terça-feira, 31 de março de 2009

segunda-feira, 30 de março de 2009

Os novos povoadores

"Em Portugal, 42% da população vive em 5% do território. Apenas 3,5% da população vive em cidades médias: Coimbra e Braga. Isto significa que 42% da população vive imobilizada sobre si e 54,5% da população no "interior profundo". Segundo dados da ONU, em 2015 a situação será ainda mais caótica: 69,2% da população portuguesa viverá nas duas áreas metropolitanas. Em Espanha, 25% da população vive em cidades médias, no total de 32." Estes números, que só não surpreendem quem não assiste a esta realidade, aqui bem no centro do chamado interior profundo, são revelados no blogue "Inovação & Inclusão". O qual funciona como porta-voz de um projecto recente, apoiado pela ANM, chamado "Novos Povoadores". Claro que, no século XXI já não existem as amnistias generalizadas para quem opte por viver nas áreas do "no man's land", nem forais prometendo benefícios e isenções fiscais, "propostas irrecusáveis" com que os reis da 1ª dinastia acenaram aos potenciais pioneiros. E não se pode encarar 2/3 do território nacional como um pacato e remoto "couto de hominizados". A ideia para o projecto surgiu a partir de três licenciados. Tem precisamente como objectivo obstar ao êxodo demográfico e de competências no interior. Promovendo a fixação de famílias constituídas por profissionais qualificados em algumas cidades médias, com boas acessibilidades, e cujas autarquias acolham o programa. Até agora, já houve 100 candidaturas e em Setembro irão ser instaladas as primeiras 25, em Abrantes. As novidades sobre o desenrolar deste projecto vão sendo actualizadas também na respectiva página do Twitter, que sigo. Ora, entre as cidades piloto do programa figuram, por exemplo Castelo Branco e Viseu. Sobre a Guarda, nenhuma menção. E não se julgue que esta afirmação é firmada em algum tipo de regionalismo atávico. As razões são outras. A desertificação é negativa para o país no seu todo e não só para o interior. Contra ela, não bastam as promessas sazonais dos políticos, nem a generosa captação de investimentos. É a proliferação de programas como este, pensados a médio prazo, sustentados e cujo retorno não se mede em cifrões, mas em níveis de qualificação e competitividade, que verdadeiramente pode fazer inverter a sangria demográfica do interior para o litoral. Projectos esses onde o princípio da discriminação positiva é encarado sem preconceitos e onde o apelo ao empreendorismo e à criação de know how são as palavras-chave. Só que, pelos vistos, ao alhear-se da iniciativa, o executivo da autarquia guardense parece continuar a definir como prioridades o betão e as grandes superfícies. Depois admirem-se que "isto", qualquer dia, "é só paisagem".

domingo, 29 de março de 2009

Stalker

Ou comes a sopa toda ou chamo os neoliberais...

A ofensiva política de Sócrates, já a pensar na pré-campanha para as europeias, arrancou este fim de semana. Os alvos são óbvios: o PSD e a sua líder. O soundbite eleito foi este: a oposição ficou sem programa porque o pensamento único do neoliberalismo faliu. Sócrates no seu melhor: colocar as responsabilidades da crise no exterior, vislumbrando uma espécie de orfandade nas forças políticas à sua direita; aligeirar a carga da sua governação "televisiva", colocando-se na posição de único paladino contra as tenebrosas forças neoliberais indígenas. Um belo naco de ficção, em verdade vos digo. Capaz de enganar os tolos e os amantes de papas. Ficam as perguntas: alguém de boa-fé acredita que o neoliberalismo em Portugal foi algo mais do que um nicho blogosférico, académico e de num certo mundo empresarial, capaz de animar alguns think tank, duas ou três publicações e alguns janotas? O facto de a demissão cívica, a permissividade administrativa e o terrorismo fiscal encorajarem a proliferação de espertalhaços ganaciosos e sem escrupulos, faz deles neoliberais? Não brinquem com coisas sérias, por favor! Algum dia o PSD usou as vestes do neoliberalismo, a não ser por conveniência táctica? No entanto, Sócrates continua a atirar areia para os olhos dos incautos. Os tempos estão difíceis e cada votinho contra. Ora pois!

quinta-feira, 26 de março de 2009

Tábua de marés (38)

The Bob Sands Big Band (http://www.bobsands.es/)
“Seia Jazz & Blues” - V Festival Internacional de Jazz e Blues
Cine-Teatro da casa Municipal da Cultura
7 de Março, pelas 21:45 Horas

A edição do Festival este ano encerrou as suas portas da melhor maneira. O público português não está, regra geral, muito habituado a assistir a espectáculos com “orquestras” de Jazz. Com efeito, as apresentações de grandes bandas são raras e reservadas para grandes festivais ou programadas para grandes casas de espectáculos. Conseguir trazer uma banda desta dimensão – lembro que nela participam 21 elementos – é já por si um acontecimento. Só possível, segundo a organização, devido ao facto do líder e restantes músicos estarem radicados em Madrid. Foi portanto a proximidade que facilitou a empresa. Por onde começar? Bob Sands é nova-iorquino. Segundo a sua página oficial, cedo se dedicou ao saxofone. Depois de um vasto currículo e de uma carreira com algumas distinções pelo meio, em 1992 radica-se em Madrid, onde ainda vive e trabalha. Tocou com: Lionel Hampton, The Glenn Miller Orchestra, Dizzy Gillespie, Paquito D'Rivera, Gerry Mulligan, Mel Lewis, Gary Smulyan, Clark Terry, Mark Murphy, Dee Dee Bridgewater, Ron McClure, George Mraz, Kurt Weiss and J.J. Johnson, entre outros. Como curiosidade, já tocou também com Bernardo Sasseti. Em 1998 gravou o seu primeiro disco em Espanha para a editora Fresh Sound New Talent, onde participou, entre outros, o nosso conhecido Carlos Barreto. Actualmente, trabalha como líder de vários projectos, com destaque para o seu trio, quarteto e esta "The Bob Sands Big Band". Lecciona também na "Musikene" em San Sebastian. Por último, como prova da sua heterodoxia, regista algumas participações noutras áreas musicais. Uma carreira prometedora, sem margem para dúvidas. Foi pois com uma enorme curiosidade que corri a assistir a este concerto. Como já anteriormente tinha dado conta, esta sala apresenta algumas deficiências no que toca à qualidade sonora. Não sei se devido à sua concepção, ou se o sistema de som não estava devidamente configurado nos espectáculos a que assisti. Essa dúvida manteve-se no caso presente. Tanto mais que uma intensidade e diversidade sonora como a daquela noite exigia cuidados especiais. No entanto, ao longo da prestação, por via certamente de ajustamentos, o som melhorou francamente. Sobre o espectáculo em si, foi simplesmente memorável. O acerto aliado ao virtuosismo proporcionou à assistência grandes momentos de jazz. Embora correndo o risco de ser injusto, destaco a prestação do trompetista Raul Gil. Cujo particular fulgor, com acentos de um límpido lirismo, encheu a sala. Foram passados em revista alguns standards, como “Groovin Hard”, ou “Love for Sale”, de Buddy Rich. Seguiu-se um vendaval de jazz orquestral de primeira água, O que incluiu alguns temas clássicos, que soaram na sala como se tivessem sido compostos no dia anterior: de Kenny Dorham a Count Basie, de Sammy Nestico a Frank Foster. A forte presença dos metais apoiada por uma poderosa secção rítmica, não impediu, contudo, aqui e além, soberbas intervenções, protagonizadas por alguns dos solistas “de serviço”. No fundo, oportunidades para a orquestra ganhar fôlego até ao próximo “ataque” que se seguiria. Em resumo, acerca deste espectáculo, só caberia acrescentar: pelo que foi referido e por tudo aquilo que não se conseguiu expressar, sem dúvida que Seia foi merecidamente a capital, por um dia, do Jazz em Portugal.

Publicado no Jornal “O Interior”, em 19 de Março

Tábua de marés (37)

Ana Free
http://www.anafree.homepage.t-online.de/84301/home.html
Teatro-Cine de Gouveia
14 de Março, 21.30h

A cantora é um caso sério de popularidade, a julgar pelas audiências. Ana Free é luso-inglesa e vive actualmente na pérfida Albion. A sua ascensão no mundo do espectáculo deveu-se, segundo rezam as crónicas, ao uso intensivo das novas ferramentas de comunicação da Web 2.0. A partir das quais deu a conhecer a sua música. Com especial destaque para o famigerado You Tube, onde colocou os seus vídeos caseiros, usando a sua voz uma omnipresente guitarra. Interpretava canções originais e algumas versões de standards famosos, dos Rolling Stones a Ben Harper. Pouco depois, esses clips já contavam com mais de seiscentas mil visualizações A coisa, claro está, deu que falar. E certamente os convites para gravações e espectáculos não tardariam a chegar. Pois bem, ao que parece, o seu primeiro e, até agora, único single, “In my Place!”, é um dos temas mais passados nas rádios nacionais de referência. O mediatismo deveu-se, em grande medida, à utilização do tema num anúncio publicitário de uma conhecida operadora móvel. E assim, em questão de meses, nasceu um fenómeno musical com repercussões internacionais. Os números realmente impressionam: 7,8 milhões de visitas aos seus vídeos; mais de 25.000 subscritores; number one do top português no Itunes; 62 vídeos da sua autoria no You Tube; o motor de busca do Google devolve mais de seis milhões de entradas com o seu nome! Ups! Pena é que a sua página do Twitter seja de uma pobreza franciscana. É certo que este jovem não é caso único, no que diz respeito a um semi-estrelato tão fulgurante como incompreensível. Possível graças à Web, como já se referiu. O problema está na vulgaridade musical evidenciada pela compositora/intérprete. Com possibilidade de progredir, é certo. Mas creio não vir a passar de um epifenómeno, incubado no ciberespaço e rapidamente engolido pela voragem mediática. Uma espécie de Floribela baladeira. Poderia ser diferente? Talvez, mas espero sinceramente não estar enganado, pois criações destas acontecem todos os dias. Mesmo que as inevitáveis e rebuscadas comparações com Sheryl Crow comecem a aparecer. O concerto, como se esperava, foi um delírio para os incondicionais e uma oportunidade para a rendição dos fãs de última hora. Apesar do profissionalismo e à vontade demonstrados por Ana Free. Pela minha parte, só confirmei o que já esperava.

Publicado no Jornal “O Interior”, em 19 de Março

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quarta-feira, 25 de março de 2009

Cultura contra a crise

Mesmo a fechar a navegação, descobri um texto de Manuel Maria Carrilho, intitulado "A cultura contra a crise: para uma refundação das políticas culturais". O artigo foi recentemente publicado no DN e foi apresentado à Fundação Res Publica, no início do ano. Depois de uma leitura mais atenta, aqui farei um comentário.

terça-feira, 24 de março de 2009

A propaganda

O anúncio original da antena 1



A réplica muita gira do berloquedesquerda:




Desde a sua utilização em massa, a partir dos regimes do espectáculo concentrado, usando a terminologia de Guy Debord, a propaganda tornou-se o instrumento predilecto ao serviço das forças e poderes políticos. O anúncio original foi, como se sabe, criado por uma spin doctor de Sócrates. Entretanto, devido aos protestos da CGTP, foi retirado. O BE, na senda do humor-engraçadote-e-recorrente-a-querer-imitar-os-situacionistas, lá marcou o ponto, com o remake supra. Repare-se como entre a demagogia servil do primeiro e o populismo miserabilista do segundo não há praticamente diferença. Neste caso, pode dizer-se, a forma e o apelo persuasivo são os mesmos. Só a mensagem é diferente. Ou nem mesmo essa. Em ambos os casos, repetida ad nauseum, reduz-se simplesmente ao meio, dando razão a Mc Luhan.

Decorrente

O Manuel Domingos lançou-me novamente as argolas de outra corrente literária. Nesta, o motivo é a poesia. Já agora, será que haverá outro? O móbil do crime, diz quem lançou a ideia, é que "serão retiradas das pilhas periclitantes que se derramam atrás das portas, encostadas às paredes, aquelas pequenas gotas de alma que ficam connosco, mesmo quando nos esquecemos delas." Pois bem, não é que tenha lido muita poesia nos últimos tempos. Prefiro vivê-la e registá-la. Mesmo assim, escolhi para a ocasião um texto particularmente luminoso de António Ramos Rosa. E o Manuel vai-me perdoar mas não vou acorrentar mais ninguém.

Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo
Há um íman que nos atrai para o interior da montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
O último pássaro calou-se.As estrelas acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas têm perfumes silvestres.
Que sedosa e fluida é a água desta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.

in A Rosa Esquerda (1991)

segunda-feira, 23 de março de 2009

Riscos

(clicar para ampliar)

Livro-objecto. O conceito sempre me fascinou. Sobretudo quando a obra resultante faz jus ao nome. Não confundir com outra criação contígua, o "livro de autor". Neste caso, trata-se de uma obra única e irreproduzível, composta pelo seu criador de forma a fixar num só "objecto" várias linguagens. Recorrendo às mais variadas técnicas, como a colagem, a ilustração, a gravura, a postagem. No caso do livro objecto, a co-autoria é mais óbvia, as possibilidades criativas são mais mplas, bem como a reprodutibilidade. Obviamente, estas características não são de todo rígidas, podendo mesmo haver obras que participam de umas e de outras. É grande pois a minha expectativa em relação ao "objecto" posto amanhá em circulação. Autores: Américo Rodrigues (textos), Zigud (fotogramas) e Jorge dos Reis (desenho gráfico). A edição é da associação Luzlinar. Será às 18 horas, no Café Concerto do TMG. Consultar aqui o contexto e os antecedentes. Seguir-se-á, pelas 21.30 h, a tertúlia cinéfila, com a exibição da curta-metragem "Um bando de passarinhos", de Zigud. O motivo de inspiração é comum ao livro. Ver aqui mais informação.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Amanhã, portanto...

E zás! Catrapás! No dia que também é o da entrada oficial da Primavera, nada como um rodízio poético para celebrar devidamente a dupla efeméride. Já agora, não é de mais lembrar, a sessão é aberta a todos. Ver também aqui, no blogue oficial do TMG.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Tábua de marés (36)


“Rugas”
Exposição de fotografias de Carlos Pedro (portfólio)
Galeria do Paço da Cultura da Guarda
De 9 de Março a 30 de Abril

Sobretudo na arte (pronto, já disse a palavra), é preciso chegar ao ponto exacto em que não basta a justeza das imagens, mas a evidência de serem lidas como simplesmente imagens. No fundo, uma preocupação de ordem higiénica. Claro que o célebre trocadilho de Godard, só possível na década da inocência, resulta melhor em francês. Mas o alcance da expressão do cineasta resiste bem à alteração do idioma. Até agora, de Carlos Pedro “só” conhecia a sua figura afável, a sua boina sempre presente, a sua música, a sua disponibilidade perante a vida. Quando soube que também se dedicava á fotografia e que alguns dos seus trabalhos iriam ser exposto, só pensei o seguinte: eis uma obra que, por desconhecer em absoluto, de certa forma é impossível decepcionar-me. Pois o que sabia do autor coloca-a acima da dúvida, ou da surpresa. Mas estava longe de imaginar que, neste caso, só em relação à primeira parte estava certo. A surpresa foi tão intensa como espontânea, diante das imagens captadas por Carlos Pedro. As quais, voltando ao início, para lá de simples imagens, são também, imagine-se, igualmente justas…
A mostra está organizada de modo a ocupar as três divisões da galeria. Nas primeiras duas, predomina o retrato individual. O motivo vai desde o clássico – onde “De cabeça erguida”, “Encontro com o tempo” e “O regresso a casa” são os exemplos mais notáveis – até ao retrato em ambiente de trabalho (vd. a notável imagem do produtor artesanal das facas do Verdugal, “O fio da vida”), passando pelo registo iconográfico (“Domingo” e “Fé, em Santa Eufémia”). A última sala foi escolhida para a obra mais temática, privilegiando as manifestações musicais e festivas, numa perspectiva alternadamente colectiva e individual. Neste capítulo, destaque para duas sequências: a dos tocadores / pauliteiros transmontanos e a da “Festa dos Montes”, numa aldeia do concelho de Trancoso. Quer num caso quer no outro, o autor captou muito bem o movimento colectivo, o ritual que transcende os participantes, mas nunca os apaga. Dilui-os sim numa celebração pagã, onde o peso da terra não consegue iludir os esforços para lhe escapar. E onde a qualidade evidenciada por grande parte das imagens garante não só o valor artístico, como o interesse documental. Mas onde estão, afinal, as rugas, essas mesmas que deram o título à exposição? Encontramo-las um pouco por todo o lado. Nos rostos e nas mãos, é claro, nas pedras, nos portais das igrejas, nos sulcos do arado acabados de rasgar, nos alpendres sombrios, nos gravetos que alguém carrega às costas, nas uvas e no pão da peregrina, nas flautas e nos acordeões da festa, na espessura do silêncio, na pedra de amolar, no fio dobado. As rugas são os sinais inescapáveis do tempo, as gelosias por onde espreita uma suprema dignidade. Mas esta mostra memorável diz-nos também algo de novo: que as rugas são também as comissuras onde o tempo se esconde, as guaritas onde, como sentinelas, vigiamos a eternidade.

Publicado no jornal "O Interior", em 12 de Março

Tábua de marés (35)

“Minha Mãe”
Realização: Cristophe Honoré
, a partir do romance homónimo de Georges Bataille
Com Isabelle Huppert, Louis Garrel e Emma De Caunes

França, 2004, 110'


Ciclicamente, o cinema tende a aproximar-se do seu aliado mais óbvio, a literatura. Paradoxalmente, também o mais perigoso e exigente. Sobretudo quando se trata de obras de escritores “malditos”, como Bataille. Poderosa e corajosa, esta segunda longa-metragem de Christophe Honoré, é uma boa surpresa. Bataille, com reputação de inadaptável para o cinema, ganhou vida perante os nossos olhos. O cineasta transpôs a acção do romance para os nossos dias e para as ilhas Canárias, num desses complexos turísticos de massas que florescem em Espanha: uma arquitectura cuja simples visão, inumana, assustadora, basta para desejar mergulhar no inconsciente para se perder. Desde os primeiros planos aos abanões da câmara que sobrevoa estas paisagens de betão, estamos já no centro da história. Pierre e a mãe procuram um absoluto no qual o erotismo é apenas um instrumento. Não é só uma questão de prazer, mas de abjecção, de pureza, de sede, de medo da morte. A mãe não é a santa que Pierre acredita e desde que o pai morre misteriosamente (nunca saberemos porquê, como no livro) ela vai provar-lho. É a verdade que está aqui em causa, a verdade obscura, aquela que cega. A mãe é alcoólica, vive no deboche, entrega-se sem complexos, sem limite. E decide iniciar Pierre no deboche, confiá-lo a outras mulheres que o vão conduzir a jogos cada vez mais perigosos e para os quais não está preparado. Não interessa qualificar estas cenas, porque há palavras estereotipadas que sujam as imagens, que retiram toda a força aos actos, que marginalizam de imediato quem os comete. Sexuais, sim, mas sobretudo transgressoras. E é esse o grande mérito de Honoré: ter conseguido salvaguardar o essencial de Bataille – a transgressão – adaptada para a nossa época (nomeadamente no que diz respeito à ocultação da dimensão cristã de Bataille - mas a morte de Deus não exclui a procura do absoluto). Com imagens que nos transportam para zonas ‘infilmadas’ até hoje num filme. Portanto, a questão do filme pertence muito menos a Bataille e muito mais a Honoré. Não é por acaso que o filme é conseguido sobretudo pelas liberdades que se permitiu face ao texto original. Sobretudo a localização da acção nas ilhas Canárias, destino turístico que vende uma utopia de sexo fácil e céu demasiado azul. Levar o prazer batailliano, inseparável da ideia de transgressão, para um local que é como uma caricatura de uma sociedade que já permitiu tudo, já normalizou tudo, era um grande risco. E o filme sai vitorioso deste risco. O outro risco estava relacionado com a forma de encontrar o erotismo. Poderíamos pensar que o resultado fosse fraco, recusando Honoré a composição de grandes planos explícitos. Percebemos agora que, permanecendo à distância, em plano geral, não suprimiu a carga sexual, mas expandiu-a para todo o plano. Para tanto, serviu-se de um casting tão prestigiado como heterodoxo, em que brilha na primeira linha a grande Isabelle Huppert, escoltada por um jovem actor sobredotado, Louis Garrel, uma actriz que finalmente se afirmou, Emma de Caunes, e um ícone do underground, Joana Preiss, manequim e modelo da fotógrafa Nan Goldin. É o próprio realizador quem o confirma, em entrevista concedida na altura da estreia: “Queria fazer um filme que só devesse à luz, aos actores, à música. Mas esta abordagem era ingénua e infantil. Percebi que o que podia ser interessante no meu cinema é eu ter um pé no cinema e outro na literatura.” A certa altura dois personagens fazem sexo e por trás lê-se num cartaz “Alle Infos hier” (Todas as informações aqui), mas bem que poderia ser “Alle Ninfos hier”. De facto, o espaço é mostrado de forma quase degradante – uma zona turística que fala várias línguas, onde ninguém está em casa. Onde, no limite, se parte para a auto-destruição. Mas é aí precisamente que Bataille nos quereria levar. Ao lugar onde, nas suas palavras: “O riso é mais divino, é mesmo mais indecifrável do que as lágrimas.”

Publicado no jornal “O Interior”, em 12 de Março

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quarta-feira, 18 de março de 2009

Curtas

1. Vale a pena ler uma entrevista que Paul Schrader deu ao jornal "Público", publicada no suplemento Y. O realizador (e, recorde-se, argumentista de obras marcantes como "Taxi Driver"e "Touro Enraivecido") deslocou-se ao nosso país em recentemente, no âmbito do Fantasporto. Com efeito, no encerramento deste festival, foi estreada entre nós a sua última produção, "Adam Ressurected", que espero ver em breve. Na ocasião foi galardoado e deu uma pequena conferência. Ver aqui a notícia. Schrader, como ele próprio refere, teve uma educação calvinista, que teve consequências visíveis nas questões morais que atravessam os seus filmes. Na entrevista, falou sobre o fim do cinema, da necessidade de os criadores tirarem partido das novas tecnologias e não oporem-se a elas, da urgência do recurso massivo a novas formas de retorno do investimento no produção cinematográfica, que não passem só pela exibição em salas. O realizador lembra que hoje é possível fazer filmes com orçamentos cada vez mais reduzidos, graças a meios técnicos mais acessíveis, mas que a multidão de novos criadores do cinema indy americano não sabe ainda tirar partido disso.
2. Os dados estão lançados. Pelos vistos, a próxima batalha autárquica na Guarda vai ser travada entre Crespo de Carvalho, pelo PSD, e o actual presidente da câmara, Joaquim Valente, pelo PS. O resto, vão-me perdoar, não conta. A escolha do candidato social-democrata foi algo conturbada. Uma leitura atenta de "O Príncipe", de Maquiavel, tornaria perceptível os contornos e os saltos de gazela neste processo. Quanto à presença de Valente, seria mais do que natural. Embora pudesse ter gerido de outra forma certos dossiers mais estruturantes para a cidade, o seu mandato pareceu-me ser globalmente positivo. Para além de ser uma pessoa educada e cordata, o que não é de desconsiderar. O candidato do PSD é para mim um perfeito desconhecido. Sei que é empresário, coleccionador de arte e dinamiza o grupo de Amigos do Museu da Guarda. E é tudo.

Stalker



segunda-feira, 16 de março de 2009

Novamente o acordo ortográfico

Recomendo a leitura deste texto de Pedro Correia, no "Delito de Opinião. Bem a propósito da intenção do intermitente ministro da cultura em apressar a entrada em vigor do Acordo Ortográfico. Chama-se precisamente "O 'inteleto' do ministro" e conta a história toda. Incluindo o agendamento da discussão da petição popular na AR. Ou será antes "estória"?

domingo, 15 de março de 2009

Lido

Sabia sempre como chamar por ti.
Às vezes, respondias
e imaginava-te a saudade à flor dos olhos
(e uma alegria secreta por regressares na minha voz ).
Outras, deixavas-te estar com o silêncio,
o coração preso,
emaranhado em ausências,
as mãos longe,
ao sol da memória.

A.M. no "Imitação dos Dias"

sábado, 14 de março de 2009

A diferença

Notas de rodapé

Duas notas, relativas a este texto, onde comentei o debate parlamentar sobre as alterações que o Governo pretende aprovar sobre a união de facto:
1. A juntar aos aspectos salvaguardados pela lei anterior sobre a matéria, já do tempo do "bonzinho" Guterres, acresce um outro, até agora omisso. Trata-se da definição de um regime uniforme quanto às "responsabilidades parentais", em caso de dissolução do vínculo entre os progenitores, seja ele o casamento ou a união de facto. Ora, para acabar de vez com as dúvidas, a Lei 61/2008, de 31 de Outubro, mais conhecida por "Lei do Divórcio", veio alterar o art. 1911º do Código Civil. Fazendo equiparar automaticamente, nesta matéria, o regime estabelecido para a dissolução por divórcio à união de facto. Um avanço, sem dúvida.
2. O termo "jacobinismo", que utilizo para qualificar, em certas alturas, o comportamento da esquerda parlamentar, não é simples boutade. Com efeito, o golpismo, o desprezo pela realidade, a imposição vertical, o messianismo alucinado, a chantagem, são características historicamente associadas ao período do "Terror", durante a Revolução Francesa. Após os jacobinos terem fomentado o golpe de estado da "Montanha", em 1793. Que colocou, num primeiro momento, o triunvirato Robespierre/Danton/Marat à frente da Convenção e liquidou, política e fisicamente, o movimento girondino e as suas figuras de proa. Com destaque para o filósofo Condorcet e um extraordinário orador e jornalista chamado Pierre Vergniaud, guilhotinado em Outubro desse ano. Grosso modo, os jacobinos seriam os bolcheviques e os girondinos os mencheviques. Os primeiros acabaram por substituir o parlamentarismo constitucional dos segundos por uma espécie de ditadura centralista e manchada de sangue. A analogia que produzi tem a ver, naturalmente, com o animus e não com o modus.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Stalker

Quem casa, casa, quem não casa, não casa!

A notícia vem no "Público". Trata-se do debate ocorrido na AR sobre o projecto socialista que pretende regular as uniões de facto. Os argumentos de parte a parte resumem, de forma lapidar, os motivos do meu posicionamento político cada vez mais heterodoxo. Num tema onde os floreados retóricos pouco pesam, é quase em piloto automático que se toma posição. Pois bem, se há coisa que não suporto é esta fúria regulamentadora da esquerda, sempre a meter o bedelho em tudo, sobretudo na vida privada dos cidadãos. Leia-se a notícia com atenção. Repare-se na suprema pérola de poder ser passado um "papel" a atestar a união de facto, para determinados efeitos. Papel esse que as pessoas que optaram por viver em união de facto quiseram precisamente evitar. As hordas jacobinas querem pois criar uma espécie de "casamento de segunda", com papelada qb e o fisco a afiar o dente. Esquecendo o mais óbvio: quem não quer o casamento é porque não pretende os seus efeitos típicos. Mal de nós se o Estado vem "oferecê-los" pela porta das traseiras. É preciso fazer um boneco? A actual lei, ao atribuir determidos benefícios e regalias a nível fiscal, securitáririo e sucessório, já me parece bastante equilibrada. Mas as vanguardas fracturantes querem sangue! Ou seja, o bom senso manifestado pelos deputados que defenderam uma posição semelhante à que aqui proponho levou a que fossem imediatamente apodados de "retrógrados" e tal. Nesta, como noutras questões, quem defende afinal a liberdade na sua plenitude? É quem a quer "graduar", ou quem a entende como um bem irredutível? Confesso que cada vez tenho menos paciência para quem se esqueceu das autênticas reformas e prefere a fuga alucinada para a frente. Até ao precipício final.

Outro tasco, onde o gajo papou hoje o almoço

O quinto dos parágrafos

O Manuel Domingos, sempre bem vindo neste blogue, passou-me a batata quente para a mão: que dê a conhecer, urbi et orbi, a quinta frase da página 161 do livro com quem ando por estes dias enrolado. Pois bem, caro amigo, vou desiludir-te e, porventura, os leitores. Trata-se, nem mais nem menos, do que o "Prontuário de Formulários e Trâmites", volume I (Processo Civil Declarativo), de Joel Timóteo Pereira. E o pretendido parágrafo reza assim: "O processo em papel deixa de ter informação e documentos repetidos (por exemplo, cópias de notificações ou cópias do mesmo despacho enviado às diferentes partes) ou que não sejam relevantes para a decisão material da causa (por exemplo, conclusões) e, além disso, passa a estar mais bem organizado com marcadores das peças e documentos mais importantes". E pronto! Boa Páscoa e amendoinhas!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Mais teatro


Estreia no dia 18, mantendo-se em cena até 20, no Pequeno Auditório do TMG. A encenação é de José Neves, com interpretação do próprio e de Nuno Cardoso. A peça é baseada no texto homónimo de Javier Tomeo, "Amado Monstruo", traduzido por José Bento. Do autor, para quem não sabe licenciado em Direito e Criminologia, só conheço a peça "O Castelo da Carta Cifrada", com edição da Caminho, que li há uns anos. Do Zé Neves só posso dizer que estou ansioso por ver a sua primeira encenação no activo (pelo menos, de que tenha conhecimento), pondo de parte o seu trabalho final apresentado numa edição do projecto Inside Out, há três anos, iniciativa na qual também participei. Trata-se da sétima produção da estrutura de produção teatral do TMG, o Projéc~. Consultar aqui mais informação.

O cais

Aproveitando um dia de trabalho em Seia particularmente luminoso, fui hoje visitar a Casa de Sta. Isabel, em S. Romão. A convite de um amigo de longa data que é lá formador. Basicamente, trata-se de uma comunidade terapêutica com características únicas a nível nacional. Salvo erro, uma das primeiras instituições em Portugal a aplicar em pleno o método Waldorf e a antroposofia. A localização, o funcionamento exemplar, as construções equilibradas, quase todas em madeira, a área florestal convenientemente tratada, o dinamismo e a harmonia não deixam ninguém indiferente. E fazem deste local um feliz exemplo de humanismo, apto a recordar-nos a importância da verdadeira solidariedade e da vital empatia. Que aqui têm um porto de abrigo à altura.

terça-feira, 10 de março de 2009

Just fifty!

E pronto, ele há dias felizes, por muito que o Beckett não queira. Não sei se o trocadilho resultou, mas fica a intenção. Rejubilem, ó pacmans das crises, ó artesãos do tédio, ó pirotécnicos verbais! A Barbie acabou de chegar às 50 primaveras, no passado dia 9! E sem uma ruga, sequer! Yupi! Dizem as más línguas que, após a separação oficial do "eterno" companheiro, Ken, em 2004, se terá enrolado com um boneco action man mexicano, que fazia a manutenção da piscina da sua mansão de Malibú. Uma piada politicamente incorrecta, ora pois. Acaso chega ao conhecimento dos zelotas habituais, levam logo o assunto ao Parlamento. E será precisamente na sua mansão, em tamanho real, que decorrerão os festejos oficiais, patrocinados pela Mattel! Que serão replicados em inúmeros países. Durante esta semana, cada boneca custará nos EUA somente 3 dólares O mesmo preço a que foi colocada no mercado a primeira criação, em 1959. Ver aqui a notícia completa.

segunda-feira, 9 de março de 2009

E que tal resolver coisas sérias?

Vale mesmo a pena passar detalhadamente por este texto, assinado por LB, no "Nascer do Sol". Chama-se "O Casamento Homossexual" e constitui um dos melhores momentos de humor que tenho encontrado recentemente na blogosfera. Mais do que apropriado para o folclore criado em torno desta pérola do foguetório político, inventada pelos spin doctors do regime. Imaginemos então o dia a dia de um casal gay masculino, após o "sim" nupcial. Gostei particularmente das discussões intermináveis acerca do tampo da sanita levantado (quem foi, quem foi?) e da cena em que A está a apreciar o tronco de Cristiano Ronaldo na TV e B a cozinhar o tofu na cozinha, seguindo-se a mais que certa troca de impropérios à altura ("sua vaca", "sua puta", etc.). De ler e chorar e por mais. Vale o esforço ver também os comentários que se seguem. Onde o pretenso vanguardismo dos defensores deste absurdo chama logo "homófobos" e "retrógrados" a quem ousa sequer brincar com o tema. Como antes se atirava "façista" a quem saía uma vírgula da ortodoxia regulamentar revolucionária. Portanto, na bolsa das apostas, neste momento inclino-me para a rejeição da possibilidade do casamento homossexual. Até por uma razão simples, a juntar a outras já aqui badaladas: quem não tem sentido de humor não devia sequer pensar em casar.

domingo, 8 de março de 2009

É a economia, estúpido!

Em boa hora um amigo me enviou este cartoon do irresistível Calvin. Num momento particularmente genial de Bill Watterson. E mais palavras para quê?

(clicar para ampliar)

Tábua de marés (34)

“Passos Perdidos”
José Teixeira
Exposição patente na Galeria de Arte do TMG
De 17 de Janeiro a 8 de Março

Só para quem não sabe: José Teixeira licenciou-se em Escultura e realizou o Mestrado em Teorias da Arte na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Local onde lecciona, actualmente, a cadeira de Artes Plásticas. Como escultor expõe regularmente desde 1980, dedicando-se à medalhística a partir de 1995, disciplina onde tem vindo a ser consagrado internacionalmente. Já viveu e estudou na Guarda.
Até agora, da obra do autor só conhecia algumas esculturas, a sua intervenção no Café concerto do TMG, há dois anos, a colaboração gráfica para a revista “Boca de Incêndio” e parte das suas medalhas. Portanto, a minha expectativa em relação a esta mostra era elevada. Todavia, antes da apreciação do evento, é fundamental lançar uma advertência: esta não é uma avaliação especializada nem deverá ser entendida como tal. É uma apreciação crítica, sim, mas ancorada na sensibilidade e no despojamento possíveis de quem a expressa.
Ora, a meu ver, esta exposição enferma de um problema de concepção e de organização do espaço. O que significa isto? A mostra é constituída por quatro blocos distintos: desenhos, esculturas, instalação e uma tapeçaria instalada numa plataforma, reproduzindo um labirinto. Os primeiros estão expostos ao longo da sala. As segundas aparecem à entrada da sala principal, a maioria das quais à esquerda. Com excepção do conjunto “Passagem a” e Passagem z” encostado a cada um dos lados da parede do hall. A instalação está na sala do fundo. Por último, a tapeçaria encontra-se ao fundo da sala grande, encostada à direita. Percorrido o espaço, é notória a descontinuidade entre os vários módulos. Não se trata, claro está, do seu mérito intrínseco, mas do modo como se relacionam, do desequilíbrio criado entre as várias linguagens, da ocupação excessiva do espaço. Portanto, com este acervo, em vez de uma, justificavam-se duas intervenções: a) uma instalação composta por dois módulos distintos, em espaços contíguos, mas individualizados, num a tecelagem e no outro, mantendo-se a instalação “The road to nowhere”; b) uma outra, constituída pelas obras pictóricas e escultóricas. Porquê? Para responder, para além das razões expostas, incluiria mais duas: 1) por um lado, a tapeçaria, pelo seu magnetismo, pela sua completude e pela capacidade evidenciada em criar perspectivas ilusórias, ganharia muito em “respirar” plenamente, sem nada à volta que a perturbasse. De modo que cada um a pudesse percorrer ainda antes de a pisar. Ou ser enganado pelo seu desenho. Ou atraído pelo seu mistério, como se nele repousasse a “forma do seu destino”, nas palavras de Borges, citadas na folha de sala; 2) por outro lado, a densidade e a verticalidade das esculturas aconselharia a uma visibilidade plena, sem objectos estranhos e sem constrangimentos. Portanto, esta exposição parece-me ser um exemplo claro onde a evidente qualidade das obras apresentadas ficou prejudicada pela sua organização e disposição. Aparte este “pormenor”, esta exposição de José Teixeira constitui um grande acontecimento artístico na cidade.

Publicado no jornal "O Interior", em 5 de Março

Tábua de marés (33)


Honeyboy Hickling (http://www.honeyboyhickling.com/)
Com Bob Wilson, Tony Baylis e Tony Stuart

Pequeno Auditório do TMG, 27 de Fevereiro
Quando ouço R&B, seja na rádio ou numa sala de espectáculos, é como se tornasse a acreditar que a máquina do tempo realmente existe. E que, na maioria das vezes, esta se manifesta através da música. Neste caso concreto, é a simplicidade rítmica do género que continua a fascinar. Pelas mesmas razões porque se tornou a matriz do ‘rock’, e não só, a partir dos anos 60. Algo que, só por si, no mínimo, justifica uma comparência espaçada a um festim musical onde a linguagem do R&B é rainha. Sobretudo quando é invocada por intérpretes de eleição. Como é o caso precisamente de Simon ‘Honeyboy’ Hickling, o cantor e tocador de harmónica britânico que fechou a última edição do Festival “Inblues”. O qual, como se sabe, decorreu no último mês no Teatro Municipal da Guarda.
Quem é “Honeyboy”? Trata-se de uma figura destacada no género, com uma já longa carreira artística. A sua técnica única na execução da harmónica e o particular registo vocal granjearam-lhe uma sólida reputação internacional, como virtuoso desse instrumento. Mas Hickling é também compositor de fino recorte. Tem várias gravações no activo. Com a sua banda, lançou já cinco álbuns: “Straight from the Harp” (1994), “Blue it” (1998), “Blowin’ Through Town” (2001), “Bare Tracks”, com Gordon Smith (2002) e o recente “Blowin Thro Town”. A tournée que o músico e a sua banda fazem neste momento pela Europa – “Never Ending Tour” – de que este concerto faz parte, destina-se precisamente à apresentação de temas daquele trabalho, ao lado de composições anteriores e standards do repertório clássico. Foi também chamado a participar em diversas gravações como músico convidado: com Steve Marriott, a partir de 1988, em “Sing the Blues Live”, “Poll Tax Blues” e “Thirty Seconds to Midnight”. Esta colaboração foi o passo decisivo na sua carreira, que até aí se tinha limitado ao roteiro de bares das Midland. Os músicos acabaram por tocar juntos durante três anos, período esse que alguns críticos assinalam como o mais profícuo da sua carreira. Gravou ainda com Bo Diddley, em “I Don't Know Where I've Been” e com Anthony Thistlewaite (ex Waterboy), em “Aesop wrote a Fable”. Integrou igualmente uma memorável tournée, em 2001, intitulada “Nine Bellow Zero”. De um concerto onde participou, no London Astoria, em 2001, foi gravada em CD e DVD uma versão de “Big Train”, um tema de Steve Marriot. Actualmente, é reconhecido internacionalmente como um virtuoso, possuidor de um estilo inconfundível. Entretanto, tem participado nos principais festivais de Blues da Europa.
O espectáculo decorreu em crescendo, mas com a banda a agarrar o público desde a primeira nota. Depois, o profissionalismo dos executantes e a magia da harmónica de Hickling fizeram o resto. Lá para o fim, decidiu brindar a assistência com o hit: “Big Train”, de Marriot. Foi quanto bastou para empolgar os presentes e originar, em meu entender, o momento alto da noite.

Publicado no jornal "O Interior", em 5 de Março

quinta-feira, 5 de março de 2009

O gajo a representar durante o galo do entrudo

Cineclube

Boas notícias. Durante a semana passada fui designado como novo Presidente da Direcção do Cineclube da Guarda. Em simultâneo, foram nomeados mais dois elementos para aquele órgão. Preenchendo assim os lugares que vagaram até final do mandato. A ideia é continuar o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido e, se possível, alargar a divulgação de cinema a novos espaços e novos públicos. Sem esquecer, naturalmente, as finalidades específicas do cineclubismo.

terça-feira, 3 de março de 2009

A fenomenologia do espírito

Sobre o episódio da obra de Hegel, que o preclaro Passos Coelho atribui a Sartre, está aqui o fundamental. Mesmo assim, decidi arriscar e "atacar" os alfarrabistas, em busca da arca perdida. Afinal, não era Borges que gostava deste tipo de boutades nas suas obras, ou seja, comentar comentários de livros que nunca existiram? Será que Passos Coelho, o novo-velho-dos-clusters, quer seguir as passadas do autor das "Novas Inquirições"? Não me admiraria.

Ó pra ela!

Quem quer farelos?

Muito haveria que contar acerca do Julgamento e Morte do Galo do Entrudo, que encheu a cidade da Guarda no passado dia 23. Porém, melhor do que ninguém, o Agostinho da Silva, meu "colega" na defesa do galo durante o desfile, escrevinhou e teve a feliz ideia de enviar para vários destinatários o relato despreocupado e bem disposto que se segue. Aqui publicado com a sua benção, é claro. Pois bem, apertem os cintos.

IN MEMÓRIAM

Ontem, noite fria, deu-se a já anunciada morte do galo do entrudo. Ontem, procedeu-se ao seu julgamento, na praça pública. Conforme vinha sendo preparado, aconteceu. Morreu de morte queimada. O povo em algazarra, reuniu-se com um único intuito: comer a canja do galináceo. A organização serviu-se das associações para criar um ambiente algo hostil e quiçá influenciando/balanceando a populaça para o desfecho final. Uns poucos resistentes, que fariam a defesa, reparámos que esbracejavam desalmadamente no cimo de uma "padiola" de fardos de palha, na iludida tentativa de apaziguar a fome de canja das gentes que de todas as ruas apareciam com ânsias de assistir ao terrífico espectáculo. Houve mesmo quem no final de um momento de desepero, ali mesmo junto à Igreja da Misericórdia, fizesse o próprio: MISERICÓRDIA!! Não se sabe a certeza se gritou, se implorou aos confrades da mesma que já partiram. Certo é que para espanto geral, num raro momento de flagelo purgante dos males que imputavam sobre o acusado, ali mesmo se atirou da referida "padiola em que iam as testemunhas de acusação e defesa. O que certas personagens fazem pelas suas causas!? Quando já todos pensavam que a defesa ia ali baquear, eis que da morte sai sempre vida e com trejeitos algo estranhos, devolve o "epíteto" que a acusação lhe atirara e qual renascido, faz-se novamente à causa até à grande praça. Podemos aqui afirmar que a organização tentou por todas as artimanhas inebriar as gentes, imagine-se! distribuindo vinhaça gratuitamente, como se fosse necessário: todos sabemos que nestes dias o povo é uma borracheira colectiva mesmo sem vinho. Pese embora a noite, dava para perceber nos olhares o brilho da ansiedade por presenciar o horrendo ( as gentes querem sangue). Já na praça, deu-se início às "funções". Pelo aspecto dos "meliantes", cedo se percebeu o que estaríamos ali a fazer. Em surdina, ia a defesa passando a mensagem de que o galináceo estava inocente. O grande trunfo da defesa, era a vacagalo, prima do dito, vinda do Jarmelo. Lá do palanque da defesa, tentámos vislumbrar a falange de apoio, numa réstea de esperança que a mobilização consertada, viesse a resultar pela primeira vez no inédito: Julgamento e glorificação do Galo. Pelo que foi possível observar, a prima jarmelista vacagalo, foi mais uma vez estrategicamente relegada para segundos planos (mais uma vez, aqui foi visível qual a intenção da "festa", dado que a defesa consertara uma estratégia "limpa", sem qualquer atropelo ao segredo de justiça, mas tão só assente em verdades e inevitáveis momentos de visibilidade, como aliás ao que parece, sempre foram os métodos de trabalho do estratega, que "maquiavelizou" o plano). Quando, ao que foi possível apurar, esta falange de apoio, composta por mais de duas dezenas de convictos "fieis" (soberbamente caracterizados, com indeléveis marcas de personalidade na cabeça) se aproximavam, foram literalmente abafados e estrategicamente colocados na sombra numa analogia que passo a descrever: O meritíssimo Juiz, estava sentado num plano central, sobre o qual era natural que incidissem fortes projectores de luz (sabe-se da física, que quanto mais potente for o foco, mais acentuada torna a sua sombra. Ora este foi o lugar que "por acaso" tocou àquela que durante duas semanas se preparara para dar visibilidade à inocência de seu primo da Guarda). A luz que deveria pois trazer clarividência, serviu pois para colocar em desvantagem toda a estratégia visual da defesa. Quando do outro lado da praça, passaram a voz à acusação, logo se deu conta que se tratava de um ilustre ( a julgar pelos penachos que luzia nos ombros) jurista da capital. Logo que tomou a palavra, se começaram a ouvir em surdina, que receberia mais este por duas palavras, quealgum dia nos poderia chegar a todos de algum presunto FREEAIRPORT , mas retirando estas "tiradas" só permitidas em ajuntamentos nocturnos e dias como este de desvarios, cedo se percebeu que a acusação tinha a situação controlada, nomeadamente até pela, suposta, postura (mais uma vez acentuada pelas gentes anónimas) do Meritíssimo Juiz, com uma certa inclinação visual prá esquerda. Acareações e arrazoados (nada de confundir com arroz de cabidela), infâmias e campanhas negras, tudo espremido, estaria pronta a sentença, mas num gesto "Ponçopilateano", o meritíssimo Juiz, quis saber da "verdade" da populaça. Para surpresa, a reacção foi de VIVA OGALO, durante três vezes (fruto da surdina que a defesa conseguiu fazer passar, quer durante a semana, quer no próprio momento). Ao meritíssimo, não restava outra alternativa, senão... cumprir o guião: MORTE AO GALO! Concedeu-se, ainda assim, um último desejo, ao infortunado. Eis que para surpresa geral, o galináceo, pediu o impensável: que numa terra de gente ilustrada e punhos nas camisas, fosse-lhe permitido ouvir a "contra-argumentação", pela voz dessa grande representante da chamada "esquerda plebeia": ODETE SANTOS. Percebemos das suas palavras que afinal o veredicto popular estava certo: o Galo, não era afinal o causador, mas tão só o bode expiatório. Seguiu-se a expiação, pela imolação de um fogo purificador, dispensando ao acusado esse ritual da reconciliação. A populaça, que antes defendera o galo, corre agora, em atropelo em prol da canja que acabara de se fazer, a memória é curta e o oportunismo caracteriza-nos. Quando todos pensavam que iria haver caldeirada, nem sequer arroz de cabidela tivemos, quando todos gritaram vida ao galo, veio a canja. Mais uma vez, aqui enquanto familiar infortunado, a prima do Jarmelo, reafirma, que ele nunca recebeu luvas a não ser por causa da neve, recebeu sim uns cachecóis... mas que mal tem isso? O cachecol, até ajuda a manter a cabeça erguida, e pode dar-nos aquela postura de esquerda chique, nuns, e noutros, sim de grosseiros sujeitos e sujeitas.

Agostinho da Silva, no dia seguinte (em representação da Vacagalo)

segunda-feira, 2 de março de 2009

Animações

No "Lisboa SOS", um excelente e interventivo photoblog de há muito por aqui visitado, descobri um retrato fiel e comovente do Bairro Alto de finais dos anos 70. Chama-se "No tempo dos marceneiros". Muitos dos locais por lá referidos foram "poiso habitual" deste que vos escreve, uns anos mais tarde. Quando desembarcou no "Bairro" e dele ficou cliente habitual durante uns bons quinze anos. Tornando-se um verdadeiro taxicodependente. Outros locais só conheci indirectamente, por terem sido referências iconográficas, ou por se terem transformado noutra coisa. Seja como fôr, enquanto o "Bairro" retratado no post é o dos pioneiros, da forte presença dos jornais e da boémia tradicional, aquele que eu conheci já tinha o selo da "movida" inscrito no seu destino. Durante algum tempo coexistiram. Depois, o segundo absorveu o primeiro. Hoje, parece que há recolher obrigatório em todo o quarteirão às duas da manhã. Espero piamente ser poupado a esse número.

domingo, 1 de março de 2009

Viver não cansa


Vale a pena ouvir uma extraordinária entrevista radiofónica de Pedro Paixão, no "Radar", conduzida por Inês Menezes. A rubrica chama-se precisamente "Fala com ela". E mais não digo. Está aqui, em formato podcast.

O pé do gajo em repouso

A nova identidade virtual

Estou agora a descobrir as potencialidades do Twitter, o novo blockbuster das redes sociais. A plataforma funciona como um alimentador de feeds, gerados entre subscritores registados. A ferramenta popularizou-se tal forma que hoje se tornou o grande acontecimento de massas da web 2.0. No entanto, ainda tenho algumas dificuldades em adaptar-me a uma novilíngua instantânea, limitada a 140 caracteres, onde o narcisismo se torna mais visível do que na blogosfera. No fundo, o Twitter é a versão geek dos diários e cadernos de notas que muitos de nós já manteve durante periodos da sua vida. Só que, se antes o destino era a gaveta, agora são comunicados em tempo real e potencialmente globalizados. Uma situação próxima da "Zona de Autonomia Temporária", do visionário Hakim Bey. Ou seja, uma estrutura comunicacional aberta, alternativa e horizontal, suporte da Rede. Mas há que ter algum cuidado. Há quem confunda o Twitter com o Hi5 ou com um chat. Por isso mesmo, há que ter um certo cuidado nos links que se cruzam. No entanto, continuo a pensar que esta plataforma, se pode fomentar a troca e o enlace de afinidades, não substitui a comoção de uma paisagem ou de um gesto, do que é indizível por natureza.

Quem foi o engraçadinho?