segunda-feira, 26 de julho de 2010

Reportagem sobre a visita encenada

Borges, claro...

Lo perdido

¿Dónde estará mi vida, la que pudo
haber sido y no fue, la venturosa
o la de triste horror, esa otra cosa
que pudo ser la espada o el escudo

y que no fue? ¿Dónde estará el perdido
antepasado persa o el noruego,
dónde el azar de no quedarme ciego,
dónde el ancla y el mar, dónde el olvido

de ser quien soy? ¿Dónde estará la pura
noche que al rudo labrador confía
el iletrado y laborioso día,

según lo quiere la literatura?
Pienso también en esa compañera 


Jorge Luis Borges

Stalker

O perigo

Se fomos posos no meio da vida, foi por ser este o elemento ao qual estamos adequados e melhor correspondemos. Além disso, por obra de uma adaptação milenária, tornamo-nos tão semelhantes a esta vida que, quando permanecemos imóveis, e graças a um feliz mimetismo, mal nos podemos distinguir de tudo quanto nos rodeia. Não temos nenhuma razão para recear ou desconfiar do mundo onde vivemos. Se nos inspira terrores, esses são os nossos terrores. Se contém abismos, esses abismos pertencem-nos. E se existem perigos, devemos procurar amá-los. Contanto que procuremos orientar e ajustar a nossa vida à medida deste princípio que nos aconselha a nos atermos sempre ao mais difícil, tudo quanto agora nos pareça ser o mais estranho, acabará por se revelar o mais familiar, o mais fiel.

Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, oitava carta, de 12 de Agosto de 1904

terça-feira, 20 de julho de 2010

As visitas começam amanhã!


O projecto "Passos à volta da memória" é uma iniciativa da Culturguarda EM e da Câmara Municipal da Guarda. Graças a ele, entre 22 de Julho e 18 de Setembro, haverá uma série de visitas encenadas ao centro histórico. As sessões serão às 10h e ás 17.30h, todas as sextas e sábados e 1º domingo de Agosto e Setembro, com partida da Praça Velha, junto ao posto de Turismo. Como o nome indica, trata-de uma visita guiada, embora com as características de um espectáculo de rua. O guia / guardião da memória / herói local, será Álvaro Gil Cabral, alcaide da cidade nos finais do séc. XIV. Notabilizado graças à sua recusa em entregar as chaves do castelo ao rei D. João de Castela, pretendente ao trono português. A história é aqui contada mais em pormenor. 
No essencial, trata-se de um percurso pelas artérias do centro histórico, num perímetro bem definido. Onde se pretende recriar cenicamente memórias da cidade, dispersas por várias épocas e vários protagonistas.  Não é de todo uma reconstituição histórica, mas não dispensa o rigor da História. É teatro, mas cujo cenário é a própria cidade e a trama a sua memória. E o guia está longe de ser um cicerone convencional, mas antes um personagem cujas virtudes e fraquezas o tornam singular e próximo, como irão ver.
"Passos à volta da memória" é um espectáculo com coordenação de Américo Rodrigues. Criou o texto este vosso criado. A encenação é de Antónia Terrinha, ficando a interpretação a cargo de João Ventura. Assina o design gráfico Jorge dos Reis. Participarão ainda os figurantes Carlos Gil, Carlos Morgado, Elisabete Fernandes, Luís Paulo e Maria Miguel Figueiredo.

O mito do trabalho para toda a vida

É de aplaudir a proposta de alteração do art. 53º da Constituição, inserida no anteprojecto de revisão do PSD. No texto em vigor, sob a epígrafe "Segurança no emprego", pode ler-se " É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos." Ora, na versão proposta pelo PSD, a menção "sem justa causa" seria substituída por "sem razão atendível". A questão da flexibilização do despedimento já vem de há muito. Em Portugal,  é assustadoramente mais fácil obter o divórcio do que ser despedido com "justa causa". Para um trabalhador "do quadro" ser despedido, é necessário praticamente destruir o seu local de trabalho,  matar um dois colegas, ou dar uma sova na Administração inteira, mandando-a para o Hospital com ferimentos graves. E mesmo assim., é duvidoso... Ora, isto é incompatível com modelos de desenvolvimento onde se procura a competitividade, a mobilidade do mercado de trabalho, a rendibilidade do investimento sem que o peso dos factores fixos pese em demasia. E não venham dizer que a flexibilização dos despedimentos abre caminho à liberalização e à precariedade. A liberalização significaria total aleatoariedade do vínculo laboral, agora sujeito às incertezas do acaso. Mas não é essa a regra geral nas relações obrigacionais, nem os princípios basilares do direito laboral permitiriam tal orientação. A questão aqui é a razoabilidade da cessação de um vínculo laboral em situações em que uma das partes já demonstrou não pretender cumprir a sua parte. Impondo a lei uma continuidade forçada e socialmente injusta. Ou seja, é  uma legislação rígida como a nossa que incentiva a precariedade, visto que esta nada mais é do que uma reacção defensiva do empregador. Se, por regra, o incumprimento ou a prestação defeituosa de uma obrigação é "justa causa" para a sua resolução, não se vê razão alguma para que, no direito do trabalho, haja exigências inimagináveis para a alegação e vencimento dessa "justa causa", no caso de despedimento por facto imputável ao trabalhador. Nas situações de despedimento por outros motivos, os requisitos e as formalidades exigidas  estão pensadas para uma realidade pouco menos que virtual. Em Portugal, há cerca de um milhão de pessoas que trabalha em regime de recibos verdes. E muitas mais vêm a precariedade ser a regra do seu dia a dia. Manter artificialmente a inamovibilidade, o carácter vitalício e a impunidade aos felizardos que não têm contratos a prazo é um insulto para os outros. Compreende-se o alarido das centrais sindicais. Se a medida for para frente vão ver desertar as suas clientelas. 

Stalker

De meio artista a artista completo

A história é exemplar e  vem oportunamente contada aqui. Há poucos dias, organizado pelo centro Regional de Segurança Social da Guarda, decorreu um passeio de barco pelo Douro, entre Barca d'Alva e o Pocinho. Os passageiros eram crianças do distrito oriundas de famílias carenciadas. O evento teve inclusive honras de reportagem na SIC. Para que conste, devo dizer que nada tenho contra estas iniciativas. Bem pelo contrário, sou apologista de que, com as crianças, a generosidade nunca é demais.
Mas o passeio teve um protagonista: o inefável José Albano. Para quem não sabe, trata-se de um verdadeiro artista. Depois de andar aos caídos em Celorico da Beira, resolveu "entrar para o política", como se diz em bom vernáculo. E em boa hora o fez. Pois apadrinhado nos locais certos da nomenclatura socratina, e graças a algumas manobras, chegou à presidência da Federação Distrital do PS. E daí até aparecer como número dois da lista concorrente às legislativas foi um passo. E eis como alguém sem competências profissionais, cientificas ou cívicas de vulto chega a deputado da Nação.!... Se lerem alguns capítulos de "Uma Campanha Alegre" de Eça de Queirós, depois incluída nas "Farpas", saberão o que é preciso fazer para se chegar ao cargo. Naquela época tanto como agora. Mas eis que, passado um ano, Albano deserta do hemiciclo e dos calores da capital. Para regressar então ao torrão natal. Para explicar o sucedido, várias hipóteses se colocaram: um epígono de Jacinto regressado a Tormes? Um arroubo de consciência pô-lo a dar assistência gratuita ao seu eleitorado? Um caso exemplar de renúncia aos bens terrenos, antes da austeridade do voto de pobreza? Tudo possibilidades comoventes, não haja dúvida!... Porém, desenganem-se desde já, caros leitores! O Albano não dorme em serviço! Regressou, sim! Mas com os olhos postos na sinecurazinha da ordem que lhe acenava, fremente, à sua espera. Sabem qual?  A Direcção Regional da Segurança Social da Guarda!... Neste ponto, confesso que estou quase a chorar... Mas a história, pelos vistos, só agora começou. Para o nosso herói, o momento é propício a que a política não política seja a continuação da política. Ou seja, que o exercício de um cargo não político na Administração seja a continuação da política por outros meios. E o Clausewitz que me perdoe estes abusos de exegese.
Mas voltemos ao tema que aqui me traz. Qual o significado da exposição mediática de Albano no passeio? Decerto o ex deputado não se chegou à frente para dar uma Ted Conference, numa paisagem de luxo, sobre um tema a propósito. Até porque tenho dúvidas que a criatura saiba o que isso seja. Não tenhamos ilusões. O novo Director resolveu fazer política pura e da forma mais demagógica e rasteira que é possível. Como já dei a entender, a iniciativa poderia ter decorrido sem os holofotes da comunicação social por perto. Para isso, bastaria que o Director Regional não estivesse lá. Logo isso demoveria a comunicação social de aparecer. Havendo declarações do responsável regional, fá-las-ia fora do contexto físico da actividade. Mas o nosso Albano não resistiu aos holofotes. Nem sequer lhe passando pela cabeça que as crianças, assim expostas numa acção que deveria ser tão somente de sensibilização, podem ser objecto de estigmatização no futuro. E que ele não está a dar nada a ninguém que lhe saia do bolso, mas tão só a gerir recursos públicos para fins assistenciais. E que a primeira qualidade do benemérito (que ele não é nem nunca será) é a humildade.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Outra vez a mochila do gajo...

Escrevo-te com o fogo e a água

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

António Ramos Rosa, Volante Verde, 1986

Sonhar é preciso (15)

Da penumbra

Um murmúrio imperceptível durante o dia, enche toda a penumbra nocturna.

"Aforismos", Teixeira de Pascoaes

domingo, 18 de julho de 2010

Filmes para uma vida (3)



"Breakfast at Tiffany's"  ("Boneca de Luxo", 1961), de Blake Edwards

Com: Audrey Hepburn, George Peppard, Buddy Ebsen, Patricia Neal;
Produção: Paramount Pictures

Esta comédia melodramática constitui um dos maiores sucessos da história do cinema. Embora intemporal, soube ser  também o retrato de uma época e vê-se hoje com a mesma frescura de há 50 anos.  O filme recebeu dois Oscares: Melhor Banda Sonora e Melhor Canção (Moon River). Hepburn foi nomeada para melhor actriz principal.
A película baseia-se no livro homónimo de Truman Capote, de 1958, que se veio a tornar um verdadeiro clássico da literatura americana contemporânea. A obra foi reeditada entre nós em 2009, sob a chancela da D. Quixote, com o título "Boneca de Luxo".  A versão cinematográfica alterou bastante o argumento do livro. Algo que desagradou muito a Capote, especialmente a solução encontrada para o final.
Blake Edwards é um prolixo realizador, conhecido sobretudo por ter sido o criador da série Pantera Côr de Rosa. Mas para lá da comédia, de que o genial "The Party", com um inesquecível Peter Sellers, é exemplo maior - um filme cujo humor absurdo e obsessivo evoca Jacques Tati - experimentou o drama e mesmo filme de terror ("Experiment in Terror", 1962). Depois do seu casamento com Julie Andrews, é opinião corrente entre os críticos que a sua produção decaiu de qualidade.
Holly Golighly é a personagem principal de "Breakfast at Tiffany's". Protagonizada  por Audrey Hepburn, numa interpretação inesquecível. Deslumbrante, espirituosa e ternamente vulnerável, imprevisível, inquieta as vidas dos que com ela se cruzam. Mesmo usando uma voluptuosidade bastante esbatida em relação à personagem original, aqui substituída pela ingenuidade e pelo humor, não recua diante de expedientes para sobreviver e de planos para triunfar. Para uma história que é um autêntico libelo à sedução e, porque não, à amizade.A primeira escolha do realizador recaiu sobre Marilyn Monroe, a instâncias de Capote, que terá pensado nela como a actriz perfeita para reencarnar Holly. A que não terá sido estranho a partilha de uma vida de dissipação entre ambos.O primitivo realizador pensado pela Paramount para ao filme foi John Frankenheimer. Todavia, acabou por valer a escolha de Edwards, ao que parece imposta pela actriz.
A extraorinária banda sonora de Henry Mancini foi determinante para o sucesso da película. O tema principal, "Moon River" (composto em co-autoria com Johnny Mercer), passou imedatamente a clássico, mal o filme estreou. Moon River foi gravado em 500 versões diferentes e vendeu um milhão de cópias logo na edição original.
Há sequências no filme verdadeiramente emblemáticas. Pondo de parte a icónica serenata à janela de Holly, ressalta o plano-sequência da festa em sua casa. Os encontros mundanos eram tema corrente em certo cinema produzido nesta época. Basta lembrar o "Oito e Meio" e o "La Dolce Vita" de Fellini, o "La Notte", de Antonioni, mas sobretudo os primeiros filmes de Cassavetes, de que "Shadows" e "Too Late Blues" são exemplos maiores. Eram sobretudo uma oportunidade para a inovação estética, para mostrar o desembaraço nos costumes, para o humor, para os encontros inesperados e as declarações intempestivas.


Termidor

(de 19 de Julho a 17 de Agosto)

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Rota dos Galhardos (1)

Tipo: P.R.1
Extensão: - 11 Km
Partida e  Chegada: Folgosinho, Gouveia
Grau de dificuldade: Moderado 
Desnível:  450 m
Duração apróx.: 3,5 H

A Rota dos Galhardos (vd. Mapa do percurso) é um trilho com tudo o que é preciso para uma manhã ou uma tarde bem preenchida. Paisagens deslumbrantes, património histórico (calçadas romanas, necrotério de Pias, moinhos da Fórnea), bosques misteriosos, exóticas figuras de pedra esculpidas pelos elementos (Pedra do Faraó, Pedra Furada, etc.) ribeiros sussurrantes, fontes retemperadoras. E no final, ainda haverá tempo para um mergulho num poço da Ribeira do Freixo, de águas cristalinas. 
O trilho é feito, durante uma parte significativa, pela calçada romana dos galhardos, (classificada como IIP desde 1992), que inicia no termo da aldeia e termina na Portela de Folgosinho, em plena Serra da Estrela. O troço fazia parte do itinerário que ia de Braga (Bracara) a Mérida (Emerita), passando por Freixo, Marco de Canavezes (Tongobriga) e Idanha-a-Velha (Igaeditania). Neste ponto, ligava Viseu a Famalicão da Serra. Depois de passar por Melo e Freixo da Serra, cruzava Folgosinho, antes de ganhar fôlego e atravessar a Serra. Depois da Portela, seguia para Cantarinhos, Casa das Pias, Reigoso, atravessando o Mondego na Qta. da Taberna e daí pela Tapada/Quinta da Eira, onde existe novamente calçada, Quinta. do Cadouço, até atingir Famalicão. Pontuam várias casas-abrigo ao longo do percurso, a maioria em ruínas, o que é pena. Vencida a Portela, segue-se o entroncamento de ligações para o Covão da Ponte, Curral do Negro, Vale do Rossim e Videmonte, para onde segue o trilho, por estrada de terra, durante uns 5 Km. Junto ao marco geodésico dos Galhardos (1323 m) avista-se o magnífico planalto de Videmonte, com seus vastos campos de centeio, lameiras e terras lavradas de pousio, as torres eólicas de Salgueirais, a Penha de Prados, a Guarda, imponente, no cimo do seu horst. Do lado oposto, o Vale do Zêzere, a encosta sul do Vale Glaciário e os cumes da maciço central. Para poente, a Portela e o alto da Santinha. Este troço percorre uma das áreas menos conhecidas da Serra. Depois de cortar pela esquerda e passar pela Pedra Furada - curiosa formação que faz lembrar um animal mitológico que nos observa à passagem da fraga - o percurso descendente continua por via romana até à ponte que atravessa o Ribeiro do Freixo, passando por Pias e a pedra do Faraó. É chamada "Calçada dos Cantarinhos", mas pouco se sabe acerca do seu traçado e função. Várias possibilidades se colocam: a) Folgosinho foi um cruzamento de vias romanas (a já referida e uma outra, que ligava Marialva (Aravorum) a Bobadela, Ol. do Hospital (Veladis), pela vertente oeste do PNSE) e desde sempre ponto obrigatório de penetração na Serra. Ora, sabe-se da existência, já naquela época, de exploração de estanho nas Minas dos Azibrais, ali perto. É então possível que tenha servido como via de acesso à mina (algo que os romanos nunca descuravam) e assim se tenha mantido durante longo período; b) A sua (re)construção pode ser medieval e tenha sido utilizada como ligação, pela Serra, entre Folgosinho a Linhares;  c)  É possível que tenha funcionado como nó de ligação entre Folgosinho e a via que partia de Lamego até Famalicão, pelo Mondego, na qual entroncaria perto da aldeia dos Trinta.
Segue-se o registo fotográfico do percurso, que em boa hora calcorreei  esta semana. Para ampliar, basta clicar na imagem.

Rota dos Galhardos (2)





Rota dos Galhardos (3)






Sempre a Amante Ultrapassa o Amado

O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A sua dificuldade reside no que é complicado. A própria vida, porém, tem a dificuldade da simplicidade. Só tem algumas coisas de uma dimensão que nos excede. O santo, declinando o destino, escolhe estas coisas por amor a Deus. Mas que a mulher, segundo a sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, isso evoca a fatalidade de todos os laços de amor: decidida e sem destino, como um ser eterno, fica ao lado dele, que se transformará. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. A sua entrega quer ser sem medida: esta é a sua felicidade. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: exigirem-lhe que limitasse essa entrega.

Rilke, in "As Anotações de Malte Laurids Brigge"

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Sonhar é preciso (14)

As portagens do nosso descontentamento

De degrau em degrau, e sem que as fraldas fossem mudadas de tempos em tempos, como lembrou a propósito Eça em "As Farpas", a política em Portugal foi ficando local de abrigo para gente desclassificada, a tender para a psicopatia, ignorante, boçal, sem princípios, sem qualificações profissionais ou cívicas. As excepções contam-se pelos dedos de uma só mão. Sei bem que lembrar certas coisas às vezes é doloroso para quem é apanhado. A ilustrá-lo, atentemos em dois exemplos da vida pública mais recente:
1º recordam-se da airosa intervenção do jesuítico Mota Amaral, aquando da sua retirada da vida parlamentar? Sem pestanejar e sem aquele seu conhecido sorriso seráfico, disse estar, na hora da despedida, "de consciência tranquila". Isto sob os rasgados aplausos (também) do PS. Repare-se que estamos a falar da mesma figura de cera que impediu que as escutas da operação "Mãos limpas" fossem utilizadas pela Comissão de Ética na sua investigação sobre o papel do 1º Ministro na gorada compra da TVI. Do mesmo que se remeteu ao silêncio a propósito do episódio dos gravadores furtados pelo deputado Ricardo Rodrigues a dois jornalistas da revista "Sábado", durante uma entrevista. Mas parece que tamanho zelo de insigne capataz valeu a pena. No final, veio a "merecida" recompensa: o estatuto senatorial encobrindo a insignificância moral.
2º Lembram-se das promessas dos candidatos apresentados na Guarda pelo PS, nas últimas legislativas? Ou, mais exactamente, do cabeça de lista Francisco Assis? Pois bem, vou recapitular. Em Setembro de 2009, a propósito de uma eventual mexida nas SCUT que servem o distrito, afirmou o candidato em entrevista à Rádio Altitude que "levantaria a voz" contra o fim das mesmas, ainda que "proposto por governo do PS". Ver aqui a notícia. Sobre o número dois, José Albano, nada se sabe. Presumindo-se que andasse a fazer contas para saber o timing exacto para saltar da AR para um lugar de nomeação política a la carte. Onde a sua irrequieta nulidade desse menos nas vistas. Quanto aos deputados eleitos pelo PSD, Carlos Peixoto e João Prata, devem ter engolido o princípio da universalidade de uma assentada, sem mastigar e fazendo o acto de contrição ao mesmo tempo. A deglutição foi certamente auxiliada por uns bons litros de Água das Pedras e uma caixa de Alka-Seltzer. Pois bem, o ex cabeça de lista e agora líder parlamentar da sua bancada teve também direito a um inusitado momento Chavez! Certamente por descargo de consciência, Assis emitiu uma declaração de voto no final da votação da proposta de alteração ao decreto-lei do Governo sobre portagens nas SCUT. Onde invoca as suas responsabilidades perante o círculo que o elegeu. Um gesto louvável, sem dúvida. Só que inócuo e sem qualquer efeito prático. Semelhante a uma estimável declaração retórica que tresanda a impotência. Onde é que a sua voz se "levantou" contra esta machadada fatal no desenvolvimento do interior? A sua única opção era ter votado contra a proposta. Fossem quais fossem as consequências políticas do acto. Agora, nem mil desculpas farão comover ninguém.

Vem aí o Transblues

(clicar para ampliar)

O Transblues - Festival de Blues Béjar / Guarda começa hoje na cidade espanhola e na sexta na Guarda. Trata-se de uma iniciativa do TMG e da Junta de Castilla y Léon, com apoio das autarquias das duas cidades. Os concertos decorrerão no Jardim José de Lemos e no café-concerto do TMG. Dia 16, teremos o trio Michael Hill's Blues.No sábado, segue-se Larry Garner, um nome cimeiro da cena musical norte.americana do género. A acompanhá-lo, estará a Norman Beaker Band, grupo inglês que já actuou com outros “monstros” dos Blues como BB King, Buddy Guy, Alexis Korner, Jack Bruce, Van Morrison ou Chuck Berry, entre outros. No Domingo, segue-se o ecléctico guitarrista francês Cisco Herzhaft. Todos os espectáculos referidos decorrerão no jardim.

terça-feira, 13 de julho de 2010

A imagem íntima da luz...

Representamos o objectivo e o subjectivo, a quantidade e a qualidade, o número cardinal e o ordinal, a desordem corpuscular e a música das esferas, a fatalidade e a liberdade. Representamos tudo isso, num cenário sólido, líquido e gasoso. E, por isso, comemos, bebemos, e respiramos; - três virtudes do fôlego animado, porque muda o que come, em sensações, o que bebe em sentimentos e o que respira em ideias claras ou obscuras, conforme é límpido o ar ou enevoado… É de sólida origem a sensação; o sentimento é já de origem fluídica; e, então, o pensamento é só cor azul ou imagem íntima da luz…

Teixeira de Pascoaes 
 
Nota: e assim volto, durante algum tempo neste blogue, a um dos meus eternos autores de cabeceira...

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O polvo


A propósito da recente "fiesta" espanhola no último Mundial, uma leitora que pede o anonimato enviou-me o seguinte depoimento:

Pués a mi me encantou sobretodo Zapatero con la taza en las manos y un contador de votos eléctrico en la testa. Y tambien el portero Casillas besando su novia periodista en la TV. Que garra, hombre!!! Pero todavia me encantaram las noches con los árbitros en los hoteles sudafricanos. Que gilipollas, tio!  Que sudor! Después de bailar un poquito y me desnudar dicia: "uno!". Y ellos percibiam de imediato. Asi, el resultado del proximo juego estava echo!!! El pulpo Paul lo saberia en la manaña seguiente!!! Tambiém havia regalos de paella, unas tapas y algunos vouchers para unas escapaditas a Torremolinos después de la copa. Y no hay como dicir: "Viva el fútbol de verdad!"...

Conchita

domingo, 11 de julho de 2010

O chá e a falta dele

Segundo uma declaração divulgada no sábado pela assessoria de imprensa do Ministério da Cultura, a Ministra respectiva aceitou “com grande satisfação” o pedido de demissão do director-geral das Artes. E já tem um substituto para o cargo. Acusa Barreto Xavier de ser o responsável pela ausência de diálogo entre Gabriela Canavilhas e os agentes culturais. Ver aqui a notícia completa. Face a esta velhacaria, o visado respondeu com a elevação que se esperaria dele, através de um comunicado divulgado ontem pela agência Lusa. Onde salienta que em 2010 foi “com grande dificuldade” que conseguiu trabalhar.

Sonhar é preciso (13)

Pois não ouves a minha alma vestida de silêncio?

Recuso os sonhos que te ignoram e os desejos que não possas despertar. Não quero fazer um gesto que não te louve, nem cuidar uma flor que não te enfeite; não quero saudar as aves que ignorem o caminho da tua janela, nem beber em ribeiros que não tenham acolhido o teu reflexo. Não quero visitar países que os teus sonhos não tenham percorrido como taumaturgos vindos de fora, nem habitar cabanas que não tenham abrigado o teu repouso. Nada quero saber de quem te precedeu em meus dias, nem dos seres que aí permanecem.

Carta de Rilke a Lou Andreas-Salomé

sábado, 10 de julho de 2010

Ser ou não ser


Amanhã vou torcer pela Holanda. Obviamente. Um português que se preze faz o mesmo. As razões são várias: 1º estive a fazer a contabilidade e descobri que tenho mais amigos holandeses do que espanhóis; 2º não suporto ver tanto jogador do Barça (o FCP local) junto na mesma equipa; 3º aquele futebolzinho de salão dos espanhóis representa um retrocesso na evolução da modalidade. Se todas as equipas jogassem assim, acabaria o espectáculo e a magia do desporto-rei. 4º Pelo contrário, é um regalo ver jogar esta Holanda. Já agora, soube-se à pouco que a cantora Shakira (confesso que não sei quem é) apoia a selecção espanhola. A rapariga é colombiana. Deve pertencer ao cartel pimba lá do sítio. Nesse caso, está tudo explicado. Por sua vez, a selecção holandesa tem uma fã que a apoia de alma e coração: Bobbi Eden, actriz porno holandesa. A diva prometeu fazer sexo oral a todos os seus seguidores no Twitter se a Holanda ganhar à Espanha amanhã. São só 30 mil...

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Sonhar é preciso (12)

Uma torre se erguerá do fundo

Não: uma torre se faça do meu peito
e eu próprio seja posto à sua beira:
onde nada mais há, haja ainda uma vez dores
e inefabilidade, mais uma vez mundo.
Mais uma coisa só no desmedido.
que se faz escura e de novo se ilumina,
mais uma última, ansiosa face,
que no exílio nunca se apaziguará,
mais uma extrema face de pedra,
perante a sua gravidade curvada,
que as amplidões, que serenamente a aniquilam,
obrigam a ser sempre mais feliz.

Rainer Maria Rilke (tradução: Paulo Quintela)

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Stalker

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Outra anedota

Satisfazendo o pedido para acrescentar algo mais ao anedotário nacional, aqui vai mais uma tentativa. O tema é a próxima revisão constitucional. A proposta do PSD, embora só apresentada em Setembro, já é conhecida nas suas linhas mestras. No que toca ao sistema político e eleitoral, apresenta uma substancial alteração de fundo. Trata-se, nem mais nem menos, da eliminação da referência ao método de Hondt, a conhecida fórmula de conversão dos votos em mandatos. Substituído, no desiderato, pela expressão "método de conversão proporcional". O que, não especificando se altera o método utilizado (da média mais alta), unicamente refere uma finalidade comum. Bravo! Só o sinistro Paulo Teixeira Pinto, que dirige o grupo que está a cozinhar a proposta, poderia afirmar uma coisa destas sem se deixar rir convulsivamente! Estou de rastos perante tamanho espírito reformista! Eis um exemplo maior do que é preciso mudar que para que tudo fique na mesma! Grande Lampedusa! Se quiserem, posso contar mais outra. Sempre às ordens...

sábado, 3 de julho de 2010

quinta-feira, 1 de julho de 2010

A guerrilha não passará!...

A Fundação Trepadeira Azul, instituição que tem desenvolvido um trabalho notável sobretudo em áreas ambientais, está sediada na Quinta de Santo António, freguesia de Aldeia viçosa, concelho da Guarda. No passado domingo, aí promoveu um concerto de música erudita, pelo grupo "Capela Egitanea".  Porém, quem ao local acorreu, deparou-se logo à entrada do recinto com uma situação insólita: o Presidente da junta de Freguesia Local, Baltasar Lopes, acompanhado de alguns comparsas e completamente alterado, gesticulava e vociferava contra a realização do concerto, anunciando o seu boicote ao som das vuvuzelas. Ao mesmo tempo, ameaçava a Direcção da Fundação com represálias de todo o tipo. E até o público que se dispunha a assistir ao espectáculo. As "razões" apresentadas pelo edil para o seu comportamento diziam respeito a questões judiciais passadas, havidas entre a Junta e a Fundação. Pelo caminho, ia erguendo uma série de impedimentos administrativos, completamente infundados, à realização do concerto. Apesar dos repetidos apelos à contenção, o autarca manteve o seu propósito. De modo que as vuvuzelas se fizeram soar ao longo do espectáculo. O desenrolar dos factos foi presenciado pela GNR, chamada ao local, mas que nada fez para impedir o sucedido.
Entretanto, a história é denunciada no dia seguinte pelo Américo Rodrigues no seu blogue "Café Mondego", cujo texto convido a ler. Como verão, os factos são relatados na primeira pessoa, pois o autor esteve presente no concerto e são recheados de abundantes pormenores.
Mas o episódio não termina por aqui. Logo na terça feira, Baltasar Lopes apresentou uma "proposta" na sessão respectiva da Assembleia Municipal (de que é membro por inerência, sendo presidente de uma Junta de Freguesia, para quem não sabe), no sentido de ser diminuído em 20% o apoio da Câmara ao Teatro Municipal da Guarda. A proposta foi posta à votação, tendo sido aprovada com os votos de toda a oposição e parte do PS. Não enquanto resolução, mas como "recomendação". Sem qualquer propósito vinculativo para o executivo, portanto. Durante a discussão, houve ainda tempo para um "iluminado" presidente de junta fazer incluir na proposta o encaminhamento da verba assim "recuperada" para as Juntas de Freguesia. Até ao momento, não houve ainda qualquer reacção por parte da estrutura concelhia do PS. Sabendo-se que Baltasar Lopes, embora independente, foi eleito com o apoio dos socialistas. Por outro lado, Américo Rodrigues denunciou o episódio em primeira mão e da forma veemente que se lhe reconhece. O que levou a que fosse visado de duas formas: como Director do TMG, pela insólita iniciativa descrita; pessoalmente, através de insultos e ameaças que afirma ter recebido a partir de então.
Algumas ilações:
a) O caso, embora aparentemente possa ser remetido para o fait divers pitoresco, reveste-se de alguma gravidade.  Sendo urgente uma tomada de posição por parte da Câmara e da Concelhia do PS. Retirar a confiança política ao autarca é o mínimo que se exige. O normal seria exigir a sua demissão, ameaçando-o com uma auditoria às contas da praia fluvial.
b) Por outro lado, sabe-se que a deliberação da AM, seja qual for a sua forma, não terá quaisquer efeitos práticos. O órgão não tem competência para alterar orçamentos devidamente aprovados de uma empresa municipal, a Culturguarda. Mesmo assim, é incompreensível como proposta tão descabelada foi aprovada. As razões do proponente são claras: têm as dimensões precisas de uma vingançazinha pessoal de quem não suporta ver-se posto em causa. E de quem usa um órgão autárquico, que integra por inerência de funções, como caixa de ressonância dos seus ressentimentos pessoais. De resto, as repetidas facécias do autarca ajudaram a compor a sua imagem de marca: a do cacique trauliteiro e populista. É altamente improvável que os verdadeiros motivos do edil fossem conhecidos de quem votou favoravelmente a proposta. Que integrou toda a oposição e os Presidentes de Junta do PS. A história é contada aqui pelo AR.
c) O resultado e a composição da maioria que aprovou a proposta não me surpreendem. Por dois motivos: 1º Na Guarda, para além do conhecido populismo associado ao eleitorado tradicionalista de direita e dirigentes dos partidos e instituições que o representam, existe um outro. Trata-se do populismo promovido por certos partidos da chamada esquerda. Que vivem do soundbite miserabilista, de uma superioridade moral que ninguém lhes outorgou e do engraçadismo de circunstância. Associando a cultura ao despesismo e ao desperdício. Ou quando muito, a som de fundo da "revolução". Não porque realmente acreditem nisso, mas por razões de mera estratégia eleitoral. 2º Ficou evidenciado que a maioria dos presidentes de Junta vivem amarrados às suas clientelas e à sua "influência". Não apresentando qualquer estratégia que ultrapasse a sua sobrevivência política. A alteração efectuada à proposta inicial, que faz lembrar a repartição de um saque, fala por si.
d) O TMG é uma peça essencial para a afirmação e desenvolvimento da cidade. Não vou aqui repetir as razões que tantas vezes referi. Aqui, por exemplo. O que interessa, por agora, é focar na noção de que o Teatro Municipal é uma instituição modelar, com provas dadas e, em cada ano que passa, crescentemente acolhido pela cidade no seu imaginário. Claro que não esta isento, bem pelo contrário, da avaliação política nos órgãos próprios, da avaliação do próprio público e do benchmarking. Outra coisa é admitir ou compactuar com esta espécie de terrorismo, que desprestigia as instituições, pode colocar em causa políticas de longo prazo assumidas pela autarquia e cria um ruído completamente à margem do que interessa debater. 
Conclusão:
É fundamental não só que a Câmara se demarque desta "recomendação" e de quem a propôe, como também reafirmar a sua aposta na actividade cultural como factor estratégico de desenvolvimento local. Sobretudo agora que se percebeu que, embora para muitos seja esta a aposta certa, ainda não o é para todos. O que não é necessariamente mau. Sabendo-se que as opções políticas de risco são as únicas dignas desse nome.

O fundo de maneio

Lido

Começo por uma explicação sumária do socratismo. O socratismo consiste num sistema político de poder análogo àquele que vigora na Rússia: é um putinismo brando. A sua versão socratina tem um esquema teórico-prático simples: uma super-estrutura política, um nível intermédio da Maçonaria, dos media, da finança e das cúpulas judiciais, e uma infra-estrutura de informações. A superestrutura tem um círculo interior, ramificações de fidelidade e lóbi, e convivas aliados nos agrupamentos adversários (CDS-PP, PSD, Bloco de Esquerda e PC). A Maçonaria (a irregular e a regular) no seu culto do poder, comércio de favores e agenda radical, providencia uma rede subterrânea de protecção e atenuação de tensões. Os media são controlados directa e indirectamente, através de financiamento, administradores e editores de confiança. A finança troca o seu patrocínio e dependência política pelo saque. E das cúpulas judiciais espera-se que contenham ataques e exerçam a acção punitiva sobre os adversários. Mas na base do poder socratino estão as informações. É este o segredo do socratismo, que se procura esconder com o máximo esforço e cuidado, «por questões de segurança» : as informações são a força de suporte e projecção do seu feixe de poder.

António Balbino Caldeira, no "Do Portugal Profundo", a propósito das denúncias públicas de uma central de informações do Governo