quarta-feira, 31 de maio de 2006

6 Variações


INDIFERENÇA
Gostamos de ver o charlot
guerrear com as nossas
estátuas de gelo

ZEN
Gostamos de percorrer
ramo a ramo
o lótus adormecido
nas nossas mãos cegas

SONHO
Gostamos de pintar uma asa
no pó das cavernas profundas

DESEJO
Gostamos de não esperar
o gosto acre do outono,
a dança ímpia da primavera

NAXOS
Perguntam-nos que flor pode ter
o nome de ariadne:
se fulgor de cavalos jovens na neve,
se espelho reflexo de água

NOCTURNO
Chama-te a minha voz
e chama apenas
o teu nome em mim...

in "Labirintos"

terça-feira, 30 de maio de 2006

O Código d´Avintes anda aí a circular nas livrarias e feiras do livro. Broa! Isto é, boa... malha! Simples, ou com manteiga, é do melhor que há. E bibópuorto!

Diário de um Tolo - 2

Variações sim porém não é o antónio mas o sebastião goldberg que o náufrago gould das produções vintage toca como ninguém é o que estou a ouvir mas aposto que isto vos interessa tanto como o número exacto de virgens que o imperador heliogábalo mandou desfilar em roma depois da conquista da síria montadas em elefantes ao som dos címbalos e dos cânticos das vestais eis que vivemos num tempo impossivel para a loucura e para a doce crueldade o gajo toca mesmo ah pacheco luiz que agora convives com os mortos anunciados e proibidos nesta coisa clean e jovial são encomendas que urge despachar quanto antes o que interessa é o perfil apresentável e dinâmico não é verdade ó emproados que não sabeis apreciar uma vinha em setembro ou uma criança grande que parte copos demasiado frágeis para a sua alegria e o seu amor deserto porque nada é igual a isto nada nem a morte a morte na luz desesperante na queda de uma parte de deus no centro de um círculo ilusório e como que ponto vivo das palavras de elsinore as do país da magia do abandono da nudez da modificação e do despojamento talvez o destino insensato do viajante no deserto não é verdade ó enfatuados preâmbulos de coisa nenhuma superlativos rançosos da opevê da vidinha entre o job a domus e o poema que jamais esperará por vós sim vós que nem sequer sabeis olhar para a vossa escolhida como uma aparição diária vós angariadores do tempo mas não de um tempo o tempo de bach que agora escuto vós os apressados inúteis na bestial tarefa de prescrutar a vossa inutilidade patética bach ilumina-me joyce vem também o meu ódio cresce tanto como a urgência do amor a neve continua a cair conheço-lhe o sabor tal como o de um relâmpago estendido à beira do outono e cujas forças experimento sem saber porquê risível transporte patética fantasia imprudente erudição venal condescendência
afinal a neve não existe
só aves cegas rodopiando em busca de terra

quella sí lontana sorrise e poi si tronò all'eterna
fontana
depois só ficará a minha lágrima de ray que ainda não parou de me enganar
tão
docemente.

Nota de rodapé, em jeito de legenda: a Guarda em Fevereiro, vista de casa.

O Guronsan

AAAAAAAGGGGGGHHHEEEE!
(Acordo)
HUGA, HUGA. TRÂNSITO KABUNGA?
(Pergunta a locutora na rádio, num debate incompreensível)
PPPPRRRRREEEEE...EEE....PFFFF.
(Respondem-lhe os meus intestinos com mestria)
XXNEQUE...SCAFE...PLIMMMM...PUNGGGG...
(A mão tacteia à procura do Guronsan)
UUUFFFFFFHHHH!
(Suspiro de alívio ao encontrar o Guronsan)
RRGGGGGEEEE...CRICC...RRRRAL...
(Range a cama quando me levanto)
KKTRIIIIMPLASHHH....
(Lá se foi um vaso de estimação da minha avó antes de chegar à cozinha...)
TTCCCCHHUUUFFFFFFH...PLIC
(Encho um copo de água)
PLOCHE...PLIC...PLIC...
(O Guronsan cai no copo e saltam duas gotas de H2O)
FFFSSSSSSSHHHHHHHHEEE...
(O Guronsan dissolve-se)
GLUP, GLUP, GLUP...
(Bebo o líquido efervescente)
BLHAC!
(Vai tu!)
AAAARRRRRG!
(Arroto)

Como já dizia Rimbaud: "Je est un autre"

segunda-feira, 29 de maio de 2006

Lido

Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.



Fernando Pessoa/Bernardo Soares, O Livro do Desassossego

O Circo democrático

O primata da Atlântida tem um acordo tácito com este país e que, valha a verdade, tem cumprido escrupulosamente: para gáudio da plateia e para combater a proverbial tendência depressiva da nação, aparece periodicamente no galho mais alto, perdão, nos media e, aclamado pela assembleia, dá início ao seu one monkey show (perdoem o trocadilho fácil, mas não resisti). Depois de distribuir mais umas bananas pelo clã, debita então uns soundbytes que vai tirando da cartola - que usa como sinal distintivo da sua preponderância - enquanto bate furiosamente na barriga, apontando para leste, terra dos macacos grandes que, supostamente, querem disputar a ilha da sua tribo e roubar-lhe a comida. Cada gesto mais expressivo, ou cada onomatopeia mais desafiadora, são imediatamente reproduzidos pelos macacos dos galhos inferiores, numa sintonia unânime e típica, temendo que, se não o fizerem, ficarão excluídos na próxima distribuição de bananas. Entretanto, e enquanto duram estes rituais, os humanos da ilha, não dispondo ainda de meios para a criação de uma reserva natural para fixação dos símios, vivem aterrorizados e amordaçados de todas as formas e feitios.
A história é sobejamente conhecida, tendo-se tornado mesmo objecto de estudo por paleontólogos e pseudólogos (pseudologia, ciência do quimérico, do falacioso). Há até quem afirme que Platão, em A República, deveria ter previsto mais esta modalidade de perversão totalitária, criada e alimentada pela democracia, algures na Atlântida.
Mas veja-se com maior detalhe a última homilia do celebrante macaco-chefe: desta vez exige a criação de um sistema judicial "regional", uma espécie de foro privado convenientemente inspirado por costumes locais e formado por macacos às ordens do chefe. Deste modo, a distribuição de bananas permaneceria intocada, os macacos do continente já não poderiam vir pedir contas e os macacos de todo o mundo teriam ali uma zona franca para poder trocar todo o tipo de bananas, sem que ninguém colocasse questões incómodas. Bravo! É de mestre! Atenção pseudólogos! Mesmo os piratas e flibusteiros de antanho, quando criaram uma rede global de "redistribuição" da riqueza, ao arrepio de todas as leis conhecidas, nunca deixaram de criar as suas, para uso interno: simples, cruéis e de uma lógica desconcertante. Em todo o caso, essas regras eram escrupulosamente aplicadas. Sem excepções. Ora, no nosso exemplo, a ideia seria desmantelar a última forma independente de controlo das tropelias simiescas do chefe y sus muchachos, visto que o controlo e a responsabilização por via política já deixaram de existir há muito. As portas ficariam abertas para o último passo: um regime de excepção, apto a assegurar a inimputabilidade permanente e vitalícia do seu líder.
Mas azar dos azares, as plateias menos desatentas já deixaram de se impressionar com estas macacadas. E já aprenderam que o show off esconde o medo e a insidiosa chantagem. E que esta mais não é do que a preclara antecipação de mais umas dotações extra para financiar a bananada local. Enviadas por correio expresso pelos macacos do continente, num assomo magnânimo e liberal. Como uma mesada que um pai desiludido já deixou de fazer acompanhar de prosélitas recomendações de bom comportamento, mas que, sem dúvida, ainda aliviavam a consciência de assim estar a alimentar a irresponsabilidade e o desvario. Até ver.

Publicado no jornal "O Interior"

domingo, 28 de maio de 2006

PÓS - POEMA (2)

passam os rios
como deuses
e as mãos revelam-se
no seu refúgio de areia.

passam os deuses
como sombras iluminadas
e logo se desenham nos álamos
bocas caiadas de verão.

passam os dias
como flâmulas cinzentas,
batalhas, frutos, searas

e um torpor longínquo
e amante nasce

uma insaciedade humana
cresce como o ganges
nas nossas veias
e torna-se imensa
como os deuses
como os rios

in "Labirintos"

quinta-feira, 25 de maio de 2006


A entrevista a LUIZ PACHECO por João Pedro George, saída no seu blogue em Maio do ano passado, foi um momento único para a reconstituição da memória da vida literária no séc. XX em Portugal. Brevemente voltaremos a este autor da nossa predilecção. Para já, a conversa poderá ser lida aqui

Revista

Publicação semestral de âmbito literário e artístico, cujo número inaugural saiu em Maio de 2004, a que se seguiram mais dois. Inclui textos literários, (conto, poesia), recensões, ensaios, artigos de opinião, trabalhos de investigação, desenhos, gravuras. O leque de colaboradores tem um âmbito nacional e internacional, compreendendo escritores, poetas, artistas plásticos e investigadores.

Edição: Aquilo Teatro, CRL
Direcção: Américo Rodrigues, António Godinho, Maria Lino
Design e Paginação: Alexandre Gamelas

Colaboradores: Ana García Varas, Américo Rodrigues, André Bandeira, António Bento, Bartolomé Ferrando, Carlos Alberto Machado, Domingo Sanchez, E. M. de Melo e Castro, Fernando Aguiar, Gerda Lepke, Ingrid Kerma, João Camilo, José Alberto Ferreira, José Manuel Pinto, José Oliveira, José Teixeira, Julien Blaine, Karla Woisnitza, Klaus Becker, Manuel Poppe, Manuel Portela, Maria Fisahn, Maria Lino, Pedro Dias de Almeida, Pedro Vilar, Rui Eduardo Paes, Rui Sousa, Sabine Peters, Sérgio Monteiro de Almeida e Vítor Viçoso


Pedidos para: aquilo.teatro@sapo.pt bocadeincendio@clix.pt
ou Livraria Leitura

segunda-feira, 22 de maio de 2006

A Ponte

Os sindicatos ligados à função pública decidiram agendar mais um dia de luta para a passada sexta-feira, vulgo, mais uma greve. Vendo bem, até estava sol, e um dia de luta com as filas de trânsito junto às praias não seria problema. E mais não digo...
aqui referi algumas razões da falência social e política dos sindicatos, da sua situação de reféns de um modelo de actuação esgotado e minado por interesses puramente partidários e demagógicos. Por exemplo, quando estive na Inspecção Geral do Trabalho, era vulgar virem trabalhadores ao serviço informativo induzidos em erro pelo seu sindicato, uma vez que este, em caso de litígio, informava os associados dos níveis salariais do CCT para o sector onde eles fossem mais altos e não, como seria normal, daquele que era efectivamente aplicável no caso concreto. Coisas...
Ora, sabe-se que a taxa de sindicalização em Portugal anda na ordem dos 25%. Nos países nórdicos ronda os 75%. Mas aí são autênticos parceiros sociais: as propostas sensatas e credíveis que apresentam são invariavelmente tomadas em linha de conta, quer ao nível da negociação colectiva, quer ao nível das condições de trabalho nas empresas. Ao invés, aqui tornaram-se, em grande parte, estruturas de bloqueio com tiques corporativos e em permanente sintonia com a agenda política do Partido Comunista.
É certo que em Portugal também não há um tecido empresarial digno desse nome e uma parte significativa dos empregadores são pequenas e micro-empresas onde é comum o recurso ao trabalho clandestino. Mas isso será motivo para outro post.
Voltemos então a este glorioso dia de luta contra...ora deixem cá ver..."ó raquel, passa aí o bronzeador!"...
Não será pois de admirar que, qualquer dia, expeditivas técnicas de marketing - sorteios de panelas de pressão ou leitores de CDs portáteis, p.ex. - venham "encorajar" a parca militância dispendida numa auto-intitulada "jornada de luta contra as políticas neo-liberais". Vai um aposta?

* Sobre a matéria, veja-se este divertido texto.

Leituras

Não resisto a divulgar aqui a crónica de Vasco Pulido Valente, no "Público" de ontem.
«Recebi uma carta assinada por três ministros (a sra. Ministra da Cultura, a sra. ministra da Educação e o sr. ministro Santos Silva), que me convidava para ser membro de uma Comissão de Honra do Plano Nacional de Leitura. [...] Propaganda por propaganda, resolvi responder em público que não aceito. Por várias razões. Em primeiro lugar, porque a carta e a “síntese do Plano” estão escritas num português macarrónico e analfabeto (frases sem sentido, erros de sintaxe, impropriedades, redundâncias, por aí fora). Quem escreve assim precisa de ler, e de ler muito, antes de meter o bedelho no que o próximo lê ou não lê. Em segundo lugar, não aceito por causa do próprio Plano. O fim “essencial” do Plano é “mobilizar toda a sociedade portuguesa para a importância da leitura” (a propósito: como se “mobiliza” alguém ‘para a importância’?). [...] Em terceiro lugar, não aceito porque o Plano é inútil. Nunca se leu tanto em Portugal. Dan Brown, por exemplo, vendeu 470 000 exemplares, Miguel Sousa Tavares, 240 000, Margarida Rebelo Pinto vende entre 100 e 150 000 e Saramago, mesmo hoje, lá se consegue aguentar. O Estado não gosta da escolha? Uma pena, mas não cabe ao Estado orientar o gosto do bom povo. No interior, não há livrarias? Verdade. Só que a escola e a biblioteca, ainda por cima “orientadas”, não substituem a livraria. E um hiper-mercado, se me permitem a blasfémia, promove a leitura mais do que qualquer imaginável intervenção do Estado. O Plano Nacional de Leitura não passa de uma fantasia para uns tantos funcionários justificarem a sua injustificável existência e espatifarem milhões, que o Estado extraiu esforçadamente ao contribuinte. Quem não percebe como o país chegou ao que chegou, não precisa de ir mais longe: foi com um número infinito de “causas nobres” como esta. “Causas nobres”, na opinião dos srs. ministros, convém acrescentar.»

domingo, 21 de maio de 2006

O Habilus e os malefícios da rede

Não é preciso ser pirata informático para, dentro da rede de computadores dos tribunais, consultar um processo alheio. Um magistrado do Ministério Público, que pediu para não ser identificado, relatou que dentro da rede de computadores, administrada pelo Ministério da Justiça, conseguiu aceder, por acaso, e em tempo real, ao despacho que um colega juiz estava a elaborar.
O caso aconteceu já há quatro anos, mas o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), António Cluny, tem recebido testemunhos de situações idênticas ocorridas mais recentemente.
Apesar de «nunca ter confirmado a veracidade dos relatos», os receios e as desconfianças de que os processos, alguns em segredo de justiça, pudessem estar ao alcance de terceiros foram suficientes para levar o SMMP a solicitar ao Ministério da Justiça, em finais do ano passado, que esclarecesse os procedimentos de segurança na utilização da rede.
António Cluny garante que o assunto «caiu no esquecimento» e que, até ao momento, o Ministério da Justiça não prestou qualquer esclarecimento.
*Ver notícia desenvolvida em Portugal Diário.

Crimes exemplares -1

João, de cinco anos,
atirou o pau ao gato,
mas o gato não morreu,

D. Xica assustou-se
com o berro que o gato deu
e... morreu.

Miau.

*Tal como este, poderão aqui encontrar mais alguns interessantes casos.

O regresso do Padre Casimiro



Tenho a felicidade de morar numa cidade onde não há, literalmente, futebol ao nível de clubes. Essa será uma razão necessária, embora não suficiente, para que a Guarda esteja posicionada no topo do ranking das cidades portuguesas com maior qualidade de vida.
aqui denunciei este autêntico case study para psiquiatras e antropólogos, que é o facto de adeptos e dirigentes do F. C. Porto e Sporting celebrarem as vitórias das suas equipas...insultando o Benfica. (Até já vi alguém denegrir o Simão Sabrosa, após a notícia de que integrou as escolhas de Scolari para a selecção, só porque foi ocupar o lugar que pertencia, por direito divino, a Quaresma e porque...ora adivinhem, é jogador do Benfica). Inenarrável.
Mas é relativamente ao F.C.Porto que o fenómeno revela maior acuidade. Para lá dos cânticos e das euforias dos triunfos, entremeadas pelos habituais insultos ao S.L.B., só entendíveis no momento em que decorreram, há uma outra retórica, ora primária, ora subliminar, esta sim mais perigosa. Basta percorrer a blogosfera e ler certos "comentadores" em jornais: é o regresso das proclamações miguelistas, da aversão atávica à modernidade e ao cosmopolitismo, preenchida à custa da diabolização do outro - os mouros, os de Lisboa, como se o País se reduzisse a isto - da militarização folclórica, da balcanização do país por via clubística, da demagogia impune do Sr. Pinto da Costa, para contentamento das casas de alterne, das agências de viagens para árbitros, dos caciques autárquicos, das claques especializadas em destruir estações de serviço e estádios alheios.
Mas este país, que o Senhor D. Miguel de Bragança não mesnosprezaria representar, num assomo patriótico, vem também, cúmulo dos paradoxos, suprema das ironias, reivindicar a associação dos êxitos desportivos do F.C.Porto à...modernidade e ao ciclo democrático, em ruptura com um suposto favoritismo do Antigo Regime ao Benfica! Bravo! Esta pérola sofística é altamente sedutora, mas a falácia enorme que esconde tem que ser energicamente desmascarada. Para já, nunca o Estado Novo beneficiou desportivamente o Benfica. Aproveitou-se, isso sim, para fins puramente propagandísticos, dos seus êxitos desportivos nos anos 60, ao mesmo tempo que desconfiava da raiz popular da sua massa associativa e da democraticidade do seu funcionamento interno, maxime a eleição dos dirigentes. Depois, se há alguma coisa com que o F.C.Porto possa ser imediatamente identificado é com a corrupção e o caciquismo que invadiu a vida pública em Portugal. Num país onde a Lei fosse levada a sério, já há muito tempo que os seus dirigentes teriam as pernas cortadas.
A título pessoal, já tomei algumas medidas sanitárias: retirei da minha lista de favoritos certos blogues, como "Mar Salgado", "A Origem das Espécies" e "Kontratempos", onde certos soundbytes portistas têm livre curso, desmentindo a qualidade global dos seus conteúdos. Enfim, no melhor pano...
Em contrapartida ficará, de pedra e cal, "A Cidade Surpreendente", um blogue que celebra o Porto, cidade cuja natural auto-estima nada deve a estas aberrações saídas da Patuleia ou do "Portugal dos Pequeninos", de cachecol ou não.

sábado, 20 de maio de 2006

As sombras

Sócrates - Imagina ainda o seguinte: se um homem nessas condições (depois de encarar a luz) descesse de novo para o seu antigo posto (a caverna), não teria os olhos cheios de trevas, ao regressar subitamente da luz do Sol?
Gláucon - Com certeza
Sócrates - E se lhe fosse necessário julgar daquelas sombras em competição com os que tinham estado sempre prisioneiros, no período em que ainda estava ofuscado, (...) acaso não causaria o riso, e não diriam dele que, por ter subido ao mundo superior, estragara a vista e que não valia a pena tentar a ascensão? E a quem tentasse soltá-los e conduzi-los até cima, se pudessem agarrá-lo e matá-lo, não o matariam?
Gláucon - Matariam, sem dúvida.
Platão, A República, Livro VII

O autor de Fédon parece dizer-nos, neste excerto da célebre alegoria da caverna, que o seu momento mais importante surge, não com a saída, mas com o regresso às sombras. Ora, se o mundo real torna possível a dianoia e a noesis, não é menos verdade que, a haver um sentido útil para a passagem de um mundo a outro, será o de dar depois a conhecer aos que vivem nas sombras o que está para além delas. Uma missão quase obrigatória, mas sem dúvida cheia de perigos e desilusões, como é aqui advertido.
Cuidado pois, muito cuidado quando se decide sair da caverna! Não é que me tenha tornado um pessimista, à maneira de Hobbes, mas pressinto que muito poucos quereriam a luz, sabendo o que isso implicaria, e quase ninguém regressaria para a diletante missão de divulgar a boa nova, sabendo o que encontraria de volta.

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Em alta...

Regiões mais pobres de Espanha ultrapassam a riqueza portuguesa

Em vez das costumeiras indignações, ou do condescendente masoquismo, normalmente associados a estas crudelíssimas estatísticas, propunha simplesmente ao leitor um instante de reflexão após ler esta notícia. Obrigado.

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Neno Vasco



Advogado, jornalista e escritor anarquista, nascido em Penafiel a 9 de maio de 1878. Seu nome era Gregório Nazianzeno Moreira de Queirós e Vasconcelos, mas ficaria conhecido por Neno Vasco.
Fez parte do grupo de estudantes da Universidade de Coimbra que aderiram ao anarquismo no começo do século.
Formado em Direito, emigrou para o Brasil em 1901, para se juntar a seu pai. Em São Paulo logo entrou em contacto com anarquistas como Benjamim Mota, Ricardo Gonçalves e os libertários italianos. Participou na edição de O Amigo do Povo, que começou a circular em 1902. Algum tempo depois lançou a revista Aurora, movimento editorial que haveria de contribuir para o crescimento da influência libertária nos meios operários. Nas páginas da Voz do Trabalhador travou uma polémica sobre as relações entre anarquismo e sindicalismo, que é fundamental para entender a forma como os libertários se situaram face ao movimento operário e suas organizações.
O seu principal livro, A Concepção Anarquista do Sindicalismo, foi publicado em 1923 pela editorial do jornal anarco-sindicalista A Batalha e reeditado em 1984.
Em 1911, regressou a Portugal, onde continuou a desenvolver a sua militância anarquista, tendo colaborado na revista A Sementeira.
Morreu em 1920, em S. Romão de Coronado.

- Locais a visitar: em português e inglês

terça-feira, 16 de maio de 2006

Ir a banhos...

O Governo, pela voz do secretário de Estado da Defesa, anunciou há pouco que aprovou um diploma onde estão enumeradas 20 infracções à sinalização balnear afixada em praias vigiadas. Entre outras sanções, prevê-se a aplicação de uma coima, que pode ir de 55 a 1 000 Euros, para os banhistas que entrarem na água, estando hasteada a bandeira vermelha.
Antecipam-se aqui algumas óbvias e pertinentes questões no domínio da aplicação deste regulamento:
1º Os daltónicos estão isentos do pagamento da coima?
2º Em caso de tsunami, quem liquida as multas?
3º Será que vão ser criados calções de banho especiais, à prova de água, com uma bolsa para guardar o BI?
4º Em praias onde se pratica o nudismo, como será identificado o infractor?
5º As sereias também vão ser multadas?
6º O protagonista de "A Morte em Veneza" também deveria ter sido autuado por ter entrado no mar sem respeitar a sinalização?
7º Quem vai multar os nadadores-salvadores? Os banhistas? O juiz-desembargador em férias com a família e um problema na coluna?
Vai um mergulho?

segunda-feira, 15 de maio de 2006

Jean Cocteau


"A Poesia é uma religião sem esperança. O Poeta esgota-se no seu labor criativo, sabendo que, na longa caminhada, uma obra-prima mais não é do que o espectáculo de um cão treinado sob um solo movediço."

(Tradução nossa)

domingo, 14 de maio de 2006

PÓS - POEMA (1)

é tempo de escutar o poema
escorrer por dentro

gota a gota

uma chuva de que não há notícia

in "Labirintos"

sábado, 6 de maio de 2006

DOSTOIEVSKI, sempre


". . . to be acutely conscious is a disease, a real, honest-to-goodness disease." (Notes from the Underground)
"When . . . in the course of all these thousands of years has man ever acted in accordance with his own interests?" (Notes from the Underground)
"For what is man without desires, without free will, and without the power of choice but a stop in an organ pipe?" (Notes from the Underground)
"Talking nonsense is man's only privilege that distinguishes him from all other organisms." (Crime and Punishment)
"You laugh at your dream's absurdities, and at the same time you feel that in the fabric of those absurdities some thought is hidden, but a thought that is real, something belonging to your actual life, something that exists and has always existed in your heart." (The Idiot)
"If there is no God, then I am God." (The Possessed [Kirilov])
"So long as man remains free he strives for nothing so incessantly and so painfully as to find some one to worship." (The Brothers Karamazov)
"In an abstract love for humanity one almost always loves only oneself." [lost source!]
"The complete atheist stands on the penultimate step to most perfect faith." [lost source!]

Sobre o autor de "O Tio", ver o que aqui já se disse.
Decorreu no Porto, no dia 3 de Maio, a conferência-debate "Soluções para uma Indústria Musical em Portugal", acerca das questões respeitantes à indústria discográfica nacional. Contou com a presença de músicos, representantes de associações do sector e das editoras. Trata-se de uma actividade em crise, como é sabido, mas que tem respondido da pior maneira aos desafios que lhe estão a ser colocados, como já aqui referi.
A propósito do evento, veja-se este artigo no "Turno da Noite", bem como este libelo de Valter Hugo Mãe, em "Da Literatura".

Rose c'est la vie


Está aí a chegar o 19 de Maio. Data importante, porque mudou a história recente da Academia de Lisboa. Para sempre. E orgulho-me de ter estado presente nos acontecimentos que assim o determinaram: a tomada da Reitoria e da cantina velha, em 1982.
Daí nasceu a Tertúlia Libertas que ainda hoje continua a editar "O Berro", um sai quando sai que deu dores de cabeça a muita gente: professores, políticos. aprendizes de políticos, arrivistas das juventudes partidárias, medíocres avulso, listas para a Associação, etc.
Para muitos que por ela passaram, a Tertúlia será ao longo da vida uma escola de irreverência, autonomia do pensamento e da acção, mas também, porque não, de poesia. Entre muitos outros que poderia escolher, eis um exemplo do que então se fazia.

Mas, para ir mais além desta lacónica notícia, veja-se um texto de André Bandeira em "Duas Cidades". Aqui

quinta-feira, 4 de maio de 2006

UPS!

ORCHATA DE CHUFA

a Garcia Lorca

Descia as serras em Outubro
se a respiração num repente parasse
de mãos estendidas para os olhos.

esquecia o fino azul das manhãs
se presa fácil de uma vertigem:

embriagar de cores meu destino
em cada constelação uma cigana
uma doce cabala de dias férteis
e nuas terras prometidas.

inventaria um estilhaço qualquer
para me ferir nos olhos
e tombar no chão da tribo
no sul nas marés.

faria rodar em mim
ainda o pião ainda a criança
- e mesmo assim percorrer
a fogueira nocturna e nunca
acordar os outros, estes outros.

na geografia simples de um rosto,
como na de um país,
há por vezes uma erosão
que devasta a pele e a pedra,

um sopro de sementes fuzilando os lábios
hasta el corazón del sueño . é

um grito é um beijo. são
mil searas andaluzas
numa lenda de terra queimada.

in "Labirintos"

terça-feira, 2 de maio de 2006

O 1º de Maio

O Dia do Trabalhador é feriado nacional. Tirando esse facto, tornou-se o dia mais cinzento do ano. Veja-se o afã com que os sindicatos repetem de ano para ano, ad nauseum, o mesmo discurso catastrofista e atávico, uma fábula em que os bons e os maus só mudam de nome. Longe vão os tempos das lutas operárias a sério. Mas não é essa memória, nem a grandeza de tantos que nelas participaram, o que se comemora. Não! Até porque a classe operária começa a ser coisa do passado, desmantelada que está a indústria pesada e desaparecidas as grandes concentrações industriais.
A questão é, pois, ver quem fala mais alto contra os "perigos" que espreitam, os previlégios em risco, as "manobras obscuras" que estão prestes a abater-se sobre a "classe trabalhadora" e, sobretudo, o supremo instrumento do mal, o Código do Trabalho. Uma rétorica cheia de tropismos, destinada a assegurar a sobrevivência dos próprios sindicatos, em muitos casos estruturas pesadas e mais preocupadas com a visibilidade das acções que promovem, do que com uma defesa efectiva dos seus associados.
Duas notas, para terminar. Durante dois anos trabalhei intensivamente com o Código do Trabalho, na altura precisamente em que entrou em vigor. Para lá de algumas imprecisões técnico-jurídicas, parece-me ser um óptimo instrumento de desenvolvimento económico, com mecanismos onde certos direitos dos trabalhadores são, até, melhor salvaguardados, para lá das inegáveis vantagens da sistematização.
Por outro lado, durante esse período, estive em contacto directo com o mundo do trabalho, no sector informativo de um serviço público. Posso dizer que, em relação aos trabalhadores, numa percentagem de 80% daqueles que atendi, a sua única preocupação era "fazer contas". Os seus "direitos" resumiam-se a isso: um resultado expresso numa máquina de calcular.