quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Doze moradas de silêncio



hoje é dia de coisas simples
(Ai de mim! Que desgraça!
O creme de terra não voltará a aparecer!)
coisas simples como ir contigo ao restaurante
ler o horóscopo e os pequenos escândalos
folhear revistas pornográficas e
demorarmo-nos dentro da banheira
na ladeia pouco há a fazer
falaremos do tempo com os olhos presos dentro das
chávenas
inventaremos palavras cruzadas na areia... jogos
e murmúrios de dedos por baixo da mesa
beberemos café
sorriremos à pessoas e às coisas
caminharemos lado a lado os ombros tocando-se
(se estivesses aqui!)
em silêncio olharíamos a foz do rio
é o brincar agitado do sol nas mãos das crianças
descalças
hoje

Al Berto

Já lá vão 104!


Tudo começou na zona de Belém. José Rosa Rodrigues, que seria o primeiro presidente do Sport Lisboa, foi um dos que participaram no primeiro treino do clube. Foi no dia 28 de Fevereiro de 1904, entre as 11h e as 12h30, nos terrenos da Companhia dos Caminhos de Ferro, que ficam entre a linha de comboio Cais do Sodré-Cascais e a sul da casa do Duque de Loulé, perto do sítio onde hoje fica a Praça do Império. Ainda no mesmo dia, os fundadores do clube, entre eles Cosme Damião, juntaram-se na Farmácia Franco, na Rua Direita de Belém (nº 147) e estabeleceram as bases gerais da nova agremiação. O nascimento do Sport Lisboa é assim contado no livro "Benfica, 90 anos de glória", escrito por António Manuel Morais, Carlos Perdigão, João Loureiro e José de Oliveira Santos. O Sport Lisboa, que efectuou o primeiro jogo contra o Campo de Ourique a 1 de Janeiro de 1905 (venceu por 1-0), viveu quatro anos só, antes de a 13 de Setembro de 1908 se fundir com o Sport Clube de Benfica, dando origem ao Sport Lisboa e Benfica, o Benfica dos nossos dias, que remete a sua fundação para 28 de Fevereiro de 1904.

in suplemento P2 do "Público" de hoje

Playlist da casa (5)



Ver anterior

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O vozeador azul

Alguém disse um dia que pior do que mudar de ideias é não ter ideias para mudar. De acordo. Até diria mais: por vezes, é mesmo necessário mudar de ideias, de modo a fortalecer as convicções. É óbvio que isto nada tem a ver com questões tácticas ou com alterações de circunstância. Advem, isso sim, do livre-arbítrio, do querer submeter-se à prova incontornável dos factos. É sobretudo um exercício de humildade e de bom-humor. Tudo isto, a propósito de quê? Em tempos, o senhor da fotografia teve em mim um fervoroso adepto das suas crónicas políticas, lúcidas e desassombradas. E da sua postura politicamente incorrecta. Dos livros, gostei de ler o "Sul" - talvez o melhor exemplo de literatura de viagens que se publicou nos últimos tempos em Portugal - e, um bocadinho menos, o "Equador". O "Rio das Flores" ainda não li. Sejamos claros: este senhor tem toda a legitimidade para ter a sua paixão clubista, incluindo defendê-la publicamente em termos críticos. Mesmo que isso envolva algumas opiniões de que não se goste, como é o caso. O que não permite, de todo, é o uso e abuso de uma linguagem xenófoba, facciosa e eivada de falsidades, quando fala dos seus rivais. A sua última crónica no jornal "A Bola" (link para assinantes) é disso exemplo. Onde soma alarvidades e comparações inadmissíveis sobre lances polémicos do futebol. Não é que esse seja um tema de que aqui se fale muito. No entanto, em questões relativas a deformações de carácter e desonestidade intelectual, o meio em que se revelam é-me indiferente. Enquanto figura pública credível, este senhor morreu para mim. Paz à sua alma.

José Matias revisitado

Nem sei como isto aconteceu, senhor doutor... Eu amava-a está a ver? Sim, estava a ver perfeitamente. Ele estava ali, sentado à minha frente, titubeando frases desgarradas, com castelhanismos à mistura. Vinte e poucos anos. Não usava truques, uma indignação forçada, nem sentimentos postiços ao serviço da negação, como me habituei a ver nesta profissão. "Conte lá, homem"... Estava para casar com ela. Já estava tudo arranjado. Ainda fiz mais uma temporada em Espanha, para juntar alguma coisa. Quando cheguei, ela já não me queria ver. Tinha arranjado outro. Quis falar-lhe mas ela não queria falar comigo. Fui várias vezes até à casa onde ela agora vivia. Ficava lá horas à espera que me dissesse alguma coisa, pois sabia que eu ali estava, à sua espera . E aquilo aconteceu em duas vezes que lá fui. "Aquilo" queria dizer que foi apanhado por duas vezes a conduzir sem carta. À segunda, a coisa estava a sair-lhe cara. Como não deu sinal de si, foi declarado contumaz (uma situação de menoridade cívica, em que se fica impossibilitado de obter documentos e qualquer benefício junto da administração pública). Tinha chegado no dia anterior e veio directamente do tribunal, onde a interdição acabara de ser levantada, para que lhe tomasse conta da situação. "Pois bem, primeiro que tudo, vamos tratar de lhe renovarem os documentos, ouviu?" Posso fumar? "Fume à vontade, homem." Percebi claramente que a busca de si próprio estava longe de ser o empossamento numa identidade que o Estado aleatoriamente lhe iria reconhecer. Para fins completamente alheios a essa busca, que só aqui começara e estava longe, muito longe do seu fim. "Então, e neste tempo todo, o que andou a fazer?" Foi para Espanha, lá me contou. Andou aqui e acolá, trabalhando na agricultura onde calhasse. Olhei para ele. Lembrei-me, não sei porquê, do José Matias, o personagem que deu o nome ao conhecido conto de Eça de Queiroz. O pobre José Matias, cujo amor desesperado e silencioso por Elisa o levou deste mundo! Ou demasiadas inquietações metafísicas e Malebranche. Mas aqui, nem fumos de tragédia, só vidas difíceis. Ocorreu-me também como o egoísmo é vivido de forma subtilmente diferente por homens e mulheres. Os primeiros colocam-se, quase sempre, no centro dos seus problemas. As mulheres, pelo contrário, colocam os seus problemas no centro de tudo. É claro que guardei para mim esta última reflexão. Não fosse ele outra vez rondar a sua Elisa. Sem carta de condução. "Então, começamos por onde? Cartão de contribuinte, ou bilhete de identidade?"

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Momentos Zen - 35

Ocultar a ponta da lança dentro de um sorriso

Ver anterior

Fica p'ró próximo...

O Centro Comercial VIVACI, a inaugurar na Guarda pelo Outono, irá ser assim:


Eis algumas soluções alternativas, com a ajuda de Escher:

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

A manada veio à serra

Vão picnicar aqui pelo burgo, com telhadinhos vermelhos a cintilar como nos desenhos animados do grunje granja, uns simpáticos parlamentares do peése. Vão cá estar durante uns dias. E tudo. A debater. A partilhar exegeses. A inventar as palavras que já foram inventadas. O quê? Esta deixa do Almada era para o Alegre brilhar? Muito bem, já cá não está quem falou. Mesmo assim, dei voltas ao miolo e não consigo descobrir como os contínuos do circus maximus, a confraria do silêncio, podem debater, assim, o que quer que seja, sem autorização do chefe. O que são parlamentares? O que é o peése? Ainda existe? O quê? Não há teleponto? Ah, ti António, não quer tosquiar este rebanho?

Playlist da casa (4)


Ver anterior

Lido

Extractos do artigo "Apodrecer ao sol", de Vasco Pulido Valente, no "Público" de sábado:

A velha Sedes (com gente nova) veio agora anunciar [...] que Portugal está na iminência de “uma crise social de contornos difíceis de prever”. O prestígio e o peso de quem fala merece, em princípio, que se ignorem as preocupações do dia-a-dia, para ouvir e pensar. Em que funda a Sedes [...] um aviso tão melodramático e severo? Em essência, na “degradação da confiança”. O país deixou de acreditar no “sistema político” e, em particular, nos partidos, de direita ou de esquerda, e esse crescente cepticismo ou, se preferirem, esse quase universal cinismo poderá levar ao rápido fracasso da democracia representativa. Ou, pelos menos, de uma democracia representativa, por assim dizer, “normal”. [...] O remédio da Sedes para este desastre é, como se esperaria, pedir aos partidos que promovam uma “elite de serviço” e se coíbam de interferir abusivamente na vida do país. Nunca com certeza a preveniram que as meninas não reformam o bordel. Como nunca com certeza lhe explicaram que andam por aí há anos “derivas populistas, caciquistas, personalistas”, para qualquer gosto ou vício. No fundo, os senhores da Sedes não percebem que nenhuma “crise social” (que fazem eles senão descrever sem grande originalidade a que neste momento vivemos?) põe em perigo o suave arranjo da política portuguesa, enquanto Portugal pertencer à “Europa”: e os partidos sabem isso muito bem. O destino de Portugal é, como sempre foi, apodrecer ao sol.

Ilusões - 3

(clicar para ampliar)

Ver anterior

O país real

Foi divulgado recentemente o relatório da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social (SEDES) sobre o estado da nação. Que poderá ser aqui lido na versão integral. O documento teve amplas repercussões ao longo da última semana. É que o diagnóstico não é brilhante. Logo a abrir, é apontado um "difuso mal estar" na sociedade portuguesa, "que alastra e mina a confiança essencial à coesão nacional". Simultaneamente, assiste-se a uma "degradação da confiança no sistema político". Neste ponto, a crítica aos partidos políticos é arrazadora:
" a sua presença não pode ser dominadora a ponto de asfixiar a sociedade e o Estado, coarctando a necessária e vivificante diversidade e o dinamismo criativo; não devem ser um objectivo em si mesmos... É por isso preocupante ver o afunilamento da qualidade dos partidos, seja pela dificuldade em atrair e reter os cidadãos mais qualificados, seja por critérios de selecção, cada vez mais favoráveis à gestão de interesses do que à promoção da qualidade cívica. E é também preocupante assistir à tentacular expansão da influência partidária – quer na ocupação do Estado, quer na articulação com interesses da economia privada – muito para além do que deve ser o seu espaço natural. Estas tendências são factores de empobrecimento do regime político e da qualidade da vida cívica."
Mais à frente, aponta os sectores mais problemáticos do sistema: valores, justiça, comunicação social, criminalidade e insegurança. Sobre o excesso de zelo dos agentes que aplicam a lei e a falta de bom senso do legislador, é demolidor:
"Para se ter uma noção objectiva da desproporção entre os riscos que a sociedade enfrenta e o empenho do Estado para os enfrentar, calculem-se as vítimas da última década originadas por problemas relacionados com bolas de Berlim, colheres de pau, ou similares e os decorrentes da criminalidade violenta ou da circulação rodoviária e confronte-se com o zelo que o Estado visivelmente lhes dedicou. E nesta matéria a responsabilidade pelo desproporcionado zelo utilizado recai, antes de mais, nos legisladores portugueses que transcrevem para o direito português, mecânica e por vezes levianamente, as directivas de Bruxelas."
Neste ponto, o documento veicula um aviso que é preciso tomar a sério:
"O mal-estar e a degradação da confiança, a espiral descendente em que o regime parece ter mergulhado, têm como consequência inevitável o seu bloqueamento. E se essa espiral descendente continuar, emergirá, mais cedo ou mais tarde, uma crise social de contornos difíceis de prever."
Conclui fazendo um apelo à introdução de correcções no funcionamento do sistema, uma espécie de elenco de boas práticas, a desenvolver com carácter de urgência. Nesta matéria, destaco a seguinte:
"Em geral o Estado, a esfera formal onde se forma a decisão e se gerem os negócios do país, tem de abrir urgentemente canais para escutar a sociedade civil e os cidadãos em geral. Deve fazê-lo de forma clara, transparente e, sobretudo, escrutinável."
Conclusões:
  1. o país real não é, definitivamente, aquele que a propaganda governamental nos quer impingir.
  2. há uma séria crise de representação no interior do sistema político, cuja dimensão aumenta exponencialmente;
  3. o sistema de vigilância mútua entre os vários poderes - os célebres checks and balances, garantia última da democracia efectiva - só muito timidamente funciona.
  4. há sérios problemas sociais e desequilíbrios estruturais, com diferente visibilidade pública, que urge atacar.
  5. o jogo está viciado para que só os partidos pontuem, profissionalizando a mediocridade e ignorando as mais valias e sectores mais dinâmicos da sociedade civil.
  6. continuamos a ser um país "de brandos costumes".

Gavotte (2)



(Ler anterior)

A epopeia de Maximilien Aue poderia ter acabado quando decidiu ir passar a sua licença à mansão desabitada da sua irmã e marido, um aristocrata prussiano, compositor musical e inválido, na Pomerânia. Precisamente numa altura em que a chegada das tropas russas era só uma questão de dias. A descrição da sua estadia constitui um dos momentos mais intensos e brilhantes da obra. Uma espécie de viagem desesperada no interior das suas fantasias eróticas e obsessões sentimentais, um estertor orgástico que prenunciava o fim, um suicídio "por indiferença", já que, nesta altura, a morte era irrelevante para o narrador. Mas a história resolveu ainda puxá-lo para si, pela última vez. Pela mão de Thomas, que o foi resgatar do seu inferno privado. Para assistir à demência final, ao Apocalipse. E para dar uma dentada no nariz "pouco ariano" do Führer, quando este o condecorava, no seu Bunker. Um episódio marcadamente surrealista, num dos momentos mais surpreendentes do livro. No momento em que escreve as suas memórias, Aue é um pacato gerente de uma fábrica de rendas, em França. Cuja ambição maior é a nada se inclinar, senão a inclinar-se a nada. Que suporta. "sem repulsa", os seus deveres conjugais. Que tem pesadelos inexplicáveis, mas sem uma sombra de sentimento de culpa dentro de si. A sua única virtude é não julgar ou negar o que foi nem apelar ao julgamento do leitor. Precisamente a qualidade que nos expôs a sua tragédia sem nome, onde só os sonhos o traíram. Mas sem deixar de insinuar algo que, subtilmente, vai incomodando o leitor: "a máquina do Estado é feita do mesmo aglomerado de areia friável de que é feito aquilo que tritura, grão a grão. Existe porque toda a gente aprova a sua existência, até mesmo, e muitas vezes, até ao último minuto, as suas vítimas." Essa perturbação resulta do facto de, sem que ele nada esconda, mesmo o peso moral do acto de matar, o leitor pressentir como seria escandalosamente fácil ser o que ele foi.
Existe um momento no livro particularmente significativo. Após retomar as suas funções em Berlim, Aue é destacado pelo Reichführer Himmler para elaborar um relatório acerca das condições dos detidos nos K.L. (campos de concentração) na Polónia, com vista ao seu aproveitamento como mão-de-obra industrial. De visita a Birkenau, trocou umas impressões com um médico que aí prestava serviço, acerca da brutalidade dos guardas para com os detidos. Questionado, diz o oficial: "Uma solução fácil seria a de acusarmos a nossa propaganda, quando ensina que o Häftling (preso) é um sub-homem, não chega sequer a ser humano, é portanto legítimo bater-lhe. Mas não é bem assim: afinal de contas, os animais também não são humanos, mas nenhum dos nossos guardas trataria um animal da mesma maneira que trata os Häftlinge. A propaganda desempenha de facto o seu papel, mas em termos muito mais complexos. Cheguei à conclusão de que o guarda SS não se torna violento ou sádico por pensar que o detido não é um ser humano; pelo contrário, a raiva dele aumenta e transforma-se em sadismo quando se dá conta de que o detido, longe de ser um sub-homem como lhe ensinaram, é justamente, bem vistas as coisas, um homem, como ele no fundo, e é esta resistência, não sei se está a ver, que o guarda experimenta como insuportável, esta resistência muda do outro; portanto, o guarda, quando espanca o detido, está a tentar fazer desaparecer essa humanidade que é comum aos dois. Bem entendido, a coisa não funciona: quanto mais o guarda bate, mais obrigado é a comprovar que o detido se recusa a reconhecer-se como não-humano." Esta relação ambígua entre a vítima e o carrasco é largamente desenvolvida por Arno Gruen, no seu livro "A Loucura da Normalidade" (Assírio & Alvim, 1995). A certa altura, com base num relato de um jornalista, refere a história de um soldado alemão que, após ter recebido ordens para matar um soldado russo acabado de capturar, não o conseguiu fazer, ao perceber que "não era um inimigo abstracto qualquer, mas uma pessoa que, tanto como ele, sentia medo e desespero." Conforme é relatado por Aue, Himmler proferiu um célebre discurso, numa reunião alargada dos quadros do regime e dirigentes da SS, em Poznan, em Outubro de 1943. O objectivo dessa comunicação, de uma crueza suprema, pois nada escondeu em relação à Endlösung (solução final) em marcha, foi correctamente entendido pelo narrador: implicar o auditório nessa responsabilidade, estendê-la a todo o regime, comprometer os presentes com um conhecimento de que não se poderiam mais tarde descartar. O Reichführer nem se preocupou em camuflar a mistificação em que por vezes caiem os instigadores do assassínio de massas: "A maior parte de vocês deve saber o que isso representa, quando jazem juntos cem cadáveres, quando jazem aí quinhentos ou mil cadáveres. Ter passado por tudo isso e ter-se conservado uma pessoa decente - tirando algumas fraquezas humanas - isso é que nos tornou duros." (op. cit, p. 58). (continuação)

Nota: a propósito desta obra, sugiro a leitura desta entrevista de Jonathan Littell ao Le Monde des Livres.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Stalker

Escrevo-te com o fogo e a água

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

António Ramos Rosa, Volante Verde, 1986

Gavotte (1)


Acabei de ler "As Benevolentes", de Jonathan Littell (D. Quixote, 1ª edição, 2007). De resto, um livro por bastante badalado e que se tornou, em todo o lado, um fenómeno editorial. Entre nós, a primeira edição esgotou em duas semanas, como aqui é explicado. Como começar? Ao longo da uma vida, chega um momento em que se percebe que são poucas as obras literárias que nos conseguem abanar de alto a baixo, jogar connosco um lance de alto risco, embora fascinante. Quando se inicia a leitura, não se imagina sequer que, 900 páginas depois, as perguntas se avolumam à mesma cadência com que os últimos recantos da inocência se esboroam como castelos de cartas. Única condição para que uma espécie de consagração da pureza nascida da amoralidade triunfe, para além do bem e do mal. É nessa viagem que Maximiliem Aue, ex SS-Obersturmbannführer ao serviço da Sicherheitdienst, nos convida a entrar. "Nunca pedi para me transformar num assassino", começa por dizer, explicando que "o Estado é composto de homens, todos mais ou menos comuns, cada um com a sua vida, a sua história, a série de acasos que fizeram com que um dia um deles estivesse do lado bom da espingarda ou da folha de papel enquanto outros estavam do lado mau. Esse percurso só muito raramente é objecto de uma escolha, ou igualmente de uma predisposição". Está lançado o programa. O ex servidor do III Reich leva o leitor pela mão, para que testemunhe o horror sem remissão, a iniquidade sem esperança. Um cenário onde ele foi actor, da mesma forma, remota mas possível, que o leitor igualmente poderia ter sido. E de onde lhe lança para os olhos a sua vida miserável, sem subterfúgios. De fora, ficam os remorsos, os apelos à redenção e à misericórdia, tudo o que possa assemelhar-se ao mais ténue acto de contrição. Aue procede tal como o poeta Vergílio, numa nova Divina Comédia amputada do Paraíso. Todavia, enquanto o poeta se assemelha a um cicerone, Aue é o porteiro da sua memória sem nome. Enquanto Dante conseguiu construir uma alegoria moral para a sua época, para Littell era impossível fazer o mesmo com o nazismo. Não só por causa da evidência da banalidade do mal, na expressão de Hannah Arendt. Mas porque, neste caso, a violência organizada, a industria da morte e a psicopatia como marca do poder, reuniram meios de destruição nunca antes conseguidos. Precisamente em nome de um programa de expansão nacionalista, caucionado pelas mais sólidas referências ideológicas e estéticas. Que quis inaugurar uma ordem que transcendesse uma arrumação moral que renega, com os resultados que se conhecem. Curiosamente, os anti-semitas "normais" eram mal vistos no Reich, uma vez que o ódio irracional inquinaria a eliminação "limpa" de uma espécie sub-humana. Max Aue poderia ter sido um simples jovem idealista, contaminado pela ideologia nacional-socialista e pelo grupo Action Française - Robert Brasillach e Lucien Rebatet foram seus amigos enquanto estudante em Paris. E prosseguir uma carreira académica promissora, na área jurídica. Só que, envolvido pela polícia (Kripo) num episódio "de costumes", numa zona de Berlim pouco recomendável à noite, aceitou uma proposta para integrar a SD na frente Leste. Onde acompanha o avanço da frente na Ucrânia, Crimeia, Cáucaso, acabando em Estalinegrado, onde presenciou os horrores da derrota e da retirada alemã. E onde uma bala de um sniper russo o deixou às portas da morte, de que escapou milagrosamente e lhe abriu o caminho para uma condecoração e uma carreira em alto estilo. Aue parece querer dizer-nos que a tragédia do triunfo e queda do Reich nada tem a ver com a sua tragédia pessoal. Cruzaram-se num beco da história. Onde a culpa e o remorso são assuntos risíveis, tudo é humano, demasiado humano, no início e a partir do fim de uma certa escala. A Oresteia que Aue testemunhou é pois, com toda a propriedade, um tema nietzscheano. A sua é a de um destino para o qual a história o empurrou, de tal forma aterrador que nem as Euménides se dispuseram a suavizá-lo. Estão lá todos os elementos desse pathos: o amor impossível pela sua irmã gémea, Una - a Beatriz proibida - que o precipita na homossexualidade, certamente por vingança e para se sentir perto dela; o assassínio nunca assumido da mãe e do padrasto, no sua casa do sul de França, o que dá origem a uma perseguição tipicamente kafkiana, movida por dois polícias boçais e ridículos, representantes do senso comum, embora sem consequências práticas; o assassínio do seu único amigo, Thomas, no final, após este lhe ter salvo a vida, o que lhe abriu as portas da fuga para França, com uma identidade falsa. (continuação)

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Ilusões (2)


(clicar para ampliar)

Momentos Zen - 34

Dar uma cambalhota em cima da ponta de uma agulha

Ver anterior

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Playlist da casa (3)


Ver anterior

As novas oportunidades

Segundo a edição de hoje do "Público", "Cerca de 43 mil licenciados trabalham em áreas de baixa ou sem qualificação". Mais à frente, informa que "no ano passado 7200 pessoas com formação académica superior estavam empregadas em trabalhos não qualificados. Vendedores por telefone ou em trabalhos ao domicílio, pessoal de limpeza, lavadeiras e engomadores de roupa, empregadas domésticas ou estafetas são alguns dos exemplos constantes da lista de trabalhos não qualificados, segundo a classificação nacional de profissões." Isto apesar do número de cidadãos com formação académica superior ter duplicado de 1979 para cá, cifrando-se hoje numa taxa de 13%, metade da média europeia. Portanto, os teóricos da revolução cultural chinesa têm algumas razões para sorrir. A conhecida prática da reeducação dos intelectuais, pelos vistos, fez escola. Só que, desta feita, sem um grande educador das massas a superintender. Quer-me parecer, no entanto, que Sócrates tem o perfil adequado para a tarefa. Sim, o mesmo que declarou recentemente "Nós queremos um país que dá oportunidades aos jovens."

Ilusões - 1


Clicar na imagem para ampliar. Depois, fixar o olhar na cruz ao centro, por breves instantes. Vejam então o que acontece ...

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Crimes exemplares - 21

Numa cálida noite de sábado, Susana foi andar de bicicleta no parque da cidade. Aproximavam-se as férias do verão e nada melhor do que antecipar o momento, desfrutando daquela noite magnífica. Quer dizer, suponho eu. Havia também o seu ex-namorado, que uns meses antes fora trocado pelo simpático Jorge, que vivia de uns biscates. O outro desenvolveu uma estranha fixação por ela, seguindo-a por todo o lado. O desgraçado era visto frequentemente a arrastar a asa, fazendo-se sempre acompanhar pelo seu cão, um perigoso pastor alemão. Naquela noite, deu-lhe para perseguir a bicicleta, tendo derrubado e mordido furiosamente a amorosa Susana, nas pernas e braços. Falo do cão, claro. O pior foi o rasgão nas calças novas da moça, que tinho ido comprar a uma conhecida cadeia de pronto a vestir. A rapariga, tolhida de medo, foi incapaz de esboçar uma reacção. Digo eu, porque fica sempre bem dizer isto. Comprova a iniquidade da agressão. Pois o pânico de Susana apenas terminou quando apareceu Manuel, primo da Alzira. Percebendo a gravidade da situação e temendo pelas consequências, retirou do carro a sua espada de samurai, pôs uma fita à volta da cabeça e degolou o cão. Depois, ao constatar que o ex-namorado de Susana fugia do local para ir cagar, correu na sua direcção, amarrou-o a uma árvore e obrigou a contar-lhe o resumo do últimos episódios das 38 telenovelas que passam na TVI, enquanto esperava pelos agentes da ASAE, PSP, uns populares que "iam a passar por ali, quando...", o Zé Tó, mirone profissional, o qual, segundo as más línguas, "também pegava de empurrão", e a irmã gémea da Alzira, cujo nome não me ocorre. Ah, e o INEM! O sofrimento de Susana ameaçava eternizar-se, pois a ambulância demorou duas horas a chegar. Tempo durante o qual os bombeiros e os elementos do INEM estiveram a jogar à moedinha para ver quem lá ia. Finalmente, lá chegaram ao Hospital, com a Susana balbuciando umas palavras em alemão. Ainda tentei saber o que se passava no bloco das urgências, mas o segurança não havia maneira de me deixar passar, entretido a ver uns vídeos escaldantes no seu telemóvel. Soube mais tarde que o Jorge e a Alzira tinham casado. O primeiro encontra-se regularmente com o Manel, como naquele filme dos dois cóbois, mountain qualquer coisa.

Ver anterior

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Stalker

O Manifesto de Euston

A notícia da existência do Euston Manifesto, com o subtítulo Por uma Renovação da Politica Progressista, chegou-me por intermédio do livro "O que resta da Esquerda?", de Nick Cohen (recomendo a leitura no original, pois a tradução portuguesa é miserável). Obra essa já aqui assinalada. O autor foi, de resto, um dos "conjurados" que levou à elaboração deste documento, conforme relata neste artigo do New Statesman, de que Norman Geras, outro dos implicados, faz eco no seu blogue. Tudo começou em Maio de 2005, num pub de Londres: "Na primeira reunião, o nosso debate centrou-se no sentimento comum de divergência com muito do actual pensamento da esquerda. Falámos de como o consenso prevalecente teve ampla representação na imprensa liberal (palavra que, no espectro político, designa a esquerda, nos países anglo-saxónicos), que o ponto de vista do nosso próprio segmento da esquerda foi significativamente sub-representado no mainstream dos media. Tivemos, no entanto, que encontrar um lugar na Internet e na blogosfera, o que contribuiu para conectar pessoas que, de outro modo, se sentiriam isoladas. E deu expressão às vozes e debates de uma esquerda que não aquela que se ouve bem alto em todo o lado: da TV aos jornais, nas universidades e outros locais de trabalho, nos teatros, em mesas e em todo o tipo de encontro social. As suas ideias eram de tal forma inculcadas como sabedoria convencional, que muitos acharam difícil admitir que poderia haver um ponto de vista liberal de esquerda alternativo." (tradução minha). O movimento surge como reacção à coligação Stop the War, liderada por George Galloway - que chegou a ser eleito para o Parlamento - uma fachada eleitoral para o Partido Socialista dos Trabalhadores, uma organização sinistra, com métodos semelhantes aos dos bolcheviques e infiltrada por elementos jihadistas. Galloway organizou manifestações gigantescas contra a guerra do Iraque, não sem antes ter visitado por várias vezes o ditador, louvando a sua "obra" benemérita e ter recusado o apoio a dissidentes, sindicalistas e movimentos que lutavam pelos direitos das mulheres naquele país. O que é então o Manifesto de Euston? Trata-se de uma declaração programática, que expressa um corte limpo com os preconceitos, hipocrisias e duplicidades da velha Esquerda. Uma forma particularmente feliz de dar corpo a um realinhamento político transversal, que se impunha no pós 11 de Setembro. Diz-se no preâmbulo: "Somos democratas e progressistas, e propomos um novo alinhamento político. Muitos pertencemos à esquerda, mas os princípios que propomos não provêm exclusivamente deste âmbito. De facto, abarcamos desde a esquerda socialista até aos liberais igualitários e outros comprometidos de forma clara com a democracia. Na realidade, a reconfiguração do pensamento progressista a que aspiramos implica o traçado de uma fronteira entre as forças das esquerdas que permanecem fiéis aos seus valores autênticos e outras correntes que ultimamente manifestaram uma excessiva flexibilidade a propósito desses valores. (...) A nossa iniciativa funda as suas raízes na Internet, especialmente na “blogosfera”, através da qual encontrou a sua base de simpatizantes. Somos conscientes, não obstante, de que esta base política está sub representada noutros âmbitos, como os meios de comunicação e outros fóruns da vida política contemporânea." (tradução minha). Segue-se o estabelecimento de um movimento de opinião em favor da democracia, direitos humanos, não desculpabilização de qualquer tirania, defesa da verdade histórica e da herança iluminista, direitos humanos para todos, contra a equivalência moral ou o relativismo. A declaração defende especificamente a abolição de todas as formas de racismo, incluindo o anti-semitismo, a liberdade de expressão e de troca de ideias. Condena o anti-americanismo, o terrorismo e os fundamentalismos. Sobre os erros da esquerda, dedicou um parágrafo intitulado "Abertura crítica", mais claramente ideológico, que diz o seguinte: "Baseando-nos na desastrosa experiência das justificações dos crimes do estalinismo e do maoísmo firmadas pela esquerda, assim como nos mais recentes exemplos desta conduta (algumas reacções aos crimes do 11-S, a busca de desculpas para o terrorismo suicida, a recente e vergonhosa colaboração entre o movimento do “não à guerra” e os teocratas dogmáticos), recusamos a ideia de que não pode haver inimigos na esquerda. Do mesmo modo, recusamos a ideia de que não podem fazer-se pontes com ideias e pessoas situadas à nossa direita. Os esquerdistas que fazem causa comum com, ou encontram desculpas para as forças antidemocráticas, devem ser criticados da maneira mais clara e contundente. Inversamente, prestamos atenção a vozes e ideias liberais e conservadoras que contribuem para o fortalecimento das normas e práticas democráticas e à luta pelo progresso da humanidade." O texto está disponível na página oficial em várias línguas e também em castelhano.
Uma verdadeira pedrada no charco, este programa singularmente actual e ainda sem eco no nosso país. Demasiado ocupado com as telenovelas do costume, com uma alinhamento político-partidário anacrónico e um espaço público anémico, como se sabe.

(publicado no jornal "O Interior")

Mosaicos - 6

Fugas

O Wikileaks.org (Wikifugas, em tradução literal) deixou de estar disponível online por decisão de um tribunal da Califórnia. O site, que revelava, de forma anónima, documentos comprometedores sobre governos e empresas foi obrigado a calar-se após decisão judicial. Ver aqui notícia do DN. O Wikileaks desenvolve uma versão não censurada do Wikipédia, visando a divulgação e análise de documentos em grande escala cuja fonte não poderá ser rastreável (1.2 milhões até agora), provenientes sobretudo de regimes políticos totalitários ou autoritários, onde há uma apertada vigilância ao tráfego da Web: China, Birmânia, Rússia, Cuba, alguns países islâmicos, etc. Funciona em regime de voluntariado. No entanto, várias réplicas continuam activas, como sucede em Wikileaks.be, disponível também em português.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Smoke, not smoke

Faz agora nove meses que deixei de fumar. Acreditem que decisão mais solitária não há. Mesmo assim, mantenho em níveis elevados a indignação com soluções estruturalmente desequilibradas, como a da conhecida lei do tabaco. Nesse propósito, descobri recentemente um site que desde já recomendo, pois se trata de um autêntico serviço público. Sobretudo para os afilhados de Nicot. É o "Sítio do fumador", uma página de João Pedro Graça. Disponibiliza um mapa (da google maps) onde é possível pesquisar por localidades e por tipo de estabelecimentos (cafetaria, noite, hotelaria, etc.), encontrar uma listagem com informação detalhada sobre cada um deles, um blogue, um fórum de discussão, o texto da lei e outras utilidades, como um widget para blogues com referência ao site (ver no side bar deste blogue).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O evangelista

"Obama é o candidato democrata que, ideologicamente, menos se identifica com a esquerda europeia e é aquele que dá menos importância à relação transatlântica, e mesmo assim é o candidato ‘europeu’. Estão assim identificadas as razões que levam a maioria dos europeus a preferir Obama. O apoio a Obama mostra, antes de mais, que a ideologia é cada vez menos importante para a maioria dos europeus. A imagem conta muito mais do que a substância. Os europeus gostam da imagem de Obama, mas ligam pouco às suas propostas políticas. Em segundo lugar, para a maioria dos cidadãos europeus, muito mais do que o lugar da relação transatlântica nas prioridades do próximo inquilino da Casa Branca, o que conta é que ganhe o candidato que pareça ser o mais ‘anti-Bush’. Desconfio que estão completamente enganados. A guerra no Iraque, a ligação à religião e a recusa em assinar um regime global de luta contra as alterações climáticas são os três pecados maiores de Bush. É verdade que Obama foi contra a guerra. Todavia, não foi por ser um pacifista, mas sim devido aos seus instintos mais isolacionistas. De resto, é o candidato mais influenciado pela religião e o que menos fala de um regime internacional pós-Kyoto. Com as devidas diferenças, Obama faz parte de ‘mesma América’ que Bush. Uma América para a qual o internacionalismo multilateral e a relação especial com a Europa pouco conta e a fé religiosa tem uma ligação muito próxima com os valores políticos. Não deixa de ser interessante que a maioria dos europeus apoie o candidato, culturalmente, mais próximo de Bush."

João Marques de Almeida, no "Diário Económico"

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Crónicas da paróquia (2)

O PSD da Guarda, porventura devido ao défice crónico de tema e de credibilidade, lançou uma ofensiva contra a política cultural da Câmara, o TMG e a actividade cultural em geral. O pretexto foi buscá-lo ao espectáculo "Julgamento e Morte do Galo do Entrudo", que encheu a cidade na noite do dia 4. O qual recebeu o aplauso praticamente unânime do público e amplas referências na comunicação social, como se sabe. O tom desta ofensiva já havia sido dado, pela voz da vereadora Ana Manso, que aqui comentei. Todavia, embora tenha discordado dessas declarações, ainda consigo encará-las no contexto da luta política local. Esta campanha, pelo contrário, é das coisas mais estúpidas e ineptas que tenho visto na vida pública. Desdobra-se em dois momentos: um comunicado da estrutura local do partido e declarações do vereador José Gomes à Radio Altitude. Note-se que em momento algum se questiona o figurino, as opções estéticas do espectáculo. É óbvio que isso requereria um tipo de conhecimento e uma honestidade intelectual que escasseiam naquelas bandas. Ou, pelo menos, não se dá por eles. Lido o comunicado e ouvidas as declarações, ficámos a saber o seguinte: o Carnaval de Famalicão é que foi "genuíno, participado e organizado pelas colectividades", portanto um evento "de raiz verdadeiramente popular"; na Guarda, a participação dos cidadãos "limitou-se a assistir a uma coisa que lhe era debitada"; o primeiro foi um exemplo de cultura popular e o segundo um exemplo de "cultura contratada"; a Câmara "deu de bandeja" o espectáculo ao TMG, "para alimentar um monstro"; os grupos locais - "que, não fazendo vida da actividade cultural, conseguem prestações que em nada ficam atrás dos que não sabem fazer outra coisa" - são "esquecidos". Outros exemplos desta verborreia semeada de má-fé podiam ser dados, mas vou ficar por aqui. Tendo em atenção os limites da paciência e da imaginação dos leitores. Pacheco Pereira falava em "estado de estupor", a propósito do momento actual do PSD. Palavras apropriadas para os autores desta campanha, que urge desmentir, em jeito de serviço público. Começo pelos factos, seguindo-se as conclusões.
O primeiro espectáculo que recuperou a tradição do "Galo do Entrudo" decorreu em 2001, por iniciativa do NAC. Portanto, não foi o "Todos à Roda" que "teve a ideia".
Seguiram-se mais dois espectáculos, em 2002 e 2003, com outra estrutura de produção. Contou com a participação de inúmeras colectividades, entre as quais o "Aquilo Teatro", que na altura dirigia.
No ano passado, foi retomada a tradição, sendo o espectáculo produzido pelo "Todos à Roda", por via de uma proposta que apresentou à Câmara.
Situação que se manteria este ano, caso esse grupo não tivesse apresentado uma proposta que excedia a disponibilidade financeira da Câmara.
A autarquia decidiu então apresentar o projecto ao TMG/Culturguarda, de acordo com o orçamento existente, co-financiado pela Agência para a Promoção da Cidade.
O arranque do processo de produção e criação teve lugar um mês antes do espectáculo, o que limitou em grande medida as opções a tomar.
O evento contou com a participação de 20 colectividades do concelho, sendo que a totalidade dos actores e dos autores vivem ou são da cidade. Pelo contrário, o Carnaval de Famalicão contou apenas com três colectividades.
Como é sabido, fui co-autor do texto e participei como actor no espectáculo em questão. No entanto, de acordo com as luminárias do PSD, não faço parte dos happy few que fazem coisas na Guarda, por sinal as melhores do mundo, segundo a opinião do directório e de quem lha encomendou. Tenho pois dúvidas se não habitarei na Finlândia, ou até mesmo na Cidade do México. O Rui Isidro - também co-autor - provavelmente ainda está em Macau e o dinâmico jornalista que conhecemos da Guarda é, afinal, um holograma. Será que o Vasco Queiroz é um clone do outro, o original, que continua em Coimbra? E o Clube de Montanhismo, veio de Marte? Será que isto foi tudo uma ilusão?
Portanto:
Limitando-me aos eventos com maior impacto local, no seguimento da apresentação do "Guarda, Paixão e Utopia" e da evocação histórica do centenário da inauguração do Sanatório Sousa Martins, o TMG ofereceu à cidade e ao público em geral mais um espectáculo de grande qualidade, com padrões profissionais e de que a Guarda tem justos motivos para se orgulhar. E devo dizer que estou à vontade para o dizer, pois as únicas críticas negativas A ESPECTÁCULOS apresentados no TMG que pude ler até agora fui eu próprio que as escrevi neste blogue.
A área de intervenção do engenheiro Gomes tem a ver com sinais de trânsito e manilhas de saneamento. Sector fundamental na gestão autárquica, sem dúvida, mas insuficiente para perorar sobre políticas culturais. Talvez o sabor popular que encontrou em Famalicão provenha do cozido à portuguesa distribuído à borla .
Segundo o PSD, a qualidade do trabalho produzido pelos grupos locais mede-se por serem... locais. E, logicamente, em nada inferiores ao "que vem de fora". Estas ideias, para além de disparatadas, são perigosas: fomentam a auto-complacência, o autismo, a arrogância e o provincianismo. São o sinal de que a preservação da aurea mediocritas é uma realidade para muita gente na cidade. A actividade cultural, a criação de novos públicos e a própria afirmação de tradições locais nasce da experimentação e da troca. Não se compadece com o isolacionismo, próprio de quem não tem ideias, propostas consistentes ou hábitos de fruição de bens culturais. Ou, quiçá, medo de reconhecer as próprias limitações.
Conheço relativamente bem o associativismo local, tendo dirigido o "Aquilo Teatro" durante dois anos. Quer então, quer agora, sempre me bati por um apoio efectivo às colectividades e às criações locais. Todavia, o ênfase dado pelo PSD à "cultura de base popular" padece de uma vacuidade tal que sugere um discurso encomendado por terceiros, para além de se basear nos mesmos pressupostos que apontei no texto anterior sobre este episódio.
É claro que o actual modelo de apoio às colectividades merece severas críticas. Para além de exíguo, não promove a qualidade, a formação, a criatividade e muitas vezes dá azo ao favoritismo e à arbitrariedade. A autarquia deveria, em primeiro lugar, fixar um montante que, realisticamente, pretenda afectar ao apoio aos grupos ou criadores individuais. Parte dele, seria atribuído, per capita, com valor igual para todos, destinado a comparticipar as despesas de funcionamento, ainda que exigindo padrões mínimos de actividade. Uma espécie de rendimento mínimo garantido. Em seguida, deveria estabelecer prazos para recepção de projectos artísticos ou formativos e avaliar o seu mérito, tendo em atenção, exclusivamente, o interesse cultural especificamente local, mas também a originalidade e a criatividade. Esses projectos seriam apoiados caso a caso, sendo encorajado o recurso a outras fontes de financiamento e o funcionamento em rede. Tudo isto mediante a celebração de contratos-programa, com duração variável e onde fossem definidas as necessárias contrapartidas.
Desta forma se apoiariam com dignidade os agentes culturais de base associativa. Quer as colectividades, quer o público ficariam a ganhar. Em caso algum, com palmadinhas nas costas, ou abusando da condescendência populista. Quem o faz, os políticos medíocres, são precisamente "aqueles que não sabem fazer outra coisa".
A mesma força política que, na semana anterior, tanto defendeu uma "gestão equilibrada" da autarquia, vem agora questionar o facto de esta ter legitimamente optado por encomendar o evento por um custo inferior àquele que lhe foi inicialmente proposto. Indo ao ponto de justificar a diferença de preço com a presença de funcionários da Câmara a participar no espectáculo! Note-se que poderia mesmo, com alguma razão, criticar a forma como a autarquia geriu o processo. No entanto, preferiu tomar partido, olhar para o "prejuízo" de uma simples associação, em vez de olhar para o correspondente benefício da comunidade e racionalização dos recursos existentes.
Esta apagada e vil campanha do PSD, para além do que demonstra, sugere ainda outras considerações. Sou levado a crer que foi precisamente o êxito do espectáculo que tanto irritou esta gente, directa ou indirectamente. Foram apanhados descalços por uma adesão popular que, de certa forma, lhes usurpou a legitimidade, a representatividade pública. O entusiasmo genuíno e espontâneo da população assusta estas almas. Que não descansam enquanto não o diminuem, ou amesquinham o que o faz irromper.

Mosaicos - 5

Jaime Hernando Osorio Jaramillo, Sementes

Ver anterior

Rebeubeu, pardais ao ninho

hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas.hoje estou indignado, bolas.hoje estou indignado, bolas.hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas.hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. hoje estou indignado, bolas. com quem? com quê? cedo hei-de descobrir. bolas. será que é de tanto andar a ouvir philip glass que me dá para escrever assim?

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Incursões


Logo de manhã, pus-me a caminho. Destino: serra de Francia, no limite sul da província de Salamanca. Habitar a 25 minutos da fronteira tem as suas vantagens. Comecei por encher o depósito do carro em Fuentes de Oñoro. Esta transacção, para além do que faz poupar, dá-me um gozo suplementar: não pagar IVA à taxa mais alta da Europa, graças ao Governo Sócrates. Mas hoje não me apetece falar sobre a res publica. O objectivo era, 70 km mais à frente, a aldeia histórica de La Alberca, no sopé da Serra de Francia. A zona abrangente está classificada como Parque Natural. Confesso que não me canso de ir respirar um pouco até este lugar único. Mas desta vez não fui só pelas amêndoas torradas ou as caixinhas de pólen, ou os enchidos. O créme de la créme era o percurso pedestre La Alberca - Las Batuecas (14 Km, ida e volta). O troço passava pela zona arborizada da serra e desembocava no ribeiro com o mesmo nome, junto a umas grutas com pinturas rupestres (canchal de las cabras pintadas). O vale de Las Batuecas compreende uma paisagem deslumbrante, no sopé da arriba da Peña de Francia, um conjunto de locais com vestígios do Neolítico e um convento carmelita do séc. XVI. Ao longo do caminho - muito bem sinalizado - um silêncio revigorante, quebrado pelo vento a passar pela copa dos pinheiros e das bétulas, ou por alguma ave mais afoita. Esta é uma das regiões mais inóspitas de Espanha. O seu isolamento deu lugar a uma série de lendas e histórias sobrenaturais. Dizia-se habitado por demónios e seitas ocultas, que os pastores não se atreviam a percorrer, com medo do desconhecido. A este propósito, Lope de Vega escreveu uma peça de teatro intitulada "Las batuecas del duque de Alba". No regresso, tempo ainda para uma visita relâmpago ao cume da Peña de Francia, como é hábito. Um sítio fascinante, onde a magia não tarda a fazer-se sentir. Estes locais estão predestinados ao maravilhoso, ao transcendente. A lenda da imagem que foi encontrada numa gruta e a edificação de um mosteiro quatrocentista falam por si. Era aqui também que vinha regularmente Miguel de Unamuno, quando era docente em Salamanca. Quiçá para encontrar o silêncio que a Universidade lhe negava. Em resumo, um dia em cheio.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Playlist da casa (2)

O regresso das trevas

O Metro de Londres acaba de proibir a afixação de cartazes publicitando uma exposição de Lucas Cranach, o Velho, pintor da renascença alemã, na Royal Academy of Arts. Isto porque o "corpo do delito" continha a reprodução do seu célebre quadro "Vénus", (1530). "Devemos ter em conta os milhões de viajantes diários do metro e procurar não ofender ninguém", adiantam os responsáveis, justificando a proibição. O regresso da época vitoriana? Não, é muito pior. Trata-se de não ferir a susceptibilidade daqueles que, à primeira oportunidade, não hesitam em lançar bombas e o terror, em nome da sua paranóia fundamentalista. O episódio vem na mesma linha do recuo da Ópera de Berlim, aquando da estreia do "Idomeneo", de Mozart. É o multiculturalismo na sua face mais sinistra. O tal relativismo atrás do qual a esquerda politicamente correcta cerra fileiras. É o triunfo do medo e da barbárie, que meia dúzia de fanáticos querem impôr na pátria da liberdade. Aquilo precisamente que os jihadistas odeiam e nunca hão-de compreender. E cada recuo da firmeza é um ponto a mais a favor deles.

Playlist da casa (1)

Philip Glass, banda sonora do filme "The Hours" (2002)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Até quando?

João Serpa, sindicalista, foi condenado no passado dia 17 de Janeiro a 75 dias de prisão. É a primeira sentença de prisão por manifestação ilegal em Portugal a seguir ao 25 de Abril. Ler aqui a notícia completa. É realmente aviltante a forma desigual como o sistema judicial aplica a lei. Basta enumerar a quantidade de casos de corrupção, criminalidade económica, peculato e fuga ao fisco que continuam por resolver. Mas nem vale a pena ir por aí. O grande problema está na sobrevivência contra natura da chamada lei da manifestação: o Decreto Lei nº 406-74, de 29 de Agosto, que visa "garantir e regulamentar o direito de reunião". O diploma apareceu durante a turbulência do PREC, destinado sobretudo a controlar as manifestações contrárias ao regime. Sendo uma lei pré-constitucional, não houve a indispensável adequação ao quadro dos direitos liberdades e garantias definido na Lei Fundamental, em particular ao "direito de reunião e de manifestação", previsto no seu art. 45º. O que significa que o diploma é claramente inconstitucional, como de resto já alertaram os mais insignes constitucionalistas. Porquê? Desde logo, porque ao fazer depender a realização de reuniões e manifestações públicas da comunicação prévia à autoridade administrativa, nos termos previstos no art. 2º do DL, esvazia-se de sentido a plenitude do direito em análise, tal como aparece no texto constitucional: "sem necessidade de qualquer autorização". Poder-se-á objectar que o DL prevê uma simples comunicação. Todavia, mais do que a letra da lei, interessa sobretudo atender aos seus efeitos concretos. É evidente que o "aviso" mencionado tem a marca inequívoca de um pedido dirigido à Administração pública para que pratique determinado acto. E esta, no uso dos seus poderes de autoridade - o jus imperii - produz a correspondente decisão: unilateral, embora vinculada, discricionária, embora fundamentada. Em todo o caso, destinada a produzir certos efeitos num caso concreto. Com o mesmo valor de um licença, uma homologação, um visto, uma concessão ou uma aprovação. Em suma, trata-se de uma verdadeira autorização, um típico acto administrativo. Por estar disso ciente, foi o próprio legislador que resolveu inovar, ao arrepio do sistema, quando impõe o recurso das decisões para os tribunais comuns e não para os administrativos, como deveria ser. É que, caso admitisse o recurso contencioso, estaria a reconhecer, implicitamente, a verdadeira natureza do acto em questão. Por outro lado, a própria lei sanciona criminalmente a sua violação, pelos promotores, qualificando o ilícito enquanto desobediência qualificada (art. 15º, nº 3). Esta tipificação é notoriamente inconstitucional, quer numa perspectiva formal, quer material. Cabe ainda dizer que, no caso do sindicalista condenado, deveria ter sido suscitada, durante o processo, a constitucionalidade da norma sancionatória, condição indispensável para um eventual recurso da decisão do tribunal para o Tribunal Constitucional (art. 280º, nº 1, al. b) da C.R.P.). Neste ponto, como bem refere o Movimento Liberal Social, "a lei apenas deve especificar, de forma geral e abstracta, quais os locais ou ocasiões em que uma manifestação não pode ter lugar, ou quais os limites que uma manifestação não pode ultrapassar. Dentro de tais limitações - que devem ser, em si mesmas, o menos restritivas possível - qualquer manifestação ou ajuntamento reivindicativo deve ser admitido. Não devem ser exigidas às manifestações de pequena dimensão qualquer comunicação prévia às autoridades ou quaisquer outros formalismos prévios, sendo que em caso algum a falta de comunicação prévia de um protesto pacífico poderá implicar pena de prisão ou qualquer outra sanção pesada." É urgente pois a alteração da lei em vigor, como de resto já tentou António Costa, quando era Ministro da Justiça.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Stalker

Crónicas da paróquia (1)

O PSD da Guarda votou recentemente contra o Plano e Orçamento da Culturguarda, na reunião de Câmara em que o mesmo foi aprovado, graças ao voto de qualidade do vice-presidente da autarquia. O documento é equilibrado e toma em linha de conta a recuperação do défice e a estabilização financeira do TMG, durante o ano de 2007. Surpreendentemente, ou talvez não, a vereadora Ana Manso vem justificar aquela posição com a prioridade a "uma gestão equilibrada" da autarquia, compreendendo "as necessidades básicas da população". E só depois destas, no fim da lista, então "é que podemos aumentar as transferências para a cultura". A tese é exemplificada com umas manilhas de saneamento em Dominga Feia. O que permite concluir, de imediato, o seguinte: 1º a cultura deveria ser um luxo, um adorno tolerado; 2º as necessidades básicas ainda se agitam como bandeira numa agenda política paupérrima; 3º depois do lamentável episódio do aproveitamento da morte de uma criança numa ambulância na Régua, o PSD actual prossegue na senda da demagogia sem escrúpulos. Não obstante, o episódio é notável, pela sua nitidez. Daria um belo epitáfio para o PSD da Guarda, em particular, e para os políticos que enxameiam o país com semelhante "modus operandi", seja qual for a sua cor partidária. Comecemos pelo princípio: falar do ADN do PSD local é um tropismo, mas que não deixa de ser útil. O que dizer então de um grupo de saudosos não assumidos da velha ordem, que misturam os preconceitos da patética burguesia de província com um tom seminarista que fica a matar, de "empresários" que mais não são do que capatazes com jeito para o negócio, que levam à letra a detestável máxima local "quanto pior melhor" (que a contrario quer dizer "venham os incompetentes para os podermos criticar, mas cuidado com quem mostra trabalho, pois esses são para abater"), de néscios que ignoram as novas tendências ao nível da gestão, que fogem a sete pés do verdadeiro e profícuo debate ideológico na direita e ao centro, que pensam pequenino, que correm como hobbits, que actuam por impulsos de clã, nunca por convicções, exímios representantes do poder de veludo local, de que falava Pacheco Pereira, de sindicalistas da inércia, de populistas de vão de escada, de pobres títeres de papelão, de enxertos de um novo-riquismo cada vez mais paroquial, sem uma ideia, um rasgo, um projecto agregador do bem comum, nada que ultrapasse a defesa dos seus negócios, dos seus todo-o-terreno, do seu estatuto, das suas vistas curtas, do seu umbigo, bem no centro do portugal dos pequeninos? Pois bem, aí têm o PSD guardense. E como não há regra sem excepção, é justo apontá-la: a saudosa lista de Carlos Andrade, concorrente à Câmara nos anos 80. O que se disse significa então que as declarações de Ana Manso em nada me surpreenderam. Revelam a génese demagógica e ressabiada da tal escola de virtudes. Incapaz de reconhecer um bom desempenho onde ele existe. Incapaz de uma visão prospectiva da cidade. Incapaz de resistir ao mais torpe eleitoralismo. Mas, para além do pathos, há ainda um elemento novo: uma profunda ignorância sobre o significado estratégico do apoio público às actividades culturais. Uma matéria onde a vereadora deveria escutar com atenção alguns colegas do seu partido, maxime Vasco Rato. Ou ler a revista "Atlântico", por exemplo. Ou viajar pela Europa, ver in loco a importância crescente, cada vez mais consensual, do investimento público na Cultura e no património. Por todo o lado, como aqui expliquei, já se percebeu que quanto maior o volume de recursos afectos á actividade cultural, menores são os custos da sua manutenção. Esta matéria, pela sua sensibilidade, pelo carácter inconspícuo do que coloca em jogo, é pasto abundante para o populismo fácil e imediato. Aquele que prefere coliseus a teatros, salões de festas a foruns artísticos, rebanhos a cidadãos, quinquilharia urbana a bibliotecas, emissários a jornalistas, gente que obedeça a gente que crie. A luta continua. Pois.

Correio dos Leitores
  • Então e não fala da inacreditável e mesquinha campanha do PSD contra a Culturguarda, a propósito do espectáculo do Entrudo? Tanto ressabiamento com o êxito da produção mais parece uma encomenda particular. (Luís Ramos)
  • Caro leitor, não perde pela demora.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Ainda a noite do Entrudo

O pecado mora ao lado

É claro que não vou festejar o que quer que seja no dia de S. Valentim. No dia de quê? Será mais um padroeiro do match.com mercantil? Ah, já descobri, trata-se de uma ancestral tradição nacional, como se sabe. Será uma brincadeira de mau gosto, para relembrar o infelizmente célebre massacre dos oito gangsters rivais, pelos homens do gatilho às ordens de Al Capone? Não sei. Uma coisa é certa: para quê celebrar, quando não há namorada oficial? Pelo menos, não passo recibo, por causa do IVA. Depois, para percorrer a agenda telefónica, já estou muito em cima da hora. Por último, não é impunemente que habito por cima de uma loja de roupa interior feminina.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Graffitis - 27


Ver anterior

A farsa continua

A operadora de telemóvel que utilizo acaba de me mandar um sms, lembrando-me das n mensagens grátis que posso utilizar no dia de S. Valentim, especificando-se o radioso destino: a "cara-metade". Foi a gota d'água. Já não bastava o marketing ter adoptado mais uma tradição bastarda para estimular o negócio, expandir o consumismo, com as montras entupidas de souvenirs, as redes sociais na net oferecendo todo o tipo de serviços hi tech, o brain storming publicitário. Faltavam ainda os pacotes de sms para se reenviarem as mensagens "muita giras" recebidas nos anos anteriores, ou sacadas nos serviços de valor acrescentado que disponibizam aos valentinos e às valentinas todo o tipo de lirismo de ocasião. Repare-se que, de acordo com a correcção totalitária em curso, nem se fala em namorado ou namorada, mas "cara-metade". Um asséptico e abrangente eufemismo que nada significa. E porque não à amante? À acompanhante das férias? Mas que merda é esta? Cara-metade? E a inocência, fausta e magnífica? E os corpos nus indissociáveis? E os pequenos gato ávidos, que partilham o pão, o sol e a morte? ? E o sabor a sal, depois de termos nadado no mar como focas? E as nossas corridas no bosque, como raposas, quando rolávamos no chão? E quando não sabia onde nenhum de nós começava ou acabava, casal de serpentes entrelaçadas? Cara metade? Até onde nos querem reduzir?