terça-feira, 28 de fevereiro de 2006

Foi você que pediu folguedos?

O Carnaval está a tornar-se uma festividade cada vez mais pindérica. Basta ver essas batucadas pseudo cariocas por esse país fora, onde se consomem recursos avultados e os resultados são de uma previsibilidade bocejante. Talvez ainda sobrevivam algumas tradições genuínas em pontos isolados. Mas o panorama geral é mesmo de uma apagada e vil tristeza...

domingo, 26 de fevereiro de 2006

Imagens da Revolução Espanhola (5)




MSUSYDE

Da minha sombra deserta
os olhos avançam,
inventam a inquieta
brancura do poema.

da tarde interminável
em que algo me recorda
começa a busca das palavras,
do sim ou do não,
não há diferença:

é lá que te procuro.

das sílabas cintilando
como um exército de pássaros
digo
um campo de centeio
numa tarde de infância,
faísca ondulante
ou tranquila agitação,
não há diferença:

é lá que te procuro.


in "Labirintos"

sábado, 25 de fevereiro de 2006

A Memória das Coisas - 6

JOÃO ANTÃO – A Tosquia

Chicotes de fogo, de escavação, de fel. Chicote sobre os bens e os males. Sobre as ordens e os olhos. Sobre as mãos que seguram a tesoura. Mãos imaculadas, reparadoras, as grandes mãos de luz. O sol em brasa sobre as camisas suadas e as gargantas mudas. Os instrumentos ovalados ceifando a lã numa planície de outras searas. Rasurar. Cortar a lã muito antes que dela se erga um fio, interminável e puro. Frágil, porque o fumo ondulante o desenhou. Duro, porque o temperaram todos os metais. A pedra aparando o aço. As ovelhas não esperam que as contem. Quantas foram, senhor António? O sonho acordado sempre a recomeçar. O recolhimento no sonho acordado. Rasura. Rasura. Rasura.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2006

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2006

AYA

Breve
uma seta ou uma gota
é a raiz do sangue, deste gesto,
do presságio de uma onda
assaltando a falésia.

breve
o lugar,
esta mortalha de neve sobre as pedras
iluminando a forja solar dos cabelos:

nunca cantei outra seara
nem outra audácia
ao vento oblíquo.

In "Labirintos"

Yes, Minister?

O nosso MNE, Freitas do Amaral, revelou-se à altura dos sofistas: uma coisa pode e não pode significar o seu contrário. Bravo! Esclareça-se que, até às recentes e inusitadas declarações sobre a tempestade lançada pelos cartoons dinamarqueses, agora explicadas ao povo e contadas às criancinhas, dele só tinha lido a sebenta de Direito Administrativo, na FDL, em 4 volumes...
Só espero que os dinamarqueses tenham assobiado para o ar com as suas rapaziadas terceiro-mundistas. Se a trapalhada e a irresponsabilidade pagassem imposto, o Professor teria que se munir de uma réplica do super-computador que o fisco norte americano usa para calcular os proveitos do Bill Gates. Por isso, é de aplaudir este poste . E este

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

A Memória das Coisas -5

JARMELO – A Forja

Na oficina da minha imaginação faço aparecer o metal ou a pedra. Trabalho no instantâneo. Vi nascer as chagas no aço. Chagas nas estruturas. A luz acompanhando as contracções do metal. No carvão a louca língua de fogo, que viveu dentro da locomotiva ou do navio. Só as mãos, soltas, serenas, reuniam o engenho e o aço. Ateavam as fornalhas. Esculpiam as formas saídas da matéria, vencendo o seu vão orgulho. Só a cadência dos martelos extirpava todo o enigma. Ainda o calor rodeando as coisas e os objectos. O calor fazendo crescer neles uma vertigem independente. Uma ira primordial. O mundo começou aqui.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2006

A Memória das Coisas -4

CHÃOS – A Matança do porco

Já lá vão os convites aos vizinhos e familiares. Recolhido e seco o mato com que se vai chamuscar o cevado, chegou o grande dia. O matador, com ar solene que manterá e o distingue dos outros, prepara a sangria. Espera um pouco, ó Jaquim. É a voz da tia Alzira, embargada em emoção, tentando escapar da visão da morte de um personagem que ganhara a intimidade da casa. Um gesto vigoroso penetra a carne, a faca roda de forma a abrir as veias do animal. O sangue brota em golfadas, salpicando o vestido da Anita, e cai numa bacia onde se deitou sal e vinagre para não coalhar. Bate-me esse sangue, rapariga... É a recomendação do tio Rola à filha, que nem à mão de Deus Padre se voltava, gelada pelo derradeiro suspiro do bicho. Logo se lhe queima o pêlo com tojo, carqueja ou palha centeia, antes da toilette com pedaços de sangue cozido. Faz-se então o “cu ao porco”, para facilitar a extracção das tripas, lava-se a carcaça com vinho e um pano húmido e preparam-se os interiores, após o que é pendurada numa trave com a ajuda do chambaril, antes da desmancha. Morte sangrenta e brutal, sem dúvida, que permite quebrar um olhar demasiado humano que liga o homem ao animal: “Queres conhecer o teu corpo, abre o teu porco”...

domingo, 19 de fevereiro de 2006

Take a walk on the wild side... Everybody have to pay and pay ...
Lou Reed

Neva na minha cidade. Que felicidade andar a dançar na rua sem ninguém...

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Deixem-me caminhar
até que tropece e desapareça
na neve.

(...)

Separados pelas nuvens
dois patos selvagens
dizem-se adeus.

Matsuo Bashô, O gosto solitário do Orvalho

A Memória das Coisas -3

CAVADOUDE – Tremoços

Qual quê? Tremoços, pois então! Nem os fundos verdejantes do vale do Mondego, as suas vinhas, pomares, hortas, ou campos de milho e feijão. Nem os alqueives centeeiros. Nem o futuro temível que na sombra se prepara. Nada conseguiu acabar com os garimpeiros destes montes. Poetas originais, que em vez de oiro extraem com a mesma paciência infinita frutos amarelos, frutos gloriosos para entretermos o nosso ócio à beira de uma cerveja bem gelada.

A Memória das Coisas -2

BENESPERA – A Estação

Desci da carruagem. Em frente, uma sala branca com um banco de madeira ao longo de uma das paredes. À saída da estação não havia nenhuma cidade nem aldeia. O fumo da locomotiva já se perdia ao longe. Agora, havia simplesmente uma espécie de quadrado de terra batida defronte do campo e das terras em pousio. No meio desse quadrado um cavalo. Trazia uma sela de madeira. Montei nele, agarrando-me à crina abundante: Instalei-me num tempo que nunca há-de vir.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2006

A Memória das Coisas -1

Avelãs da Ribeira - O Livro

Num canto da igreja estava o livro. Dentro, uma linha fina. Uma linha onde ainda algo cintila. Não para explicar, não para expor. Uma linha como uma criança: nos seus desenhos não copia o homem; instala-o. O traço como uma bofetada que torna inúteis as explicações. Pintura para o acaso, para que dure a aventura do incerto, do inesperado. Livro, deixa-nos ser livres, sair de ti para povoar os arvoredos lá fora. As nossas palavras nutrem-se de tempestades, extraem alimento da terra e dos homens. Deixa-nos calcorrear os caminhos com os sapatos empoeirados e sem mitologias. De língua nenhuma, a escrita – sem pertença, sem filiação. Linhas, apenas linhas.

O Frio

Acordo sem saber o que me despertou - um som é improvável - talvez o silêncio quente da casa, talvez o frio procurando frinchas com os dedos aguçados do Inverno.Não encontro razão para ficar desperto nem motivos para voltar ao aconchego da cama, oscilando assim o meu sono à beira de uma revelação. Nos carvalhos lá fora levanta-se o vento - é a voz do desamparo, quantas vezes o dissemos - nenhum som é mais triste na noite do que o vento, trazendo as memórias das viagens sem regresso, quase todas as que fiz… Lá fora o vento sopra, pudesse eu dormir, eu sei eu sei que não foi nada não foi nada, podia ter sido, mas quando quase esqueço quase durmo quase nada (não foi nada não foi nada) tropeço no que afinal me salva, me resgata, me enternece, me derruba, me renasce. Não sei muito bem, mas talvez um desejo de eternidade, um misterioso desejo de sempre, de tudo, alguém a cantar do you mind if I love you forever, uma alegria silenciosa, palavras quase nenhumas, um voo crepuscular, o mundo inteiro a respirar em mim, a comunhão, um pássaro ubíquo:

Recordo-te a respirar ali
a casa no silêncio
o silêncio em ti
tu em mim
e depois não me lembro de mais nada.

FIHANKRA


todos os dias são iguais
e nenhum se parece:

assim
não te mandarei como outrora
um fruto para os teus lábios,
anunciando o breve rumor
dos meus passos
afundando-se na neve.


todos os dias são iguais,
como a pureza, como a morte,
tudo trazem tudo levam:

são partos de luz sem destino nenhum


in "Labirintos"

BIRIBI WO SORO


fugiram de mim
as paisagens
de tanto as olhar:

quer-nos a luz
para o chamamento
dos poços.


nos espelhos
agora soltos
meus dedos são marinheiros bêbedos

in "Labirintos"

NSIREWA


diz-me como sentes
selvagem a pele,
onde nasce a primavera
nos teus lábios.

às vezes
quando a cegueira é estar ainda aqui
cozo-me nos muros, subo às torres e
nu
planto-me búzio sem memória
na ternura da terra.


in "Labirintos"

Dia de mercado

Imagens da Revolução Espanhola (3)


DIVANIMEN


Eu sou todos aqueles que um dia
descobriram na poeira o oiro dos caminhos,
as velhas fábulas, os lobos antigos,
os anos-luz mais clandestinos.

eu sou todos os que buscam
os ventos e as marés
o estalar dos ciprestes
a erosão das fronteiras e
só aí se filtram só aí se perdem,
ícaros devoradores de pássaros.


onde me acolhe agora a sombra?
no azul e no fim?
no limiar entre duas manchas de púrpura
cansadas de luz?
qual a fronteira?

na primeira há como que
a imensidão de um deserto
e não sei se já o disse,
na partilha do fogo as cidades
são abismos de pedra e cansaço

o outro, há sempre o outro,
mesmo se mancha de púrpura,
é um prisioneiro subindo
pelos olhos acima, de repente
quadraturas secretas da evasão.

leva-me. agora. qual a fronteira?


in "Labirintos

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006

O Poder e a Glória

Eis um exemplo de como funciona a máquina do PS em caso de aperto (no caso, o aperto seria a putativa passagem do transfuga Alegre à 2ª volta das Presidenciais...)


Hannah Arendt
A Condição Humana
Tradução: Roberto Raposo
Ed.: Relógio d’Água


Hannah Arendt, conhecida pela sua obra sobre o totalitarismo – vd. a série de ensaios biográficos Homens em Tempos Sombrios – tem merecido justamente a atenção, graças ao número de obras traduzidas para português, pela sua produção especificamente filosófica. A culminar, aí está e recente edição da sua obra de referência, A Condição Humana.
Para lá do inegável prazer que a escrita de Arendt proporciona, pelo seu brilho e despojamento, haverá que tentar perceber quais são as teses realmente filosóficas, e não meramente históricas, que são propostas. Ora, à luz deste requisito, a obra de Arendt deixa-se resumir numa só palavra: pluralidade. E este conceito hasta para situar o programa de Arendt, explicitamente enunciado em The Life of the Mind (1973-75): lutar nas fileiras daqueles que tentam desmantelar a metafisica. Esta desconstrução passa, na faceta política da metafísica, por arremeter contra o modelo da acção como aplicação de saber, com a consequente anulação da acção na sua especificidade, anulação essa que encontra a sua primeira e decisiva figura no filósofo—rei de Platão.
Tudo o que Arendt diz sobre labor e trabalho, para usar os termos da tradução portuguesa, constitui apenas degraus numa escada cujo topo é a acção. A pluralidade é o conceito que permite salvar a acção enquanto tal, pois não desvaloriza a existência dos homens como experiência aberta. Ora, Arendt julga encontrar essa pluralidade em acção numa polis grega, supostamente originaria e não infectada pela metafísica. Esse espaço em que todos são iguais e lutam discursivamente por uma proeminência que requer a liberdade e a igualdade dos outros para se afirmar e ser reconhecida constitui a esfera pública digna do nome.
Mas, se Arendt evita a vizinhança de Nietzsche para quem o problema estava resolvido — não há civilização sem escravos —, também não subscreve as palavras de W. Benjamin - todo o documento de cultura é um documento de barbárie. De tal modo que fica sem qual quer ponto de apoio para avaliar as conquistas da modernidade, e, pressentindo a falta de critério, não enfrenta o problema da realização da sua concepção de acção nas condições da sociedade moderna. Pelo contrário, subscreve a tese de um desenvolvimento negativo no que respeita à acção e, simultaneamente, reconhece o progresso das condições de vida e políticas das massas. Problema que reaparece na noção, cara a Arendt, do historiador como espectador dos feitos humanos, doador de sentido à acção e perpetuador da glória do poder.
Esse dever abstracto da memória não consegue salvar nenhum sentido, mas também não se entrega, mais uma vez, à esteticização que Nietzsche apregoava como sentido do sem sentido, substituindo o historiador pelo poeta que tem de cantar depois das conquistas. A Condição Humana fica assim como mais um importante relatório sismográfico do terramoto que Nietzsche trouxe consigo.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2006

Cartoons das arábias

Eis alguns exemplos de como a liberdade de expressão é utilizada no Islão:








Sobre os críticos

Contrariamente ao que geralmente se pensa, a crítica não é uma instância mediadora entre o escritor e os leitores. Esse espaço pertence aos editores, cuja função consiste em propor ao público e ao mercado aquelas leituras que, segundo o seu critério, poderão satisfazer as necessidades destes. O crítico analisa e qualifica essas propostas, situando-se o seu trabalho entre a edição e os leitores. Mas a prática é enganosa e tende a fazer-nos pensar que os críticos falam de escritores, quando na realidade se referem às propostas editoriais.
Seria bom que os escritores entendessem que a crítica não tem como objecto as suas obras, enquanto pertencentes à sua privacidade, mas só enquanto passam pela decisão editorial de torná-las públicas. E seria especialmente conveniente que os críticos entendessem que o seu trabalho começa e acaba na instância do público.
Poderiam classificar-se, desde um ponto de vista funcional, três categorias de críticos: os provadores, os guardiães e os tribunos.
Os provadores seriam aqueles que assentam e legitimam os seus juízos no seu próprio gosto ou paladar literário. Gosto disto, não gosto daquilo: os seus argumentos logicamente remetem-nos para as suas sensações e impressões. Para este tipo de críticos, a literatura reduz-se a um simples intercâmbio de privacidades e a sua função reduz-se a estimular ou travar o consumo.
O gosto de estes críticos coincide quase sempre com o gosto dominante. Abundam e sobrevivem bem no mercado, sobretudo se conseguem associar um tom radical à expressão do seu gosto, mas que, ao mesmo tempo, não questione o gosto hegemónico. Podem ser encontrados em todos os tipos de media.
Os guardiães são ao mais raros. A fonte da legitimidade de que se reclamam é a Literatura, um ente quase metafísico, que tendem a identificar com a história da literatura, com o cânone mais ou menos explícito, ou com uma inapreensível qualidade do discurso, que brota para além dos factos e situações sociais em que tem lugar a sua produção e recepção. Numa frase, percebem-se os depositários dessa qualidade, que em seu nome medem, calibram e homologam: guardiães da pureza, o que requer conhecimento da matéria, da história da literatura e uma certa bagagem técnica, para um desempenho à altura da tarefa. A reunião destas qualidades faz que o seu número seja escasso e, ainda que isso os torne desejáveis, os seus conflitos com os media (o seu sentido de exigência parece chocar com a conveniência informativa) podem estar a convertê-los numa espécie em vias de extinção. São facilmente reconhecíveis pelo seu recurso a uma linguagem objectiva, rotunda e categórica, na qual aparecem, como certificados de qualidade, determinadas citações e referências de autores, obras e críticos das mais variadas origens.
A categoria dos tribunos desapareceu do nosso espaço literário. O tribuno sente-se legitimado e responsável ante a polis e, por isso, a sua crítica é uma crítica política. Não quer isto dizer que o tribuno transfira o político para a literatura, mas sim que enquadra os textos literários nesse contexto geral que é a vida em comum. apreciando e julgando a saúde literária das obras que se lhe deparam a partir dessa perspectiva.
Em sociedades complexas como as nossas, onde o bem comum é um conceito disputado, o tribuno opta por um ou outro entendimento e, a partir dessa eleição opera, critica. O perigo reside em menosprezar o que a literatura representa como património de interesse comum, enquanto modo de conhecimento específico. O tribuno precisa que no dinamismo social coexistam, com iguais possibilidades, opções distintas sobre o que possa ser o bem comum. Quando certas instâncias sequestram de modo hegemónico uma determinada ideia sobre o bem comum, ou monopolizam os meios que concorrem para a sua construção, o tribuno não tem espaço, cessam as razões da sua existência. E isso é exactamente o que ocorre nos dias de hoje, em que reina, não tanto o pensamento único, mas sim um pensamento hegemónico, que nega qualquer ideia de bem comum que ultrapasse a mera soma dos bens individuais e em que os meios de criação e expressão deste pensamento quase monopolizam a voz da polis, se é que algo restou dela.
Na prática, estas três categorias nem sempre aparecem com perfis nítidos. Bocados de cada um deles cruzam e descruzam, não faltando exemplos do provador que cita Steiner por dá cá esta palha, nem do guardião que se deixa levar pela exaltação lírica, nem de falsos tribunos que confundem o político com as boas intenções.

Diário de uma desempregada em Portugal

07h00: levanto-me sempre com a esperança de ser hoje o dia D.
Resido em meio rural por opção e porque é mais barato viver no campo, além de ser mais fácil solucionar o problema da habitação. Sou divorciada, mãe de duas crianças em idade escolar, desempregada de longa duração. Acendo o lume, tomo o café enquanto preparo o pequeno-almoço das crianças Ajudo a mais pequena a preparar-se, enquanto vou recomendando juízo ao mais velho, que já vai saindo de sacola ao ombro. Enquanto a primeira come, vou adiantando as tarefas domésticas, para deixar tudo arrumado antes de sair.
8h45: levo a filha até ao cruzamento onde a carrinha da Câmara espera as crianças que vão para a Escola. Pego no meu carrito velho e vou até à sede de Concelho onde, a partir das 9h, posso usar o espaço das novas tecnologias e assim navegar pelos sites de emprego. Regra geral, das 9h ás 13h30 vejo se tenho respostas no meu e-mail, procuro trabalho nos sites de emprego, incluindo os das empresas de recrutamento e o site do IEFP. Respondo a anúncios e envio o C.V. on-line. Nos sites estou habituada a encontrar muitas propostas para call center, empregos ditos part-time e pagos como tal mas com horários de 6h por dia, anúncios onde me pedem dinheiro, que varia entre 25 a 60 Euros, para aceder à informação sobre o posto de trabalho anunciado e muitas propostas para vendas por catálogo ou network. Quando a pesquisa resulta proveitosa, ao cabo de 4 horas terei 3 ou 4 chamadas para fazer e terei enviado 5 ou 6 e-mails. 13h30: compro um jornal diário, regresso a casa, almoço e adianto o jantar. 14h00: aproveito o facto de as crianças ainda não terem chegado da Escola para pesquisar os anúncios do jornal, ligar para os números que anotei, tanto da net como do jornal. Acontece-me várias vezes ligar para anúncios que mais não são que propostas veladas de prostituição, tentativas de extorsão de dinheiro por parte de particulares ou mesmo "empresas" criadas para o efeito, tipo “dobragem de envelopes”, propostas para trabalhar a 2 euros por hora e a recibo verde.... enfim, a lista é enorme e depois da triagem resta pouco trabalho sério e honesto.
16h00 Escrevo mais algumas cartas de resposta ou simplesmente de candidatura espontânea e em seguida vou aos Correios expedir a correspondência do dia (muitas vezes registado e com aviso de recepção) e comprar envelopes de vários formatos e cores. 16h40: quando regresso dos CTT espero pela Carrinha que há-de trazer de volta da Escola a mais pequena, sorridente e ávida de me contar tantas histórias. É tempo de outra dedicação, tempo de preparar merendas e ajudar nos trabalhos de casa. Aproveito este tempo para por em dia as minhas contas: quanto gastei de gasolina, nos correios, nos telefones, no(s) jornal(is) e organizo o meu "dossier " de quanto gasto para procurar um trabalho, tentando equilibrar o magro subsídio de desemprego. 18h: 2 vezes por semana os meus filhos e alguns vizinhos praticam desporto, levando-os todos ao pavilhão de desportos, de onde voltamos cerca das 20h30. Nesses dias, a rotina doméstica de preparar refeições, tratamentos de roupas e ajudas com trabalhos escolares ocupa-me até me deitar. Nos dias em que não é preciso acompanhar as crianças ao Pavilhão aproveito as horas depois do jantar para procurar Cursos de Formação. Nos jornais encontro anúncios de cursos a preços exorbitantes que prometem colocação no final e conseguem sempre enganar algum/a desesperado/a. Os financiados são mais dirigidos para Activos do que para Desempregados. Algumas vezes solicitam-me para prestar provas ou entrevistas. Nem sempre o local me permite sair e regressar no mesmo dia. Nessas alturas tenho que contar com a colaboração de um familiar que me cuida dos filhos na minha ausência. Gasto muito dinheiro em transportes: comboio e autocarro.
Assinei um contrato com um Centro de Emprego. Sinto que cumpro a minha parte. Por ora, ainda só fui chamada para me “controlarem" e rasgarem no meu nariz a carta que me escreveram...nesse dia fiz 70km para ser controlada!!! É que tenho de me deslocar à sede distrital do Centro de Emprego por ser o mais próximo da minha residência.

7h00: mais um dia D…

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2006

Imagens da Revolução Espanhola (2)


NSA TSA


Nesse tempo em que havia mar, mares,
braços decepados tacteando filigranas
e cipós de espuma nas proas

do ventre da poeira
erguiam-se carnavais inesperados
e acrobatas saídos de um sonho,
enquanto a língua se espreguiçava
nos lírios.

sou desertor e nasci
no mês de maio,
quando o poema entra na paisagem
e as paisagens são proémios
para a deserção.


nesse tempo
éramos náufragos:

nem o silêncio das espadas
lembraria assima vertigem da terra.


in "Labirintos"

domingo, 5 de fevereiro de 2006

sábado, 4 de fevereiro de 2006

A Zona de Autonomia Temporária

Temporary Autonomous Zone é o título de uma obra saída nos Estados Unidos em 1991, assinada por Hakim Bey. (existe edição portuguesa, sob o título “Zona Autónoma Provisória”, Discórdia edições, Braga, 1999). Um nome a fixar, este guru nómada da contracultura ligada à utilização as novas tecnologias.
A sigla TAZ ilustra, por sua vez, a nova orientação do pensamento libertário americano dos últimos 50 anos. Bey rejeita as utopias dos enclaves autárquicos, sustentando “comunidades intencionais”, à maneira de Fourrier e Owen, como desconfia de um tipo de determinismo baseado na ruptura histórica – Bakounine e Babeuf. Posiciona-se, ao invés, naquilo a que chama de anarquismo ontológico - um conceito tirado a ferros do aristocratismo radical de Nietzsche – a base para uma proliferação descentralizada de experiências sociais. A economia de informação que sustenta esta diversidade é a Rede; os enclaves são Ilhas na Rede. Como? Através do uso de uma estrutura aberta, alternativa e horizontal, de troca de informações e de afectos, graças ao amplexo de mini-sociedades nómadas de utilizadores invisíveis: a rede, isto é a web. É aqui que ele julga possível aquilo a que chamou as utopias piratas, em homenagem às redes de informação criadas pelos vagabundos do mar e corsários dos séculos XVII XVIII. Mas explica Bey que Rede, Teia e Contra-Rede são partes do mesmo complexo, do mesmo padrão — as suas fronteiras intersectam-se muitas vezes. Estas palavras não definem áreas, sugerem tendências.
Mas a Teia não é um fim em si, é uma arma: a tecnologia moderna transforma este género de autonomia num sonho romântico. No futuro, esta mesma tecnologia, liberta de todo o controlo político, poderia tornar possível todo um mundo de zonas autónomas. Por enquanto este conceito não é mais que ficção científica, especulação pura. Estaremos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca passear numa terra governada apenas pela liberdade, nem que seja por momentos? Estaremos limitados apenas a nostalgias do passado ou do futuro?
Mas é precisamente a deriva mercantilista da web, aliada ao bem-pensante triunfalismo tecnológico que fazem desta autonomia, uma realidade puramente transitória, mas não a existência em rede dos “enclaves livres”: o aparelho de Controlo, o “Estado”, deve continuar a deliquescer e a petrificar-se em simultâneo, deve continuar na presente rota, em que uma rigidez histérica serve só para mascarar uma vacuidade, um abismo de poder. À medida que o poder “desaparece”, a nossa vontade de poder deve ser o desaparecimento.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2006

Receita para um poema

Uma coisa que se possa tocar, pegar, largar, uma coisa que pese nas mãos e que se possa olhar pelo lado de trás, que desloque o ar e desloque a água, que se a deixarmos cair, quem se parte é o nosso pé e não a forma, uma coisa fora do tempo, ainda presa a ele, suportada por ele no espaço, como se está desde que já houve um não eu para tornar-se eu, e haverá, até que haja um fim para o não eu, por meio do qual, e só dele, se podia alguma vez ter sido, suportado por isso, mas mais nada, apenas sobre ele, não condutor, como o pardal isolado, pelos seus duros pés não condutores, do fio de alta tensão, a corrente de tempo que corre através do recordar, que existe só para ele, uma coisa acompanhada pelo instante da virgindade, uma coisa onde se está absolutamente só, não como antes, não como depois, pois seja, o precipício, o precipício em que tu ardes, inventas o terreno para plantar jardins de fogo, jardins de sangue, um cintilar que divide e rasga, a luz que tudo devora, mas também o novelo que começa onde morre, a coisa, um belo pedaço de pedra ou de bronze, limpo e duro, a memória fora da carne, a memória que nada sabe de si própria, a pedra cortada, por dura que seja, pelo tempo que leve a fazer dela um rosto que sofre tão perto das pedras sendo já ele próprio uma pedra, mas se alguém lhe toca o mundo incendeia-se, e com ela possas abrir o teu corpo em dois para ler as letras do teu destino na noite das palavras degoladas, essa coisa que se possa tocar, segurar, olhar por detrás, inventar com o olhar, sentir a solidez, de modo que, ao deixar-se cair, não será nunca o silencioso fruto apodrecido que irá tombar, nem a coisa se quebra, mas o pé em cima de que cai, talvez o coração atónito, pois que o valor de um poema é a soma do que é preciso pagar por ele.

in "Labirintos"

O sagrado e o profano





Enquanto fenómeno de luta política, não surpreende a onda de choque levantada pela publicação de doze cartoons no jornal dinamarquês Jyllands­-Posten, em Setembro do ano passado. E que depois foram reproduzidos em vários jornais europeus, onde as hierofanias islâmicas são objecto da sátira. Sobre o assunto já quase tudo se disse. De um lado, aqueles que pressentiram que estava em causa a liberdade de expressão e o Estado secular, activos fundamentais do património histórico e cultural europeu, mas também categorias universais de pendor kantiano. Do outro, numa aliança aparentemente contra natura, certa esquerda parada no tempo e a direita ultramontana alinharam na habitual cartilha politicamente correcta do complexo colonial, do relativismo e da defesa do indefensável. Mas a quem aproveita a fúria destrutiva das hordas vociferantes do crescente, tornadas o lumpen proletariado ao serviço de Deus, senão aos teocratas que as lideram e manipulam a seu bel-prazer? Só que, o impacto da violência desencadeada nas “ruas” do Islão não aproveitará também aos intolerantes de “cá”? É sintomático que a indignação dos manifestantes tenha recolhido, desde a primeira hora, o apoio de Le Pen… Adivinha-se também facilmente a posição de certas seitas fundamentalistas americanas, que já conseguiram erradicar o ensino da teoria da evolução nas escolas de certos Estados… Essa indignação acabará por ter, mais cedo ou mais tarde, a devida cotação nos mercados financeiros ligados ao petróleo e tudo regressará à “normalidade”, convenientemente policiada pelas oligarquias no poder, acolitadas pelos líderes religiosos e agitadores fundamentalistas do costume. Salvaguardados os lucros e os privilégios, business as usual. E é claro que neste jogo não há inocentes. De um lado e do outro.
No entanto, pouco se tem dito sobre o facto em si: o significado da decisão editorial de publicar cartoons que caricaturam o profeta Maomé e não só. Embora, repito, a reacção inusitada perante a sua publicação seja fundamentalmente política, porque convenientemente orquestrada por quem só a intimidação do Ocidente a qualquer custo interessa. É pois de salientar que, enquanto objecto artístico, as caricaturas têm grande qualidade, são mordazes quanto baste. Sobretudo a da autoria de Plantu, publicada no “Le Monde” onde um lápis em forma de minarete desenrola uma sucessão de linhas onde se lê “je ne dois pas dessiner Mahomet” e que acabam por formar o rosto do profeta, assinalando o interdito sob a vigilância inquisitorial de um muhezzin no alto do lápis.
Ora, se o riso é próprio do Homem – embora se diga ser um atributo de Deus – o humor, pelos vistos, ainda não adquiriu essa qualidade universal e partilhada por todas as culturas. Nem podia. O sagrado impõe as suas regras precisamente porque não pode ser questionado, a não ser pela invocação de outro sagrado. A negação do sagrado é pois menos destrutiva do que a sua lenta dissolução através da sátira e dos costumes, o “humano demasiado humano”, uma derrisão que faz cair pela base os poderes organizados em seu nome. “Se Deus não existe, tudo é permitido”, uma hipótese dilacerante que acompanha Dostoievski ao longo da sua obra, exemplarmente ilustrada no último capítulo de “Os Possessos”, censurado na versão original, onde Dmitri conta as suas infâmias a um Pope misantropo, que em desespero lhe atira que “pior do que não ter Deus é não ter Deus nenhum”.
Por outro lado, não é só a figuração que é interdita na arte islâmica. A noção de representação é estranha ao Islão, por imperativos religiosos, sendo impensável a existência do teatro, em qualquer uma das suas categorias. Mesmo a dança vertiginosa dos Sufis é um ritual extático de ordem mística. Significativamente, foi em grande medida a partir do teatro grego que nasceu o Ocidente enquanto entidade cultural. Essa capacidade de nos rirmos de nós próprios enquanto seres que a tragédia destrói e redime. O humor é pois o agente dissolvente por natureza, mas a forma como ele é valorizado é também um sintoma de saúde democrática. É crucial perceber que a liberdade de expressão, com os outros direitos fundamentais como seu limite natural, é nas suas margens que tem que ser defendida e quiçá avaliada. Goste-se ou não do que ela veicula. Esta história está para durar…

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2006

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Maa Ngala



Delft e a serenidade tão longe
e nós aqui, epitáfios
para mil dias e uma noite

os minutos pedem minutos
e os olhos pedem desculpa
por se morrer tão devagar

as naus ainda partem
para o desconhecido
como quem colhe pétalas
invisíveis num bosque sagrado.

não, não há-de ser nada:

os poetas continuarão a escalar os leitos
onde correm os rios mais transparentes
mesmo agora que as luzes se apagam
e tudo ficou tão claro.

que ninguém inveje quem assim
jaz no caminho da penumbra.

in "Labirintos"



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