca a hipótese do retorno do fascismo. A questão não é despropositada. Bem pelo contrário. Nas sociedades do espectáculo difuso (Debord) em que vivemos, o (neo)fascismo dispensa o Estado totalitário, mas não o totalitarismo. Passa bem sem a censura, mas não sem o medo. Não pretende restaurar uma ordem pré-iluminista, mas uma utopia eugénica, onde as diferenças são subtilmente anuladas. É-lhe indiferente a submissão, mas não floresce sem o culto narcísico. Não nega as liberdades, mas administrativiza-as. Neste cenário hedonista, o Poder decide que somos todos iguais. Pois a ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Pois nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância. O Estado sabe tudo acerca dos cidadãos, dado que é no seu interesse que o faz. Dá-lhes bons conselhos, protege-os do risco, da tentação, do vício. Sufoca-os com o abraço do urso. O preço desta vigilância assistencial é o controlo. A lei do tabaco é só a etapa mais visível e imediata do programa sanitário. As investidas fiscalizadoras da ASAE, embora compreensíveis à luz do combate à contrafacção e em prol da saúde pública, são muitas vezes provocadoras e humilhantes para os visados. O espectáculo hollywoodesco das máscaras e das correrias tem fins de prevenção geral para toda a nação. É o papão que faz tremer de medo um país pré-higiénico, pré-normalizado. Tudo isto para acabar com a chamada economia paralela. Aquela que não gera tributação. Refiro-me à rede de pequenos serviços, muitas vezes familiar, à produção de subsistência, ao pequeno comércio de rua, muitas vezes ligado às tradições culturais, festivas e gastronómicas. Tal como a obra de Kafka demonstra, o verdadeiro prazer do esbirro ou do polícia está em incomodar os outros por razões fúteis. Não por motivos legítimos, palpáveis, reconhecíveis. É precisamente a gratuitidade da ameaça, o tom aleatório do medo, o que torna o totalitarismo tão absurdo quanto real.
3. W. H. Auden, poeta e escritor inglês, viveu na primeira metade do séc. XX. Antes da ascensão do nazi-fascismo, integrava os círculos fabianos e o grupo progressista de Bloomsbury, onde pontuava Virgínia Woolf, H. G. Wells e Bernard Shaw. Desiludido com a traição de Munique, o apaziguamento que se lhe seguiu e o Pacto de não agressão Hitler-Estaline, foi para os Estados Unidos, logo no início da Guerra. Onde escreveu um extraordinário e profético poema, deveras apropriado para os dias que correm:
Rostos ao longo do bar/Agarram-se ao dia mediano;/As luzes nunca deverão apagar-se,/A música deverá sempre tocar, (...) Com medo que descubramos onde estamos,/Perdidos numa floresta assombrada,/Crianças com medo da noite,/Que nunca foram boas ou felizes.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Contraponto (3)


Andei ontem a vasculhar pela casa, nos arrumos em forma de biblioteca, as existências do
Luiz Pacheco, cuja bibliografia completa pode ser consultada aqui. O rol do que foi encontrado vai assim composto:
1. "Exercícios de Estilo"", 1973, Ed. Estampa. Esta colectânea inclui, entre outros textos, "O Teodolito", "Comunidade", "O que é o neo-abjeccionismo", "Um casto milagre", "O caso das criancinhas desaparecidas", "Conversa de três" e "O caso do bife voador".
2. "Pacheco vs Cesariny", 1974, Ed. Estampa. Reune correspondência entre ambos, de Luiz Pacheco com várias figuras do mundo artístico e editorial, e ainda fac-símiles de desenhos, bilhetes manuscritos, fotografias e manifestos colectivos, como o célebre "Caca, Cuspo & Ramela" (Pacheco, Natália Correia e Manuel de Lima).
3. "Textos de Circunstância", 1ª edição, 1977, Fronteira. Contém, por exemplo, a "Carta Sincera a José Gomes Ferreira e o panfleto "A PIDE nunca existiu". (Já vi pedir 50 euros por volume idêntico, no portal oficial não-oficial de L. P. Ups!)
4. "O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o seu Esplendor", 1992, Colibri. Tem um prefácio de Victor Silva Tavares e textos de Maria Alice Veiga Pereira, Júlio Moreira e Alexandre Pinheiro Torres.
5. "O Teodolito", "composição neo-abjeccionista", incluído na antologia "Surrealismo/ Abjeccionismo", organizada por Mário Cesariny, Edições Salamandra, (edição fac-similada da original, publicada pela Minotauro, em 1963)
6.
O poema "Coro de escárnio e lamentação dos cornudos em volta de S.Pedro", incluído no volume "Antologia da poesia erótica e satírica", organização de Natália Correia, 1999, Antígona (1ª edição, 1966, Afrodite). O texto pode ser encontrado aqui.
7. Revista "Ler", nº 31, Verão de 1995, com um dossier especial dedicado ao escritor.
8.
Revista "Periférica", nº8, 2004, com excerto de "Diário Selvagem" (referente a 1993, inédito) e "Luiz Pacheco em Massamá - ou retrato do escritor enquanto alcoólico", um dossier assinado por João Pedro George que inclui alguns textos dispersos de L.P., publicados em jornais.
9. Um arquivo abundante, incluindo as célebres entrevistas à revista K e a João Pedro George, a transcrição de uma entrevista inédita, efectuada pelo meu amigo Pedro Baptista -Bastos em 1994, registos em vídeo, uma reprodução da capa do panfleto "O caso do sonâmbulo chupista" e um bilhete da peça "Comunidade" (Teatro do Bairro Alto, 1988), uma encenação de José Carretas com interpretação memorável de Cândido Ferreira. (Nota: poderão ver aqui uma fotografia do espectáculo.

Agora, mais do que tecer hagiografias ou encómios de circuntância, (re)leiam o Pacheco. Dele acabará por ficar o que escreveu. A verdadeira pièce de résistance. O resto resumir-se-á à lâmpada de um novo Diógenes. Pela minha parte, já descobri material para (re)começar.

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Blogossário - 7

Fisking - uma refutação, ponto por ponto, de uma entrada num blogue ou de uma notícia. Um fisking com estilo é espirituoso, lógico, sarcástico e impiedosamente factual; os exageros e as depreciações são mal-vistos. O nome advém de Robert Frisk, um jornalista inglês que era muitas vezes (e merecidamente) alvo de tal tratamento.

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Jamais, jamais

Só umas questãozinhas: porque é que o homem da fotografia ainda faz parte do Governo? Alguém de boa fé acredita nas explicações de Sócrates para esta viragem? Será a "ética da responsabilidade" a funcionar?

Contraponto (2)

Sobre Luiz Pacheco, três textos de leitura obrigatória:

1. "Lá se despachou finalmente, coitado, o Pacheco", de Paulo Querido
2. José Mário Silva, no Bibliotecário de Babel.
3. "O Portugal de Luiz Pacheco", de Rui Ramos, no "Público" de ontem.

Não resisto a citar o segundo: "Morreu o Pacheco. O escriba sem medo, o maldito, o bendito, o sacripanta, o pelintra, o míope, o desbocado, o crava, o madraço, o arrasa-livros, o salva-livros, o editor extremoso, o pai aflito, o prosador desassombrado, o lúbrico, o chico-esperto, o espalha-brasas, o fura-vidas, o franco-atirador, o asmático que berrava, o trafulha , o remetente de cartas intermináveis e outras fúrias epistolares, o abjeccionista, o lírico inesperado, o procrastinador, o coscuvilheiro, o crítico que atirava à cara tudo o que tinha a dizer, o marginal, o amigo da onça, o polemista sem meias medidas, o hiper-lúcido, o inimputável, o português mais português de Portugal (no seu jeito malandro de oscilar entre a grandeza e a miséria)."

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

Preces atendidas - 20

Ava Gardner

Ser ou não ser

1. Não me espantaram as hesitações cirúrgicas de Sócrates ao longo da semana, relativamente à forma de aprovação, pela ordem jurídica interna, do Tratado de Lisboa. "História da carochinha" é como lhe chama, com propriedade, JPP. "Vómito", diz o Maradona. Considero que se trata, sobretudo, de teatro de má qualidade. Uma encenação medíocre para um remake de um monólogo hamletiano. Onde o príncipe, torturado pela dúvida e atemorizado pelos recados sibilinos que lhe chegam das cortes europeias, acaba por declarar à populaça que não teve outro remédio senão mandar assinar o novo regulamento da intendência pelo seu Conselho Privado. Afinal, o parco tributo que o remorso por uma promessa não cumprida teve que pagar à realpolitik. Com um episódio paranormal pelo meio, a "ética da responsabilidade". Kant deve ter espumado de indignação na sua cova. Mas se a encenação é má, o produto mediático é convincente. Por esse lado, a vida tem corrido bem a Sócrates.
2. Malgré tout, a solução encontrada, isto é, a aprovação por via de ratificação parlamentar é, sem dúvida, a mais acertada. No artigo "Quatro notas sobre o referendo", Rui A. explica de forma lapidar porquê. A ideia de que o processo de integração europeia pressupõe um conjunto de opções necessariamente vanguardistas foi decisiva na minha convicção. E não é pela ausência de um plebiscito desnecessário que os processos típicos de decisão democrática, ou a soberania dos vários estados-membros ficam diminuídos.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

O 1º de Abril é quando um homem quiser

Que fique claro, pela pintilhésima vez: É TUDO MENTIRA!

domingo, 6 de janeiro de 2008

Contraponto (1)

jornal "Público"
Notícia
Dossier no "Público" (só disponível para assinantes, com excepção do texto "A Vida Solta", de Alexandra Lucas Coelho, que poderá ser encontrado também aqui)
Portal oficial não-oficial
Página no Triplov
Entrevista a João Pedro George (Maio de 2005)
Entrevista à revista K, por Carlos Quevedo e Zui Zink (Julho de 1992)

Stalker

Serra da Freita

sábado, 5 de janeiro de 2008

Auto de notícia

Homem "apanhado" a fumar em café de Elvas foi levado à esquadra. A PSP local tomou conta da ocorrência, levantando de imediato a respectiva contra-ordenação ao infractor. Ler aqui a notícia completa. Mas a história poderia ter um final feliz. Bastava que o perigoso meliante declarasse à "óturidade" que naquele momento estava "só" a fumar uma chinezinha. "Pronto, se era isso, vá para casa e à próxima arranje uma chinoca sem fumo", atirou o agente, dando um estalido com a língua por entre os dentes e uma piscadela marota para o colega. O qual emendava pela quadragésima vez a palavra argido. Arguido. Ar-gui-do. Porra.

Lido

A cigarra e a formiga
Em Portugal a fábula da cigarra e da formiga tem actores designados. José Sócrates faz de cigarra, Cavaco Silva de formiga. Basta comparar os discursos do primeiro-ministro e do Presidente para se perceber o que os divide. E é tudo. Está tudo nos seus discursos de Natal e de Ano Novo. Um está eufórico com o presente, o outro pensa no futuro.

Fernando Sobral, em " O Pulo do Gato"

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Momentos Zen - 31

Devemos alcançar a existência perfeita através da existência imperfeita

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quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

A passagem

Barragem de Montargil, na véspera de Ano Novo, no mesmo local do ano anterior

O que faz falta é avisar a malta...

Tecnicamente, a Lei 37/07, de 14 de Agosto, conhecida como "anti-tabaco", não é uma lei proibicionista. Limita-se a vedar o consumo do tabaco em determinados locais, a aquisição a menores de 18 anos, impor sanções aos prevaricadores, regulamentar as máquinas de venda e extracção de fumo nos locais onde é permitido fumar e pouco mais. As novidades do novo diploma poderão ser consultadas aqui. Mas não é em relação ao conteúdo da nova regulamentação que poderão ser levantadas as maiores objecções. Que fique inclusive salvaguardado que sou um ex-fumador. O problema está nas circunstâncias em que entrou em vigor, o modelo economicista que lhe subjaz e a ofensiva contra as liberdades e a esfera privada dos cidadãos promovida por este Governo. Um normativo destes tem consequências imediatas e drásticas. Esperava-se que o Governo pusesse em primeiro lugar o mais importante: as pessoas. Como? Criando previamente uma rede alargada e eficiente de consultas anti-tabágicas; comparticipando substancialmente os produtos farmacêuticos de substituição; promovendo, com a devida antecedência, campanhas de sensibilização junto dos cidadãos e dos agentes económicos. Os impostos arrecadados com a venda do tabaco chegavam e sobravam para financiar tais campanhas. Todavia, pôs-se em primeiro lugar as receitas provenientes da coimas que aí vêm. A reforma caiu de surpresa, sem uma avaliação do seu impacto, imposta de forma autoritária, à maneira jacobina, como os socialistas tanto gostam. Não conseguindo reprimir o gosto que têm em modelar por decreto-lei o comportamento das pessoas, o que elas devem ou não fazer na sua esfera privada. O debate ontem na RTP N demonstrou isso mesmo. Do lado da nova lei estavam dois paladinos: um médico e uma jurista do Ministério da Saúde. O primeiro, com ar limpinho, parecia uma testemunha de jeová tentando convencer os incréus. Só que, em vez da boa nova, empunhava umas estatísticas duvidosas e uma modernidade de conveniência. A segunda tinha a proverbial estupidez fotogénica das inumeráveis girls que o poder socialista vai nomeando ao desbarato. Com uns trejeitos esquisitíssimos e uma fidelidade canina à sopa do convento socrática, lá ia defendendo o indefensável, exibindo uma arrogância morna e burocrática. Enfim, esta sucata de boys and girls foi o melhor que a nomenklatura conseguiu arranjar... Em resumo, esta lei, embora aceitável nos pressupostos, pela sua génese criou um precedente que faz temer o pior.