sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Diário de um tolo - 7

Ser ainda como se já não fosse buscar no meio da chuva uma textura nova quando o dia é noite e a noite é dia gritar por todos os primeiros instantes de um novo tempo buscar o lugar a voragem a lucidez um alfabeto o sangue no meio das palavras as cinzas de um deserto as ruas vazias a dor de todas as ruas vazias ah ser como se já não fosse encontrar a morada de uma vida inteira a solidão estendendo-se como um lençol uma lâmpada acesa para os navios que nunca hão-de zarpar murmurar uma última canção para os olhos e adormecer quella sí lontana sorrise e poi si tronò all'eterna fontana mas há pouco a fazer quando no horizonte só há destroços talvez um arremedo de santidade ah ser como se já não fosse eis finalmente o dique que erigi para me salvar da enxurrada que aí vem pernoitar na doçura tão breve de um coração atónito. Areia. Areia e mais nada. Que venham as águas.

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quarta-feira, 23 de agosto de 2006

Nocturno em que nada se ouve

No meio de um silêncio deserto como uma rua antes do
crime,
sem sequer respirar para que nada perturbe a minha morte
nesta solidão sem paredes
deixo a minha estátua de terra limpa,
aventuro-me na lentidão da chuva
numa descida interminável,
sem braços que alcançar,
sem dedos para inventar a escala que sai de um piano
invisível,
sem outra coisa que um olhar e uma voz
que esqueceram de que olhos e lábios partiram.

o que são lábios?
o que é um olhar?

a minha voz já não me pertence:
dentro da água que escapa
dentro do ar que me foge
dentro do lívido fogo que corta como um grito.

e no jogo errante de um espelho frente a outro
cai a minha voz,
a minha voz que cresce
a minha voz que queima
dentro de um bosque de gelo:

aqui
deste lado
o barulho do mar onde tudo esqueci
onde ninguém me sabe.

in Labirintos

A honra do convento

Henri Cartier-Bresson

Nunca li nenhuma obra de Günter Grass. Vi o filme baseado em "O Tambor" e é tudo. A recente confissão de que pertenceu às Waffen SS, enquanto adolescente, não me surpreende. Naquela época, era difícil escapar ao massivo recrutamento nazi, especialmente em jovens cuja doutrinação política andava pelos rudimentos do culto do Fuhrer, do III Reich e da grandeza da Alemanha. Nada que se pareça com a sofisticação demoníaca evidenciada pelo jovem personagem de "Os Malditos", de Visconti.
O que me surpreende verdadeiramente é que tenha demorado tanto tempo a desvendar a faceta "negra" da sua biografia. E que entretanto se tenha tornado a consciência moral "de esquerda" da literatura alemã. Que tenha sido um pacifista exemplar. Que tenha vociferado como poucos contra a reunificação da nação alemã.
Grass, como Saramago, como Boaventura Sousa Santos, parecem fantasmas saídos do checkpoint Charlie, em Berlim, numa pose nonchalance, sempre dispostos a justificar o injustificável, como se o mundo ainda fosse a preto e branco. O nobilizado não tinha que possuir um certificado de bom comportamento moral para entrar na história da literatura. Como li noutro lado, alguns dos maiores crápulas deste mundo também foram escritores. Mas isso não permite menorizar ou amplificar a sua obra. Até porque, como dizia José Cardoso Pires, uma das funções mais nobres da literatura é precisamente corromper. Se agora viesse a lume que Homero era um encarniçado pedófilo e praticante de cultos obscuros e vagamente sinistros, será que a Odisseia iria ser banida dos compêndios da Literatura?
Grass deu um passo à frente dos biógrafos, numa jogada de corta-fogo. Mas não se livra de ser o ex-libris de uma certa esquerda europeia, no pior que ela representa.

Publicado no jornal "O Interior"

terça-feira, 22 de agosto de 2006

A sopa Campbell's


Recomendo a leitura do recente post de Rui Bebiano intitulado "A Outra Revolução", no "Terceira Noite". Um contributo decisivo para arrumar uma questão fundamental do imaginário colectivo dos últimos 50 anos: medir o impacto das novas formas de cultura popular e de afirmação individual surgidos nos anos 60. Conforme aí se diz, os anos 60 e 70 definiram-se muito mais pela afirmação da juventude enquanto grupo social portador de um padrão de vida autónomo, pelo fulgor da nova cultura popular, por uma intensa abertura no campo da moral (incluindo a construção de uma sexualidade renovada), por uma atitude estética própria e omnipresente, pela emergência dos movimentos sociais de um tipo novo, pela afirmação de um modelo de sociedade de natureza anti-disciplinar, do que pela proeminência nos processos de mudança das organizações políticas da esquerda. Isto é, a música de Bob Dylan, as provocações pictóricas de Andy Wharol, ou "a imaginação ao poder" do maio de 68, exerceram uma influência muito mais acentuada do que o "eurocomunismo", a "terceira-via" ou as inumeráveis reinterpretações do marxismo. Essa influência foi exercida essencialmente em meios estudantis e em vastos sectores urbanos, sendo decisiva, em Portugal, para a eclosão do 25 de Abril.
Bem a propósito, caberá fazer uma reflexão pessoal sobre o que significa ser "de esquerda", hoje em dia. Verifico que, nas grandes questões geo-políticas mundiais pós guerra fria e sobretudo pós 11 de Setembro, as minhas posições raramente coincidem com as da esquerda tradicional. Em relação à dimensão do Estado e ao peso do funcionalismo idem. O mesmo se diga quanto à necessidade de alteração da legislação laboral e do papel dos sindicatos, ou relativamente às politicas de emigração. Perante isto, só poderei concluir o óbvio: o vínculo que me prende à esquerda é de ordem estética, defesa da separação entre o Estado e as igrejas, apreço pelas liberdades individuais, por movimentos sociais novos e formas de vida sem delegação de responsabilidades. Do ponto de vista ideológico e programático, nada me entusiasma. Antes pelo contrário. Até mesmo os zapatistas perderam o encanto. O irrealismo e a cegueira com que encara a contemporaneidade, balizando-se atrás de uma superioridade moral que ninguém vê excepto quem a invoca, torna-a risível aos meus olhos. Vejam-se as posições tomadas em relação ao conflito israelo-árabe, situação política em Cuba, luta anti-terrorista e islamismo radical, neo-populismo de Chavez e Moralez, tumultos de ordem étnica em França (a que se seguiu a ocupação da Sorbonne como protesto contra a lei que previa a flexibilização laboral para jovens à procura do 1º emprego, que incluiu a pilhagem e o incêncio de parte da biblioteca de um departamento), a escalada nuclear iraniana, o episódio dos cartoons dinamarqueses, etc.
A esquerda, durante muito tempo, soube ser a protagonista de uma pretensão política da utopia, de uma pretensão salvífica de carácter heurístico. Que após ter conduzido ao oposto daquilo que reclamava, para muitos se tranformou numa fantasia compensatória caracterizada pela má-fé, pela reivindicação de um futuro impossível e de um passado que jamais existiu. E o presente? Para responder, é importante salientar que, por trás de muitos movimentos de rebelião inspirados no igualitarismo, está a implantação e defesa de estruturas sociais fixas e não necessariamente melhores, ou mais justas. Para sair do beco sem saída em que se recolheu, a esquerda terá que perceber cabalmente quem são os novos humilhados e ofendidos da actualidade, ser a sua voz, abandonando definitivamente veleidades meta-históricas. Terá que saber falar para todos e não para uma assembleia de paroquianos que a sustenha, sociológica ou eleitoralmente.

O regresso do MEC (epílogo)

Tal como grande parte da comunidade blogger, também eu caí na esparrela: afinal o blogue do MEC não é do MEC, mas de um clone virtual, fazendo-se passar por ele. Quando há tempos o JPP falava da espectacularização da identidade virtual, soou-me a devaneio futurista. Graças a esta história, percebi que não é uma coisa nem outra. Pelos vistos, alguém quis fazer uma gracinha ao jeito da silly season que atravessamos. Só lamento que, graças a ela, o verdadeiro possa ter alguma vontade em voltar mesmo. Toda a história aqui, sendo a fraude desmontada com estes contributos.

L'important c'est la rose

Afinal, o meu projectado devaneio humorístico-desconstrucionista para este mês de sirocco e aqui anunciado - rebolar a rir depois de consultar as nomeações políticas publicadas no DR - já não se vai poder concretizar. A notícia chegou-me via "Do Portugal Profundo": as contratações do Governo deixam de ser publicadas em Diário da República. E logo agora que o acesso ao jornal oficial se tornou gratuito para qualquer cidadão! Será que o Governo quer continuar a esconder o óbvio? Será que não previu que desta forma está a privar o povo de um dos divertimentos grátis mais genuínos de que há memória? Ainda não percebeu que assim vai pôr o país inteiro a espreitar à fechadura, para se deleitar com a confirmação do célebre refrão, aplicado às eternas sinecuras: l'important c'est la rose...?
Ver aqui notícia completa.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

O circo

Segundo rumores que circulam na egitana, estão em curso grandes cozinhados ao mais alto nível, de modo a colocar na administração da CulturGuarda um prometedor gestor comercial, com vasta experiência na...Loja do Concelho. Ao que parece, o apelido sonante terá contado muito na escolha. Velhos hábitos de sucessão dinástica, de fazer corar um verdadeiro monárquico. Todavia, é lícito concluir que uma mudança de rostos traga consigo uma alteração de prioridades ao nível da politica cultural local. As provas estão à vista: ao mesmo tempo que é abandonada a conclusão da construção da nova biblioteca municipal, é promovido o cantor pimba Luís Filipe Reis como símbolo oficial da cidade. Prepara-se pois o abandono de um projecto que em 20 anos colocou a Guarda no roteiro cultural nacional, como referência e exemplo do aproveitamento das valências locais, combinadas com uma programação ambiciosa e exigente. Que, para além da diversidade das propostas, foi criando e fixando públicos, reconstituiu a memória local e criou uma mais-valia estratégica para a região. Um conjunto de manifestações culturais duradouras e bem planeadas representa, para qualquer cidade que se preze, uma efectiva condição de desenvolvimento a todos os níveis, e favorece a criação de uma certa imagem de marca da localidade. Não acredito que esta viragem de rumo seja unicamente explicada pela insensatez, pelo mau gosto, pela ignorância, ou pela contabilidade do curto prazo. A razão é fundamentalmente política. Ou, se se quiser, eleitoralista. Pão e circenses: a receita que continua a fazer milagres. Mesmo com algum Doutor Fausto pelo caminho a remoer a consciência.
Devo dizer que tive oportunidade de conhecer a Guarda em momentos distintos. Para o que aqui interessa, senti na pele a cidade, quando a opressão moral, social e clerical, herança do salazarismo, era um manto de estupidez castradora, que obrigou os inconformados de duas gerações a buscar outras paragens. Talvez porque, simultaneamente, inspirava o doce sabor da transgressão criadora. Alguns, muito poucos, ficaram, resistiram e conseguiram inverter as regras. Mesmo errando, o medo de não errar nunca suplantou o receio de assumir os próprios erros.
Tudo se prepara pois para que nos próximos tempos os números triunfem em toda a largura de banda. É previsível que quem quiser comprar um livro ou um CD - não disponíveis nas grandes superfícies - terá que se deslocar a Salamanca, a Coimbra, ao Porto ou a Lisboa. Quem quiser assistir durante o ano a algum espectáculo com alguma qualidade, ou fora dos circuitos habituais, passará a ter que fazê-lo obrigatoriamente, se o desinvestimento no TMG se concretizar. Como sempre, vai valer o espírito de procura de quem não se conforma com a hegemonia do maistream. Falo por muitos, acreditem.
A opressão que mencionei teve consequências devastadoras para o desenvolvimento da cidade, mas os efeitos do triunfo do populismo que se avizinha irão ser muito muito piores. A prová-lo, são suficientemente elucidativas as inenarráveis condutas de esgoto plantadas na Praça Velha a fazer de vasos para árvores. O erzatz de um tempo.

Viagens - 4

A Anadenanthera colubrina ( variedade Cebil ) é um árvore que pode crescer até 20 metros de altura, e que aparece no noroeste da Argentina, nas provincias de Tucumán, Salta e Jujuy. Com uma copa bastante grande, a árvore produz grandes vagens com 6 a 12 sementes cada uma, planas e que chegam a medir o equivalente a uma moeda de um cêntimo. Por sinal, parece que foram mesmo usadas como moedas em antigas culturas indígenas. As flores são muito pequenas, mas curiosas, dispostas em pequenas cabeças esféricas.
O uso do cebil transporta a um breve mas intenso mergulho até se vestir a pele do jaguar cósmico: o grande afinador que amplifica a audição, colocando nos terminais nervosos uma luminosidade subterrânea que, não obstante, não priva a contemplação celeste. Onde as poucas visões nítidas irrompema com uma clareza sobrehumana, proporcionando perspectivas que baralham completamente o leme da vontade. É a bússola do caçador místico. É a visão que define as acções concretas. É a exploração das espantosos grutas onde todos os tempos se renovam. As lutas do mundo dos espíritos, as intuições extáticas vêm do crepúsculo, habitadas por um som poderoso, ritmado pela pulsação do que está à volta.

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sexta-feira, 18 de agosto de 2006

O regresso do MEC

Boas notícias. O saudoso MEC (Miguel Esteves Cardoso para os distraídos ou para os mais novos) está de volta à blogosfera, depois de ter participado na aventura pioneira do Pastilhas.
É curioso pensar que, sem as suas crónicas no Expresso e depois no "Indy", a minha adolescência prolongada teria sido incomensuravelmente mais pobre: sem os Joy Division, ou a Virginia Astley, só para dar dois exemplos. Poderão encontrá-lo aqui. Corram. Mais palavras para quê?

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Sonho de outra noite de Verão

"O deserto não é a ausência.
É o estado anterior à presença, antes da travessia dos nómadas, antes da paragem dos aventureiros...
Donde vem esta nostalgia que trazemos connosco, que dá por vezes o sentimento de termos perdido a parte de imensidão que é nossa....
Haverá um espaço perdido, que pode ressurgir ao sabor dos nossos confrontos com as imensidões que cruzamos, o céu, os oceanos, os desertos, a noite...
Trará o código genético, além dos testamentos, o vestígio de uma viagem sem limites através dos esconderijos do universo...
Há nestes impulsos misteriosos para espaços infinitos, a marca de um esforço para o reencontro com uma imensidão dantes conhecida e, depois, desaparecida...
A vida seria então a construção de um invólucro que desamarra do mundo uma parcela de infinito, para lhe dar um peso, um lugar, um princípio e um fim.”

Yves Simon, The Wondrous Voyager

Ó pá, também quero!

A consultoria Deloitte concluiu, através de um estudo, que cada empregado municipal falta, em média, um mês de trabalho por ano. O nível médio de absentismo para os 136,5 mil funcionários é de 22 dias úteis. Ver mais
Estou admirado como é que o Doutor Louçã ainda não se lembrou de uma medida deste tipo para combater o desemprego: dois meses de férias. Bastaria que a majoração de três dias, prevista no Código do Trabalho em função da assiduidade, passasse a 22! Resultado: nenhum, como é de calcular. Num país com elevada propensão para o delírio - onde os incêndios se começaram a chamar ignições - não me admiraria.
No referido estudo, não deverão estar contabilizados os magníficos dias de praia, coincidentes com mais umas jornadas de luta contra não se sabe muito bem o quê, promovidas pelas centrais sindicais, de acordo com a misteriosa e geriátrica agenda do Partido Comunista...

Viagens - 3

O cactus San Pedro compreende várias espécies de um género antes chamado Trichocereus e agora foi reunido dentro do género Echinopsis. São pelo menos 3 espécies principais: a E. pachanoi é originária do Equador e norte do Peru, estendendo-se até Huarás e Huánuco; a E. peruvianus começa no departamento de Lima e vai até Cuzco; a E. bridgesii corre ao redor do lago Titicaca e chega a La Paz. No sul da Bolívia e no norte da Argentina há mais umas duas ou três espécies que não se conhecem muito bem. São bastante diferentes entre si: enquanto umas medem de 5 a 6 metros, outras nunca passam de 1,5m; algumas têm troncos de 30 cm de espessura e outras de apenas 7 cm; há espécies com 4, 5 ou até 12 segmentos ou divisões laterais. A quantidade de espinhos também varia muito. Mas todas as espécies contêm o mesmo princípio activo, a mescalina.
O uso do San Pedro provoca a ascensão lenta e perseverante a uma grande montanha solar: os ventos modelam visões sobre as texturas naturais (falésias, blocos de pedra), a terra abre o seu amor pleno e nutriente, convidando à subida, sem esforço, até ao topo onde se respira o céu. O olhar da ave e os passos do felino são oa melhor maneira de conduzir o corpo nessas alturas crescentes. Desde a alvorada ao anoitecer, o San Pedro abre e harmoniza as frequências de um organismo que busca a purificação e a ligação ao sol que sustem este mundo, a origem do fogo vital. Aflora o instinto animal, retido pela contemplação maravilhada das formas. A alma germina em contacto com Gaia (de forma mais terrestre do que a inigualável ayahuasca). As lutas do mundo dos espíritos ou as percepções extáticas atravessam o dia, vertidas em cada brilho, cada gesto.

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quinta-feira, 17 de agosto de 2006

Populismos

Quando se refere a existência de populismos na cultura, colocam-se imediatamente algumas questões prévias, cuja ausência de esclarecimento dificilmente permitirá ir-se mais longe.
Em primeiro lugar, partindo do princípio de que vivemos na sociedade do espectáculo e usando a terminologia de Guy Debord, dir-se-á que o populismo apresenta caractrísticas radicalmente diferentes, consoante o espectáculo fôr concentrado ou difuso. No primeiro caso, refere-se a sociedades fortemente hierarquizadas, onde o mercado é ainda incipiente, ou a regimes autoritários ou totalitários, caso em que a fabricação de uma identidade e de uma estética próprias determina uma concentração de meios e uma visibilidade propagandeada dos resultados sem paralelo. Por outro lado, o espectáculo difuso é próprio das actuais sociedades democráticas onde predomina a economia de mercado. Paradoxalmente, é aí que um pensamento hegemónico e uma formatação da actividade criadora e da fruição da cultura têm melhores condições para triunfar.
Em segundo lugar, há populismos à esquerda e à direita. A forma como se encara a actividade cultural, a identidade e o património tem menos a ver com posicionamentos ideológicos do que com a própria estruturação da personalidade de quem intervem decisivamente neste campo. Se é valorizada a empatia e a defesa da vitalidade interior, a pluralidade efectiva ao nível da produção e oferta ficarão assegurados. Se o poder for ocupado enquanto forma de domínio e o aproveitamento da desresponsabilização de vastas maiorias pelos poderes públicos fôr a tónica, então seguramente o populismo levará dianteira.
Por último, refira-se que há casos de políticas culturais equilibradas e audazes em autarquias por parte de representantes afectos a forças que cobrem todo o espectro político. Assim como o contrário. Ora, em termos de oferta cultural, uma entidade pública tem responsabilidades diversas de uma empresa privada, nomeadamente assegurar a pluralidade e a diversidade. É aí que muitas vezes as câmaras pecam. Quando organizam eventos de massas, não entendo que estejam a manifestar uma determinada preferência ao nível do gosto, mas a promover a sua dissolução, ocupando o seu lugar preocupações exclusivamente eleitoralistas. É a popularidade dos conteúdos que interessa, domesticando-se a vitalidade própria da arte e assegurando o ciclo completo de uma lealdade renovada e estável, à margem de qualquer integração no interior anímico.

Publicado no jornal "O Interior"

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Viagens - 2

A Psychotria viridis (na foto) é um arbusto da selva amazónica que os índios usam na preparação da ayahuasca. Existem cerca de 700 espécies de Psychotria na América, muitas delas frequentes na bacia amazónica. São arbustos ou árvores pequenas de folhas simples, opostas e inteiras. No Peru chamam yajé a uma variedade de Psychotria viridis de 2 a 3 metros de altura, com folhas de 10 a 20 cm de longitude, por 5-7 cm de largura. São lanceoladas ou ovaladas. As flores deste arbusto são pequenas e de cor branca.
Descobriu-se DMT no cérebro humano, pelo que se a sua simples possessão fosse ilegal todos seríamos delinquentes. Mesmo sendo a DMT ilegal, as plantas que a contêm são legais e algumas podem ver-se nos parques e jardins públicos, como varias espécies de Acácia, muito comuns e apreciadas na jardinagem ornamental. Todos os anos descobre-se um novo vegetal que contem dimetil triptamina (DMT), pelo que se torna inútil a erradicação desta substância.
Com o uso da ayahuasca, fala-se da purificação e conexão à fonte regeneradora da saúde, atravessando as profundidades inconscientes até à iluminação que desfaz abismos. É como aprender a nadar com a consciência expandida nos fractais da criação, no tecido pulsante de todas as interacções presentes. Confluem os sinais do corpo, do lugar e das mentes que que vagueiam nesse momento. Um local amplo, à noite, são factores propícios a esta experiência terapêutica e visionária, que se expande a partir da quietude e se articula através do canto, por exemplo. O grande vazio criador mostra as suas energias, a que se pode atribuir vários nomes (Lao Tsé preferiria o de Tao, ou Mãe do Universo). As lutas do mundo dos espíritos, as meditações extáticas povoam a noite, despoletadas por cada som, cada gesto mais longínquo.

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Sonho de outra noite de Verão

Vermeer, Lição de música

terça-feira, 15 de agosto de 2006

Viagens - 1

Existem três triptamínicos cujo uso alternado funciona como uma espécie suprema tridade enteógena. São eles a ayahuasca, o S. Pedro e o cebil. Ainda que compartam uma mesma base cognitiva, cada um desempenha funções específicas, segundo o seu âmbito específico, momento adequado e resultado final.
A ayahuasca conduz a uma imersão nocturna no coração da vida. O S.Pedro activa uma abertura diurna aos caminhos do sol através das profundidades da terra. O cebil plana velozmente no culminar da contemplação. As três plantas maestras partilham uma sacralidade comum, própria do êxtase mistérico - são afinadores cósmicos - mas cada uma serve diferentes fins, condicionados pelo tipo de experiência, duração, efeito psicofísico característico e propriedades intrínsecas.
As breves observações que se seguirão são produto da experiência e da busca para optimizar o uso dos vegetais sagrados, tendo em vista um equilíbrio dinâmico. Propôr os três usos, relacionados com os benefícios espirituais e práticos decorrentes, significa encontrar os rituais próprios a partir de um uso consciente para casos concretos, quer em função de práticas curativas quer na ampliação de estados de consciência.


(continua)

Falsos Ídolos

De passagem por uma leitura de estimação, não resisto a colocar aqui as palavras de Arno Gruen:

A História é o resultado da interacção entre os que precisam de conquistar territórios, a natureza ou outras pessoas para se preservarem e os que dependem de falsos deuses para assegurarem a sua consistência. Por outras palavras: uns, na sua megalomania, declinam qualquer responsabilidade pelos seus semelhantes, e os outros não têm forças para serem responsáveis, já que precisam do Mal para se lhe sujugarem.(...)
Falsos deuses são as duas coisas: tanto testemunhos como produtores da vã identidade que nos salve. Enquanto não encararmos realmente de frente o desamor que nos rodeia, não seremos capazes de chegar a uma identidade própria e firmemente enraizada no que realmente somos. Em vez de uma identidade baseada numa trama exterior, em que poses ostensivas de sentimentos e valores tomam o lugar de uma identidade interior. Isso empurra as pessoas para a dependência de estruturas externas, como o estatuto social, posse, ordem, dever e obediência. Quando essas estruturas começam a vacilar devido à sua dinâmica própria, as pessoas que edificaram a sua identidade sobre elas desagregam-se. É esse o solo que não só permite como favorece os falsos deuses.
(edit meu)

Arno Gruen, Falsos Deuses, Paz Editora, 1997

*O Autor nasceu em Berlim em 1923. Em 1936 emigrou para os EUA, onde se doutorou em psicanálise. Trabalhou como professor e terapeuta em diversas universidades e clínicas. Desde 1979 vive e exerce em Zurique. Bibliografia:
A Loucura da Normalidade. O realismo como doença: uma teoria fundamental sobre a destrutividade humana. Assírio & Alvim: Lisboa 1995 [Primeira edição alemã: Munique, 1987];
A Traição do Eu. O medo da autonomia no homem e na mulher. Assírio & Alvim: Lisboa, 1996 [Primeira edição alemã: Munique 1986];
Der frühe Abschied. Eine Deutung des frühen Kindstodes (A Despedida Precoce. Uma interpretação da morte infantil súbita). Kösel: Munique, 1988;
Der Verlust des Mitgefühls (O fim da compaixão). dtv: Munique, 1996;
com J. Prekop: Das Festhalten und die Problematik der Bindung im Autismus. Praxis der Kinderpsychologie und Kinderpsychiatrie, 35/7, 1986;
Die Familie. Wegbereiter oder Verhinderer der Autonomie. Simpósio internacional sobre pedagogia social, SOS-Kinderdorf Innsbruck, 12 a 14 de Outubro de 1989;
Haß, Fremdenhaß und Rechtsextremismus (ódio, xenofobia e extremismo de direita)". Neue Zürcher Zeitung, 30.11./1.12.1991;
Psychologic Aging as Pre-Existing factor in Strokes. Journal Nervous and Mental Disease, 134/2, Fevereiro de 1962;
The Discontinuity in the Ontogeny of Self. Possibilities for Integration or Destructiveness. Psychoanalytic Review, 61/4, 1974/5.

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Um chá no deserto

Assim vão ser as minhas férias. A devastação interior está a ser tão inimaginável quanto necessária.

domingo, 13 de agosto de 2006

Domingo negro

Hoje é dia de vergonha para todos os guardenses que têm um pingo de consideração pela sua terra. Para já não falar do resto. A miserável reportagem que a RTP transmitiu a partir da Praça Velha, sinalizando a passagem da Volta a Portugal em bicicleta, ficará decerto na história. Pelos piores de todos os motivos. Como exemplo, foi um doente mental quem fez as honras da casa. Desta vez, espero que as responsabilidades de tão triste espectáculo sejam devidamente apuradas. Para uma mais completa avaliação, leia-se este post.

A dita cuja

Diário de um tolo - 6

Era o muro que atravessava o terreno. Dali até aqui. Podia ouvir a mensagem da voz pertencente a ti mesmo e a minha absorvia o eco da tua. “Onde vives”. Perguntavas. “Deste lado”. Respondia.
Continuámos encostados à parede inerte, pressentindo a vida do outro lado. “Onde estás?”. “Estou aqui”.

Hoje é domingo e amanhã é domingo. Apenas para mim. Hoje agi como no domingo se age e era sábado. Nada de confusões. Falhei um dia porque deixei de olhar para o calendário. Por isso deixei de ter um domingo completo nesta semana. Quando andava na rua avançava como se fosse domingo e fez toda a diferença. Domingo adiantado. Domingo por repetir. Amanhã vou ter outro domingo. E o sábado só ficou retrocedido às 7 horas da tarde. Não à hora que despontou para todos os outros. A razão para o retrocesso. O sítio certo à hora certa no dia errado. Amanhã o sítio certo à hora certa no dia finalmente certo. Domingo perdido. Intemporal. Identificado e novamente perdido. Mas só amanhã.

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sexta-feira, 11 de agosto de 2006

Conto de Verão

Hoje à tarde encontrei um amigo que já não via há algum tempo. Em seguida beberam-se as cervejas da praxe. Estava desolado. Tinha combinado umas férias com a namorada. Um dia antes ela ligou-lhe. A cantiga do bandido: estava confusa, mais não sei quê, tinha que ir não sei onde, etc. Conclusão: lá se foram as férias. Eu a pensar, "olha, onde é que já vi isto?" "Graças a estes banhos de água fria, quero acreditar ferozmente que me tornei um aprendiz de céptico, que passei a tropeçar na tal corda que é para atravessar e vice-versa, que consegui ultrapassar a dialética entre o optimismo de Pangloss (tudo vai pelo melhor) e o pessimismo de Martin (à pergunta de Cândido "então para que serve o mundo?" responde "Para nos enfurecer"), da mesma forma que Cândido, no final, "sei que é preciso cultivar a nossa horta"*.
Vendo bem, o normal é o que aconteceu ao meu amigo e a mim: as pessoas passam a vida a fazer acreditar as outras em qualquer coisa e depois acabam a justificar-se com mentiras piedosas. Acreditar no contrário pode ser euforizante. Mas a realidade é de uma simplicidade cruel e edificante: está-se só e morre-se só. O resto são entusiamos para principiantes. Portanto, o melhor é só contar comigo. De promessas está o inferno cheio. Todavia, será esta dedução assim tão linear? Não será essa a suprema justificação que encobre todas as outras? É. O que fica então? Manter a esperança quando tudo aponta para que a espera cesse. A horta. É claro que não disse nada disto ao meu amigo. Só lhe perguntei se não queria fazer férias das férias. E avançar com a torre quando tudo estava à espera que lançasse a rainha.

* Voltaire, Cândido, Guimarães Editores, 2005

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Imagens de Portugal romântico - 6

Nazaré
Sintra

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

Faz-me festas

No domingo estive no Festival Andanças, em Carvalhais, S. Pedro do Sul. Incluo aqui essa referência não para publicitar o meu roteiro turístico, mas como pretexto para um apontamento comparativo sobre Festas populares, agora que as pindéricas Festas da Cidade da Guarda chegaram ao fim.
Era gente nova, menos nova, gente de cá, gente de toda a parte, para quem a vida é mais do que o tracinho na lápide. Era gente a musicar, a trocar, a inventar, a amar sem limites, a dançar pelo mundo inteiro em seis palcos diferentes. Uma festa. De verão. De sempre. Organização atenta e impecável.
Passemos então às tais Festas da Cidade. Houve uma comissão das ditas: os patuscos moços de recados da Câmara, isto é, aqueles a quem os caciques deram tacho há anos ou aqueles que esperam alcançá-lo. Os outros, os boys veteranos instalados, 'tão caladinhos que nem ratos. Ora, estes maduros, apoiados pela maresia neoliberal que sopra dos lados do IPG e de algumas redacções, resolveram dar então ao povo lo que lhe gusta, isto é, assegurar um segundo mandato ao Valente. Resultado: uma festarola novo-rica, onde só faltou o foguetório. Uma completa descoordenação entre o serviço nas barracas e a organização, tendo muita gente que sair do parque logo depois de lhe ser servido o jantar, nos dias de espectáculo. O palco mal concebido, de tal modo que a plateia reservada aos vips teve que ser enchida à pressão na noite dos GNR, depois de uma observação bem a propósito do Rui Reininho. Não houve rasgo, nem capacidade para atrair outros públicos senão aqueles que iriam a qualquer coisa. Já aqui referi outras razões. E expliquei porque este modelo de festas não serve para nada, a não ser para os parolos ficarem contentinhos consigo, a Guarda ficar fora do mapa e os eternos beija-mão ganharem mais uns cobres, ou notoriedade. Mas caramba, 25.ooo visitantes, anunciados pelos jornais locais espaciais fenomenais transversais comensais... (desculpem esta deriva dadaísta) é obra! Como se chegou a esse valor? Será que puseram gente nos locais a recensear o público? O mistério estatístico permanece.
Mas embalados por estes números fictícios, apareceram uma série de comentadores clamando vitória contra os subdesenvolvidos elitistas. São os mesmos que dizem que o Estado não devia subsidiar a actividade cultural. Que os contribuintes não têm que andar a pagar os caprichos de meia dúzia de iluminados. No entanto, apoiaram entusiasticamente um acontecimento de feição claramente institucional e pago integralmente pela Câmara. Então e o divino mercado, meus senhores? Ai essa coerência, deixa muito a desejar! Esta discussão arrasta-se há muito e raramente tem sido séria. Mas como diz Tiago Mendes em "A Mão Invisível" (um blogue liberal, atente-se), num excelente post sobre a intervenção do Estado na cultura: "a aplicação da lógica de mercado a esferas onde ela deve ser importante mas não EXCLUSIVA é não só errada mas, estrategicamente - ainda que não intencionalmente - faz com que a liberalização da sociedade se atrase." Mais à frente cita Vasco Rato - outro liberal: “Em cultura, não podemos dar apenas o que o povo quer. O gosto da Estética é moldável, evoluível. Nós sabemos que não há mercado para certos fenómenos culturais: bailados, óperas, (...). O estado tem um papel essencial nalgumas áreas, entre as quais a cultural. Não para impor gostos, mas para proporcionar alternativas.” (sublinhados meus). Ficamos entendidos?
Por outro lado, na mesma imprensa anunciam-se algumas correcções para o ano que vem. O palavreado do costume. O objectivo é estampar 30 000 nas primeiras páginas. Os merceeiros adoram. Alguns vereadores também! É que números redondos ficam sempre bem! Não é tão ternurento?

*Um destes dias, tive que mostrar o BI às simpáticas girls que o pedem na recepção da Câmara. Talvez pensem que o instante de um sorriso possa comprar a minha condescendência com a ineficácia e a incompetência que me esperam lá dentro. Lamento, queridas, mas não compra.
No tempo dos eufemismos por tudo e por nada, eis como "tudo vai pelo melhor", nas sábias palavras do Doutor Pangloss.

*Obrigado a Kaplan, um amigo galego, cujo blogue recomendo. Aqui

terça-feira, 8 de agosto de 2006

De novo os Poetas Silenciosos

Seis anos após o lançamento de "To Come", os Silent Poets mostram "SUN". O disco desvenda o que se pensa ser, de início, o som de uma poesia silenciosa: melodias poderosas, elegantes e temperadas com orquestrações emotivas, reunidas numa sólida base atmosférica e de r&b. Nota especial para as experimentações dub e eletrónicas. Michiharu Shimoda foi buscar as participações de Shawn Lee e DJ Yellow, que condicionam fortemente o trabalho final.
Uma paisagem musical exaltante, com audição recomendada em ambiente calmo, para se poder desfrutar da riqueza dos arranjos e da emotividade que proporcionam.
Eis o que de melhor se faz actualmente em sonoridades trip-hop e downbeat.

Terapia para intelectuais subdesenvolvidos - 2

(Via "Abrupto)
Atente-se à necessidade de evitar a propaganda errónea, as más leituras e os espectáculos imorais. Recomenda-se a quem detectar sintomas de subdesenvolvimento, ou para um melhor esclarecimento, que se dirija imediatamente a um posto de atendimento do G8 guardense. Trata-se de um grupo de intelectuais com bons índices de desenvolvimento, professores de banda larga do IPG, jornaleiros de serviço e cortesãos do paço ducal. Tudo gente avançada, que trabalha em prol do bom povo em regime de voluntariado, de modo a que a Guarda se torne, a curto prazo, na capital nacional do "Levanta-te e Ri".
Segundo informações chegadas há instantes, foi incluída uma adenda na listagem supra. Assim, quem não foi visto nas inúmeras esplanadas da cidade a ver jogos do mundial de futebol com uma bandeira na mão e um cachecol na testa, é passível de ser considerado atrasado mental e inimigo do povo. Recebem-se denúncias individuais ou por lista. A bem da animação!

segunda-feira, 7 de agosto de 2006

Dêem-lhe crédito que o gajo amansa


Percorrendo a blogosfera, percebe-se que grande parte dos blogantes activos está de férias. Supõe-se que para destinos paradisíacos. A crédito ou a descoberto. Como pertenço à classe dos novos pobres e, como tal, indetectável pela publicidade, neste inenarrável mês de Agosto limito-me a dar umas escapadelas até uns concertos e festivais de verão, tomar uns banhos no Mondego, meter conversa com umas camones, evitar sítios com emigras, ir ver a exposição de arte sacra "Las Edades del Hombre", em Ciudad Rodrigo, rebolar no chão a rir depois de consultar o Diário da República II série na parte das nomeações, acabar de ler as "Cartas a Lucílio" do Séneca, acabar de escrever o guião para a peça de teatro, rever alguns amigos de outras odisseias que regressam à Itaca de montanha no Verão, ouvir a banda sonora do Paris Texas com possíveis lágrimas em anexo, fazer um percurso pedestre na Serra, talvez colocar aquele produto milagroso para couros na minha colecção de botas, mas sobretudo preparar calmamente a grande viagem ao Tibete, desejar ficar por lá e nunca mais voltar a esta merda. No entanto, sou um viajante nato. Quando parto penso sempre no regresso, mas nunca sei quando será. Será?

Os malefícios do tabaco

Os Waffen SS sanitários andam por aí, como o Santana Lopes, mas estes zelando sem descanso pela nossa saúde. Agora chegou-se ao cúmulo de não se ser admitido em determinados empregos por se ser fumador. Já assistimos, desde o triunfo da cultura de massas juvenil nos anos 60, a uma discriminação insidiosa e não reconhecida como tal: a discriminação etária. Depois vieram as cruzadas contra o autoritarismo escolástico nas escolas. Sim senhor. Só que se caiu no trágico desvario corporativo que se conhece, promovido pelos pedagogos formados precisamente nos loucos anos 60. Resultado: tendencialmente, hoje em dia um aluno que conclui o 11º ano padece de iliteracia funcional, ao contrário de quem fez o liceu nos finais dos anos 70, como é o meu caso. Não é que me esteja a armar aos cucos, mas toda a gente de boa fé sabe que é assim.
Todavia, faltava e última cruzada moralizadora: o antitabagismo. Escutando os argumentos do Ministério da Saúde e dos vigilantes de serviço, não resisto a estabelecer um paralelo: os trabalhos preparatórios da célebre Lei Seca, conduzidos por uma comissão nomeada pelo Senado americano em 1918, presidida pelo reverendo W.S Crafts. Era o culminar dos esforços dispendidos pelos lobbies proibicionistas, como o Prohibition Party, a Sociedade para a Supressão do Vício e a Anti-Saloon League, bem como por alguns propagandistas avulso. Essa comissão legitimou a aprovação da mais desastrosa medida legislativa da história americana - o Volstead Act, conhecido como Lei Seca: cinco milhões de vítimas e nascimento da criminalidade organizada. Já antes, em 1914, havia sido promulgada a igualmente célebre Lei Harrison, que interditou o consumo de estupefacientes, a que se seguiu a proibição do tabaco em vários estados. Era a aliança do puritanismo e do terapeutismo no seu esplendor. Significativamente, podia ler-se, num apelo à Lei Seca de Benjamim Rush: "No futuro será assunto do médico salvar a humanidade do vício, tanto como até agora o foi do sacerdote". O episódio é relatado em História Elementar das Drogas, de Antonio Escohotado, ed. Antígona, 2004.
O governo prepara-se pois para proibir, a partir de Outubro, o consumo de tabaco em todos os estabelecimentos públicos. Vai ser uma hecatombe para a indústria hoteleira. Mas os SS do politicamente correcto vão rejubilar. Agora pergunto: porque é que pura e simplesmente não é proibida a venda de tabaco? Isso sim, seria uma medida abslolutamente coerente. Que só não foi considerada porque assim o Estado perderia uma fonte de receita considerável, por via dos impostos que arrecada com a comercialização do tabaco.
Sobre estes neo fundamentalistas, veja-se este excelente texto em "Quarta República".

Terapia para intelectuais subdesenvolvidos

(Via "Abrupto")

*Para uma melhor compreensão desta entrada, leia-se o que a propósito aqui se escreveu.

sábado, 5 de agosto de 2006

Diário de um tolo - 5

Ser como se já não fosse ainda não é o fim ainda não é só a terra que se estende infinita nos meus passos é só o nascer de um lugar para as palavras que esqueci é só o começo dos dias dos meses e dos anos depois de mim não de ti mas as torres já ruiram e logo no outono com o sopro de um coração estéril de que já nem as pedras se conseguem apiedar ainda me vejo de cócoras no meio das ruínas a tentar descobrir como a tarde pode morrer de repente um sinal um vislumbre um ardor de que ninguém falou uma pontuação para os abismos um espelho para encontrar o meu rosto mais claro do que os pensamentos o meu nome mais profundo do que a escuridão dos sentimentos onde está fechado mas nada encontrei só um céu amargo onde a noite se tornou insensível ao dia e o meu sono é todo o crepúsculo que resta ah ainda se conseguisse ser como se já não fosse ainda se conseguisse recitar uma fábula onde o vento tudo arrebatasse e me atirasse para a efémera matéria do silêncio mas os vulcões secos estalaram e cuspiram cidades de tédio uma solidão que dói como uma dor de dentes como um convite da eternidade para deslizar por ela como um manual para proteger os meus passos numa dança impossível como uma música que finalmente ascende ascende nunca aceitando que a sua harmonia é harmonia ah se eu fosse como já não fosse.

Ver anterior
Gerda Lepke, Bild 4 - Boca de Incêndio, nº3

sexta-feira, 4 de agosto de 2006

Já lá vão 6 meses, olhem q'esta!

-Sempre é verdade que este blogue faz hoje seis meses?
-Verdade verdadinha, uma nas canelas e duas na pinha.
-Nunca pensaste em desistir?
-No me lo digas, é como mijar num campo de urtigas.
-E porque é que não metes umas gajas nuas de vez em quando?
-É política editorial e ninguém leva a mal.
-Que tipo de temas abordas?
-Desde a celulite da vizinha à ignota pesca à linha.
-A blogosfera vicia?
-Mais do que ir à missa e menos do que comer linguiça.
-Tens algum momento especial ligado ao blogue de que queiras falar?
-A bola é redonda e tudo é possivel no final da monda.
-"I always depend on the kindness of strangers" seria um bom lema para os bloguistas?
-No hay camiños, solo hay que estar juntinhos...
-Boa sorte e continua a dar-lhe com força.
-Nem é preciso mais, a segunda é prós pardais...

quinta-feira, 3 de agosto de 2006

O bardo

Van Morrison em 1973. Um irlandês teso e que ainda dá cartas. Para amostra, um excerto da letra de "Crazy love":
She got a fine sense of humour, when I'm feelin' low down
And when I come to her, when the sun goes down
Take away my trouble, take away my grief
Take away my heartache, in the night like a thief

Nocturno Estátua

Sonhar, sonhar a noite, a rua, as arcadas
e o grito da estátua desdobrando as esquinas.

correr até à estátua e encontrar só o grito,
querer apanhar o eco e sentir apenas um muro,
correr até ao muro e ver-me dentro de um espelho.

descobrir no espelho a estátua assassinada
retirá-la do véu de sangue
da sombra desenhada no mármore

vesti-la depressa
acariciá-la como uma irmã imprevista
brincar com a curvatura dos seus dedos
sussurrar aos seus ouvidos cem vezes, cem, cem vezes
até ouvi-la dizer: "toca-me toca-me suaves olhos
ensina-me o que esqueci ao nascer".

in "Labirintos"

terça-feira, 1 de agosto de 2006

O Povo é quem mais ordena

A vontade do povo, a par da vontade de Deus, é dos desígnios mais impenetráveis e misteriosos de que há memória. Na maioria dos casos, aparece como fórmula mágica para amparar outros desígnios, mais terrenos, dos seus intérpretres qualificados: os políticos que o representam, um ou outro publicitário bem sucedido, alguns maus tradutores de Hegel e certos epígonos de António Ferro em versão liberal. Por exemplo, na Guarda existe um Presidente da Câmara que, após consulta ao oráculo de Delfos, lá encontrou a fórmula secreta para dar ao povo o que o bom povo gosta: umas festarolas com muitas sandes de coiratos e o trabécula (Luís Filipe Reis) a debitar decibeis!
Ora, na última edição do jornal "O Interior" aparece uma excelente crónica do Pedro Almeida a colocar o problema no seu devido lugar - a formatação do gosto - a que se juntou uma carta de uma leitora onde o enfoque é posto nas péssimas soluções de gestão encontradas. Mas o que me chamou logo a atenção foi um texto do José Carlos Alexandre, tecendo longos encómios às Festas e remetendo os seus críticos à qualidade de intelectuais subdesenvolvidos e arrogantes "educadores" do povo, entre outras vibrantes reflexões. Imediatamente desfaleci na cadeira. Consegui ainda dirigir-me à casa de banho e meter a cabeça debaixo da torneira, mas o choque emocional foi demasiado. Comecei então a balbuciar umas palavras desconexas, acompanhadas de um delírio quase vegetativo. Já imaginava o Luís Filipe Reis a açoitar o Stockausen com o microfone, elementos do rancho folclórico do Centro Cultural a bombardear o Luís Miguel Cintra com pernas de frango, brigadas populares compostas por trolhas e leitores do "Record" percorrendo a cidade, numa defenestação enérgica dos perigosos críticos.
Enquanto me debatia neste estado meio cataléptico, acorreu o anjo da Guarda, perguntando-me o que tinha. Disse-lhe as palavras terríveis: "meu caro, sou um intelectual subdesenvolvido". Graças a um leve bater de asas, senti que um calafrio o percorreu. Todavia, e sem qualquer razão aparente, começou a rir perdidamente, benzendo-se por diversas vezes. Finalmente, recompondo-se, disse que me compreendia muito bem, mas que, nestes casos, nada poderia fazer. Recomendou-me então uma ida à consulta de psiquiatria no Hospital. E pronto, depois de várias sessões de choques eléctricos ao som do Toy e do rancho folclórico da Associação de Melhoramentos de Catrapim de Baixo, entre outras canoras virtudes teologais, tornei-me outra pessoa. Em boa hora. Deixa-me cá dar uma vista de olhos ao "Jornal do Crime"...

*A propósito de mais um "intelectual" do G8 guardense - os arautos da vox populi, em oposição aos subdesenvolvidos elitistas - nada melhor do que uma visita e este post.