terça-feira, 24 de agosto de 2010

Mãe

Uma mãe não é só a árvore de onde brota a seiva. Não é só a luz que teima em brilhar no fundo da escuridão. Não é só o amor/combate, o amor que nunca chega tarde, o amor tantas vezes desperdiçado, tantas vezes deste reino e, por isso, de outro mundo, tantas vezes vagueando pelas áleas pejadas de folhas outonais e sorrindo pelos prados primaveris, tantas vezes estendido como um lençol tão grande que a nossa alma nunca irá abarcar, tantas vezes uma rendição incondicional sem vencedores nem vencidos. Uma mãe é a única lição conhecida, o discreto esplendor da delicadeza,  o farol que guia e mesmo apagado não descansa, o poema que uma vida não basta para escrever. E todas as lágrimas não chegam para lembrar.


Nota: caros amigos e leitores, devido ao falecimento da minha mãe, este blogue ficará suspenso por algum tempo. Obrigado pela compreensão.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Fructidor

 (de 18 de Agosto a 20 de Setembro)

Solidão

A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.


Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã,
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios...


Rainer Maria Rilke

Sonhar é preciso (22)

Nota: termina aqui a edição das capas da colecção completa das aventuras dos gloriosos "Cinco"... Olha! Que luz estranha é aquela?

O fogo

O ofício do poeta não inclui a prova sazonal, em letra de forma, mas a desmesura do resultado, o vigor da errância. É essa a sua prova de vida, "ou o que isso seja", dirão os que não desconhecem a maturação recatada do poema. Mas há ainda outra razão. Que se poderia nomear, à falta de melhor o "amparo do fogo". Porquê o fogo? Mais um recurso de estilo? Mais um ingrediente de um composto inócuo? A razão é simples: deve-se lidar com ele usando de toda a parcimónia. O verdadeiro perigo está em julgar que o dominamos, que lhe adivinhamos os movimentos, as percepções, as serventias, a inteligência móvel e imprevisível. Perigo de morte, portanto. Há momentos em que ele nos convida a arder consigo, participar numa langorosa erupção do ardor. Outras, envolve-nos na vertigem da aniquilação. Todavia, fixemo-nos no que ele desvela. E então, rente à corola do silêncio, à sabedoria do mel, à dor que no caminho revela, às mãos que se acendem, escavando, é aí que saem as palavras furtivas, as palavras que buscam a obscura transparência, as palavras que estão a mais. As que queimam.

Sonhar é preciso (21)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Antes toupeira do que rato

Muitos jornais e revistas já adoptaram a nova grafia decorrente do acordo ortográfico. Essa calamidade neo colonial que alguns têm como progresso. E essa "adaptação" foi efectuada sem qualquer estudo de opinião ou inquérito prévios. Indagando justamente qual a posição dos leitores face às modificações a introduzir. E repare-se, antes mesmo de ter sido fixada uma norma padrão de carácter oficial, optando por uma das várias possibilidades que o "acordo" concede em certos casos. Para mim, tudo isto tem um efeito devastador. Origina logo uma reacção pavloviana. Ou seja, a sensação de estar a ler uma publicação com grafia do Brasil provoca um indizível mal estar, tonturas, vómitos e convulsões. Que só param graças a um reforço positivo. Ou seja, deixar imediatamente de ler o artigo.

O Estado social

Lido

Ano sim, ano não, o país arde. Nos anos não, o Ministro da Administração Interna vem dar-nos as boas estatísticas acompanhado pela massa de dirigentes da protecção civil, em ambiente controlado e asséptico, mostrando determinação e gabando-se de que nada ardeu porque o governo fez o que devia. Em ano sim é o caos, umas vezes o Ministro também aparece, mas nem sequer uma parecença de ordem operacional se consegue manter. Nada é mais poderoso do que as imagens dos fogos, do desespero das pessoas, dos bombeiros esgotados, dos comandantes a pedir meios que não vem, dos jornalistas que acham que fazer um relato de um incêndio é aumentar o histerismo colectivo.

Pacheco Pereira, no "Abrupto"

Sonhar é preciso (20)

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.


Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.


Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder, "Cobra", in "Poesia Toda", Assírio & Alvim, 1979

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Stalker

Sonhar é preciso (19)

O sétimo dos pecados

Longe vão os tempos das esconsas casa de passe, dos prostíbulos manhosos e até mesmo dos coloridos e aveludados bares de alterne. Assim, quem pretenda andar ao fanico, andar em manobras, andar às gatas, ir ao fado, ir a manos, ou ir para leste, o melhor é recorrer às novas tecnologias. Até aqui, nada de novo, presumo. Mas se for esta a via escolhida, já chateia andar a navegar pelos sites porno e aparecerem  invariavelmente umas janelinhas de adware faiscantes. Ornadas com umas beldades ansiosas por um "bate papo com você" no chat online, enquanto meneiam algumas partes suculentas, ou falam mesmo ao telefone na Sala Oval com um desconhecido. Claro que se encontram inevitavelmente nas redondezas da área geográfica do IP utilizado. O engraçado é quando o servidor em causa está localizado numa aldeia recôndita. Ocasião em que 20 ou 30 ninfas locais suspiram pelo incauto na Merdaleja de Baixo! Nunca a máxima dos ecologistas "Pensar globalmente e actuar localmente" soou tão a propósito! 
Todavia, para os saudosos da mancebia de antanho, existe uma alternativa de tirar o chapéu. Sendo que até é essa precisamente a peça de vestuário mais usada no assunto em questão. Trata-se da utilização da blogosfera como local de oferta de serviços sexuais. Com efeito, abundam blogues que nada mais são do que agregadores de anúncios até agora só encontrados nos jornais. Como exemplo, até porque diz respeito à cidade onde vivo, apresento-vos o blogue Guarda Erótica. Como subtítulo, aparece "montanhas de prazer". Bem caçado, diga-se de passagem. Nos entrefolhos dessa particular orografia, há de tudo um pouco: quem tenha acabado de chegar com um corpinho de arrasar, uma viúva carente em chama, a carla bumbum guloso, o natural convívio sem pressa, uma colombiana irrestível peluda que adora tudo, a Sandra trintona meiga sensual e tarada, uma espanholada que não se sabe ao certo o que é, presumindo-se que nada tenha a ver com carapaus, alguém com amiga atrás tudinho... Tudo isto com umas fotografias pelo meio, para aguçar o apetite. O site dispõe ainda de uma zona gay e outra para casais. Na primeira, aparece um simples anúncio referente a... um travesti. Na segunda, não prolifera o swing mas outro tipo de práticas, mais do tipo voyerista. Como se nota, nas serranias, mesmo que do prazer, ainda imperam a circunspecção eclesial e as públicas virtudes.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Sonhar é preciso (18)

Sobre um Poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Herberto Helder

sábado, 14 de agosto de 2010

sábado, 7 de agosto de 2010

O pântano existe mesmo

Em qualquer país do hemisfério ocidental, em circunstâncias idênticas, já o actual Procurador Geral da República se teria demitido. A sucessão de trapalhadas desde que o inquérito do caso "Face Oculta" lhe caiu em cima da secretária, proveniente de Aveiro, em Junho, vão desde a simples incompetência à ignomínia.  Passando pela mentira descarada. Como é possível que os principais visados nas escutas então em curso tenham, logo no dia seguinte à recepção dos autos, trocado de cartão telefónico - mencionando expressamente o facto de terem tido conhecimento nessa data que estavam a ser escutados, segundo as conversas divulgadas pelo "Sol" - sem que nenhuma responsabilidade pela fuga de informação tenha sido imputada a Pinto Monteiro? Como se explica que tenha negado sempre que tenha havido pressões do procurador Lopes da Mota para com os investigadores - uma estrela de primeira água da constelação rosa que cintila nas instituições judiciais, onde os favores de ocasião e a produção legislativa encomendada ad personae são a regra (vejam-se algumas alterações constantes da última reforma do Código de Processo Penal, que vieram mesmo a calhar à "Fatinha" de Felgueiras) - mesmo depois de o magistrado ter sido afastado da Direcção do Eurojust, devido à comprovação de essas pressões terem mesmo sido feitas? Como aceitar, por fim, que Pinto Monteiro tenha afirmado por várias vezes aos jornais que Sócrates seria absolvido no caso Freeport? E numa altura em que ainda decorria o inquérito!!! Pressões sobre os magistrados que dirigiam a investigação? Que ideia!  O facto de Sócrates não ter sido inquirido no caso, devido à magistrada Cândida Almeida, directora do DCIAP, não ter  emitido despacho em tempo útil, é o cúmulo do servilismo. Confesso que, no inicio, a figura me era simpática. Não só por ser originária do distrito da Guarda, mas sobretudo pelo corte que, acreditava eu, representaria com o passado. Mas depois, foi o que se viu. Portanto, só há que dizer: "Demita-se, senhor procurador! Não tem outra saída!"

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Andanças


Durante três dias, andarei por aqui a laurear a pevide... Para mais informações, consultar a página oficial.

domingo, 1 de agosto de 2010

Sonhar é preciso (16)

Auto de notícia

As abluções domingueiras aconselham uma colheita de pensamentos originais, desalinhados, clarividentes. De uma circunspecção à prova de fogo. Por conseguinte, deveria destilar  para vós um brilhante silogismo, um naco de ironia. Uma posta de saber com provas dadas. Que se sustem à beira do abismo do auto convencimento. E porque não um voo poético de fazer inveja, uma carga certeira no bombo da festa do momento? Ou um feixe de luz para um sentido oculto? Ou até um casus belli desencantado onde ninguém esperaria? Sim, mas sem exageros. É preferível o xeque-mate numa polémica à beira da caducidade. Quando todos se preparam para a quietação do adiamento. Tudo isso. O exercício manso em modo de austeridade virtual. O mantra cibernético. A erudição prostituída. O cheirinho a obscuridade. Só porque sim. Ou porque não. A solidão entreaberta, desfeita e refeita. Contudo, por mais que tente, tudo redunda numa alquimia que não sai. Que se tornou improvável. Porque basta estender a mão e respirar.