quinta-feira, 30 de março de 2006

Quando sós à boleia do crepúsculo

Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
- julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. Quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.

E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.

E isso que - talvez - nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).

Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.


Manuel de Freitas, (SIC) Poesia Inédita Portuguesa

terça-feira, 28 de março de 2006

Uma Seca dos Diabos

Costumo ver ocasionalmente, de há uns meses para cá, o programa humorístico "Prazer dos Diabos", na SIC Comédia. Desde a saída da Ana Lamy como apresentadora, já tinha dado por alguns óbvios sinais de desgaste, (dois, lolol) quer no formato do programa, quer na qualidade e pertinência das intervenções.
O José de Pina revela algum trabalho de preparação prévio e equilíbrio no tratamento dos temas. Denota também assinalável sentido de humor, do tipo absurdo.
O Fernando Alvim não descolou daquela imagem da piada fácil, do trocadilho maroto, de alguma brejeirice de caserna.
Quanto ao Pedro Boucherie Mendes o caso é mais complicado. Revela um primarismo ideológico e cultural de bradar aos céus. Tem mesmo ódios de estimação: o Manuel Alegre, que quis crucificar por ter tido a preferência de 1 200 000 portugueses, incluindo estes votantes na sua saga caceteira; o Benfica, a quem vilipendia frequentemente os adeptos, o treinador, os jogadores, o clube, a instituição, em suma. Nunca percebi porque é que os adeptos do F.C. Porto e Sporting necessitam de exibir compulsivamente tanto anti-benfiquismo, tanta falta de fair-play, tanta ausência de espirito desportivo. Será um reforço identitário ou uma patologia de raiz edipiana? Em qualquer caso, este case study deveria merecer a atenção de psiquiatras e antropólogos.
De qualquer forma, o senhor já me irrita para além das medidas e estou convicto que já começa a irritar as últimas centenas de portugueses que ainda se dão ao trabalho de assistir a esta coisa sensaborona.

segunda-feira, 27 de março de 2006

O Teatro segue dentro de momentos

Hoje é o tal dia difícil do ano. Acontecem umas iniciativas louváveis por esse país fora, obra de grupos e associações que não esperam pelos burocratas para agir. Todavia, se hoje ouvissem o noticiário da Antena 1 às 13 h00, numa daquelas intermináveis e irritantes repetições da mesma notícia, teriam qualquer coisa como:
Locutor 1: comemora-se hoje o Dia Internacional do Teatro. Para assinalar o evento, três grupos transmontanos organizaram uma iniciativa invulgar, não é assim, Não Ponhas os Pés...?
Repórter de exterior: exactamente, Em Rama Verde. Numa iniciativa conjunta de três grupos sedeados no nordeste transmontano, comemora-se hoje o Dia internacional do Teatro, com a apresentação da mesma peça em três locais diferentes, à mesma hora...ouvimos os responsáveis...etc...emissão com Em Rama Verde...
Locutor 1: Um trabalho de Não Ponhas os Pés, que acompanhou esta maratona teatral, assinalando a comemoração de mais um dia mundial do Teatro, por iniciativa de três grupos do interior transmontano, com declarações do director do...sim, daquele de Bragança, o Tristezas Não Pagam Dívidas...Prosseguimos com Cuidado Com o Cavalo Dado que Anda Marado!
Locutor 2: Obrigado, Em Rama Verde... Dia Mundial do Teatro, efeméride comemorada no nordeste transmontano com a apresentação da mesma peça em simultâneo em três locais diferentes...prosseguimos com notícias de desporto...
(Note-se que, a esta hora, estava já eu a dar cabeçadas na parede e a suspirar pelo regresso de Antonin Artaud... Haja paciência, algo que sobeja cada vez menos...)

domingo, 26 de março de 2006

Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
Lugar que se transforma rodando sobre a boca.
Em certos dias, habitado por crianças
de uma infelicidade obscura, sobre
o verão.
E tu trago uma criança com um ombro
mergulhado no sangue, e o outro
ombro metido no sono triste.
Que pensa sempre, dentro de suas águas,
e é ameaçada por uma intraduzível beleza.

Abandonai-me no mês de Deus aberto,
com as crianças sorrindo com grãos de sal.
Esse Deus sobre as patas ao lado
de catedrais difusas.
Onde encosto meu rosto da cor
assaltada das lágrimas.

Deixai-me em todos os lugares, em cada
mês que principia.
Casulos e campânulas são imagens misturadas.
Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos.
Não me sabem as crianças, e eu sei
todas as crianças num poema prédio em chamas.
Nos meus dons.

E então penso: o lugar é terrível.

Herberto Helder, Lugar

A Memória das Coisas -8

SEIXO AMARELO – O Azeite

Em Novembro, a terra brilha por entre os sulcos. Até onde o sol chegou, surgiram os frutos, logo tombados, logo entregues às tulhas, às rodas e aos corredores escuros das máquinas, aos latejos da prensa hidráulica. Até onde o fruto chegou, eis o azeite, seu filho natural. Invade as cozinhas. Entra pelos almoços. Senta-se tranquilamente nos guarda-louças, entre os copos, as manteigueiras, os saleiros azuis, as especiarias. Tem luz própria, um calor incandescente, uma grandeza piedosa. É o astro da terra, estrela repetida e fecunda. Bate-nos à porta, com o seu aroma. Vamos! À mesa! Está na hora!

sexta-feira, 24 de março de 2006

O Teatro da Palavra

Foi ontem apresentada no TMG a peça ORGIA, de Pier Paolo Pasolini, pelos Artistas Unidos. O texto, definido como "um poema a várias vozes", evoca o fim da inocência vivido por um casal, algures num subúrbio de uma grande cidade, por via das suas obsessões eróticas e fetiches vários, que culmina na fuga-suicídio. Aqui, como em toda a obra literária e cinematográfica de Pasolini, descobrem-se as suas constantes reivindicações e gritos de insurgência: o hedonismo contemporâneo como padrão uniformizador e versão soft do totalitarismo, o corpo como ponto de partida de todas as revoluções, a inocência da carne, a nostalgia de um universo camponês, pré-nacional e pré-industrial e que inclui as culturas urbanas subproletárias. Um mundo antigo, em suma, onde a inocência era o maior trunfo erótico e a única condição para a santidade. Veja-se, neste ponto, a inclusão na banda sonora da peça do excerto de uma ária da "Paixão Segundo São Mateus", de Bach.
Em 1974, num ensaio intitulado "Sobre a revolução antropológica em Itália" afirmava Pasolini que "o Poder decidiu que somos todos iguais. A ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância." Mais à frente enuncia as duas principais características dessa igualdade: a fossilização verbal (não é por nada que Passolini quis aprender e chegou a escrever no seu dialecto natal do Friuli) e a tristeza, afirmando: "a alegria, quando existe, é sempre exagerada, ostentatória. A tristeza física aqui referida é profundamente neurótica. Ela deriva de uma frustração social, agora que o modelo a seguir já não é o da própria classe, mas o que o Poder impôs, muitos não são capazes de o realizar." A era do vazio? Claro que não. O binário espera-esperança, que move as nossas representações colectivas há uns largos séculos responde por si.

quinta-feira, 23 de março de 2006

A Agenda Cultural da Guarda

Recentemente, a fim de ser divulgado na agenda cultural municipal um evento nesse âmbito em que estou envolvido, forneci ao NAC a respectiva informação em tempo útil, como sempre fiz. Qual não é o meu espanto quando, ao examinar a folhinha minimalista que agora saiu, “fazendo as vezes” da defunta agenda, desse evento, nem sinal. Dirigi-me ao NAC, onde me foi dito que só divulgavam “realizações promovidas pela Câmara” (sic). Não sei se esta história de mau gosto se deve a restrições orçamentais, ou à falta de coordenação entre os serviços desta pesada máquina, que consome recursos avultados, pagos pelos contribuintes, e nem sequer cumpre o seu objectivo mais básico – divulgar as actividades culturais das colectividades e munícipes, limitando-se a propagandear as suas próprias actividades, qual Narciso contemplando o seu rosto no rio Lethes. Uma coisa é certa: vergonhoso!

sexta-feira, 17 de março de 2006

Imagens da Revolução Espanhola (6)



NSATSA

eu sei que a relva é suave
e nos poços há punhais
de mel

eu sei que há um poema selvagem
galopando
no último reduto das coisas

eu sei
do fingimento,
das horas inúteis


na véspera, meu amor,
há sempre lábios sujos
olhos tardios
errando
p’lo vértice da chuva.


in "Labirintos"

terça-feira, 14 de março de 2006


FALTAM 15 DIAS!...

A "caçada" (se é que se pode assim chamar) de focas anual do Canadá é a maior carnificina de mamíferos marinhos do planeta. É também a mais cruel. No fim deste mês, pescadores do Atlântico Norte vão invadir os bancos de gelo para matar focas bebés a tiro e à paulada, apenas para ganharem alguns dólares extra com as suas peles.A maior parte destas focas está indefesa.
O ano passado, 98.5% das focas abatidas tinham dois meses de idade ou menos ainda...Por favor, ajude a acabar com esta barbaridade.O Canadá não necessita deste cartão de visita.Envie uma mensagem ao PM canadiano (click no selo)
E não se esqueça de assinar a petição (na bandeira)!

terça-feira, 7 de março de 2006

A Memória das Coisas - 7

PÊRA DO MOÇO – A Árvore

Não dorme. Com a idade tornou-se igual a um campo onde houve uma batalha, uma batalha ocorrida há séculos, um campo de muitas batalhas. Eis um ser doido. Um ser farol. Um ser mil vezes suprimido. Um ser exilado do fundo do horizonte. Um ser altivo. Um ser como no primeiro dia. Porque és apenas uma semente de uma semente. Outono, terra, água, altura, silêncio prepararam o germe, a farinhenta espessura, as pálpebras maternas que enterradas abrirão novamente para o alto a singela grandeza da folhagem. A sombria teia húmida de novas raízes, as antigas e novas dimensões de outro castanheiro na terra.

quinta-feira, 2 de março de 2006

GYE NYAME

como um desfile de cegos
ao som do alaúde desperto na água tranquila
dos cristais,

assim o dia se estende pela lentidão do ar
que atravessa os muros,
pelas mãos que se despem na neve
- únicos deuses conhecidos

assim o mais leve, o mais límpido rumor
de setembro,
um nome de sangue esquecido nas navalhas,
a respiração das pedras.


como desenhar um bosque de chuva
numa parede de ninguém?

como desenhar um rosto, o meu rosto,
só pelo tempo de os lábios
tecerem o musgo
e as searas fustigarem o leito da luz?


assim um dia meus olhos serão maiores

assim as laranjas se espremem
como seios de rainha

assim a noite se afunda
na palpitação do fogo

O que fazer do meu rosto
- perguntarás-
podia falar-te do mistério dos corvos
em fuga,
quando o gesto das asas parece lembrar
a inquietação desses náufragos
algures entre o sol e o barro.


desvendo antes o segredo
onde eu nascia e somava na pele
os séculos, as frias moradas
daqueles países da ausência,
o incessante respirar,
o retomar do canto.

para vós plantei a aldeia e o trevo,
o talhão de rosas
que arredonda os gestos e os sonhos:

em cada pétala
há um rosto
do teu rosto.


In "Labirintos"