sexta-feira, 30 de junho de 2006

A Festa

O post anterior não é inocente. Revela a excelência de um evento cultural com características marcadamente de Verão, organizado com o propósito de alcançar um público vasto, mas sem quaisquer concessões ao mainstream, conciliando as mais-valias locais com uma programação exigente.
Ora, isto para antecipar que este ano vai haver Festas da Cidade na Guarda. Depois de um jejum de 5 anos, pelas razões conhecidas. Da programação ressalta o óbvio: uma amálgama de pimba e folclore, caucinada por dois espectáculos "âncora": os GNR e Luís Represas. Não é difícil depreender, pela sua coerência, que na programação original não constavam estes nomes, "metidos" posteriormente para compor o ramalhete. Isto após as reacções públicas desancadeadas pelo anúncio da realização das Festas e respectiva justificação, por parte da Câmara Municipal.
Não discordo que haja "Festas na Cidade". Este tipo de acontecimentos faz parte da agenda da maioria das localidades com alguma dimensão deste país. Já se me afigura errado que a oferta que integra a programação não seja pautada pela diferenciação, contrariando a costumeira uniformização. Por outro lado, se as festas são populares, então haveria que nelas mobilizar as colectividades e os cidadãos que espontaneamente se organizassem, à semelhança do que aconteçe noutras cidades. E o local escolhido - Parque Municipal, com alguns espectáculos na Praça Velha - não me parece o mais indicado, sem que se tenha tirado partido da requalificação do centro Histórico, ao abrigo do programa Polis. Quanto à divulgação, revelou-se de um amadorismo desconcertante: o cartaz é graficamente pobre e quase ilegível e não há qualquer informação disponível online, até agora.

quinta-feira, 29 de junho de 2006

Entre 2 e 31 de Julho irá decorrer, em diversas localidades do Alentejo, mais uma edição de ESCRITA NA PAISAGEM, Festival de Performance e Artes da Terra. Os organizadores pretendem "cruzar as artes performativas e da terra com a paisagem alentejana. Nesta terceira edição, o tema do Festival formula-se a partir de 3 palavras-chave: comer-cheirar-agricultura. A especificidade do lugar procura-se, aqui, na especificidade do comer / cheirar de um território que tem ainda uma forte matriz agrícola."

Toda a informação aqui

quarta-feira, 28 de junho de 2006

O regresso dos Flinstones

Fernando Ruas desafiou a população de Viseu a «correr à pedrada» os funcionários do ministério do ambiente que fiscalizam e multam obras feitas pelas juntas de freguesia. Afirmações feitas durante uma reunião da Assembleia Municipal de Viseu.
Mais um discípulo de Alberto João Jardim? Sim, mas ainda em fase de tirocínio. Até porque o Mestre já revelou a sua paternal compreensão.
Só que o caso, para além do evidente embaraço causado na Direcção do PSD, tem contornos mais subtis: é que, desta forma, revelou-se publicamente a predilecção do autarca pelos métodos dos soixant-huitard, num tempo em que as palavras de ordem eram outras
- sous les paveaux, la plage... Ora, ora, senhor presidente da A.N.M.P., só apetece dizer,"não havia nexexidade!"... Ver notícia aqui

terça-feira, 27 de junho de 2006

Imagens de Portugal romântico - 3

Lisboa

Leiria

Ponte de Lima

segunda-feira, 26 de junho de 2006

A Mão da Nuvem

3.
Através das frestas na porta e nas janelas do meu quarto
vem o ritmo dos passos, nem os do dia, nem os da noite.
São os passos de uma mulher eternamente vagabunda
que nunca envelhece, não repousa, não dorme.
O seu nome é o vento.
7.
Ouço em viagem vozes estranhas.
Só as pode guardar um museu destinado
à infância da palavra.
8.
A viagem ensinou-me
a ler o tempo
traçado pela mão da nuvem.
11
Amadurece-me, ó sol.
Colhe-me, ó noite.
15
O mundo não deixa de ser uma criança.
Levanta-te e deita-o no seu leito,
ó amanhã.

Adonis (Ali Ahmad Saïd Esber)
Nasceu na Síria em 1930. Licenciado em Filosofia. Viveu na Líbia, em Genebra e actualmente em Paris, onde é professor universitário. Participou no Encontro Internacional de Poetas "No Cais da Poesia", que decorreu em Faro entre 25 e 27 de Maio de 2006.

domingo, 25 de junho de 2006

Sonho de outra noite de Verão

Van Gogh, Terraço do Café à Noite, 1888

Crimes exemplares - 4

Que saudades eu já tinha
da minha alegre casinha
tão modesta quanto eu...

Quando finalmente acordou, só viu escuro à sua volta. Bateu, bateu, nada. Mas era estranho: os ruídos quase imperceptíveis que vinham do outro lado eram-lhe familiares. Conseguiu distinguir o relógio de cuco, a campainha da porta, o telefone a tocar, a 4ª sinfonia de Mahler que o Zé Tó tanto gostava, enquanto na mesa de trabalho dava os retoque finais no seu último projecto. Nos últimos tempos, falava entusiasticamente sobre o que ele chamava "arquitectura viva". Bateu com mais força. Começou a gritar por socorro, num pânico descontrolado. Mas as espessas paredes de betão não cediam nem um milímetro. Ao fim de algumas horas, esgotada, deixou-se cair na estreita faixa de solo, que, reparou então, não media mais de meio metro. Um pavor indizível começou a tomar conta dela, toldando-lhe os pensamentos. Ao mesmo tempo, um torpor desconhecido invadia-lhe o corpo, à medida que o oxigénio ia escasseando. Imagens soltas sucediam-se no seu cérebro, a uma velocidade vertiginosa. Até que uma espécie de véu de luz se abateu sobre ela, lentamente...

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sexta-feira, 23 de junho de 2006

Diário de um Tolo - 3

Que possamos recolher alimento suficiente para rir o riso de deus. Como quem invoca algo numa oração interminável, em que já não interessam os factos, mas como a nossa memória fica por eles impregnada. Afinal, esquecer é só o princípio de uma corrida, com um louco a perseguir-me de navalha em punho. Talvez o destino insensato do viajante no deserto, onde os meus dons vão beber como um animal com sede. Saberei todavia reconhecê-los? Oxalá pudesse ouvir alguns passos, do outro lado. E o dia se movesse, lentamente, ressoando pelas paredes, pelos pátios, pelas brumas onde um novo tempo se espalha. Desse lugar poderia observar toda a minha vida erguendo-se como um rio de sangue:
numa tarde em que o céu se estendia sobre a lassidão dos meus pensamentos, daí emergindo uma espécie de irreversível fantasia, ora doce, ora ameaçadora, um reflexo possível daquele azul pálido, com pequenas nuvens alvas voando à superfície, através das copas desfolhadas das árvores em redor... Como seria estranha essa indizível estranheza! As palavras combinariam com um arruinado templo de Delfos, povoado de deuses solícitos ou punitivos, talvez um calafrio me percorresse até à ponta dos dedos, os pensamentos erguendo-se desordenadamente, como bolhas de água fervendo: existia, portanto, algo com que sempre teria de contar, algo de que me precaver, algo que subitamente pode saltar fora dos calados espelhos dos meus pensamentos...
Mas será possível que, naquela tarde de luz, no meio do que antes parecia nítido, se abrisse uma porta levando a outro mundo, imprevisível, desnudado, devastador? Será possível que entre uma transparente e firme casa de vidro e ferro e uma outra, onde se deambula por confusos corredores repletos de vozes, não exista apenas uma passagem, mas que as suas fronteiras se toquem, secretas, próximas, podendo ser ultrapassadas a qualquer momento? E, ainda assim, as palavras, essas palavras, em sobressalto, estendidas eternamente por milhares de sinuosidades, como uma escada sem fim e sem objectivo… Sei agora que é do coração estéril que extraio toda a força, toda a confiança que aprende a não desesperar de nada.

Foi assim: vejo ao longe um barco arribando contra a corrente, as velas colhidas nas cruzetas, navegando em silêncio. Nunca saberei para onde. Nem ele saberá que foi um mensageiro do tempo que não há-de vir.


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quarta-feira, 21 de junho de 2006

Sonho da primeira noite de Verão

... O bosque cobriu-se de um véu com emblemas coloridos tracejados no espaço, coloridos num chão raso, sim é isso, chão raso, vejo eu, depois penso na distância próximo longe, oriente atrás, ela confiando a sua mão gentil, os olhos de longas pestanas, agora, onde azul demónio estou eu a levá-la para lá do véu, para uma dança louca nas cordas do alaúde, sim, movemo-nos num crepúsculo eterno, figuras frágeis e diáfanas cujos pés vibram sem parecer tocar a erva salpicada do orvalho que pisam, todas as notas de uma escala invisível, o momento, o véu alado, afinal a vida não é comandada nem pela vontade, nem pela intenção, a vida é uma questão de nervos, de fibras e de células lentamente maceradas, é aí, é aí que a verdade se esconde, que a paixão vive os seus sonhos, mas ela, ela, o quê, está no espelho de água à procura de um alfabeto, um olhar de gato selvagem, um olhar de soslaio ao meu chapéu de hamlet, e se eu ficasse subitamente nu, aqui onde estou, o teu corpo é um acepipe, dir-lhe-ia, linguagem nem uma gota pior do que a deles, palavras de vadio, duras pepitas entrechocando-se nos meus bolsos, é esta a regra, disse vem, uma carpete vermelha estendida... o cabelo caía-lhe pela cara queimada pelo vento, ah, o bosque naquela noite, as árvores puxadas pela lua, miríades de sombras, dentro dela sangue, um mar de vinho escuro, olhai a serva da lua no sono, o signo líquido marca-lhe a hora, ordena-lhe que se levante, ele vem, pálido vampiro, seus olhos tempestades, as asas de morcego a ensanguentar o mar, boca para o beijo da boca dela os seus lábios tocarem ao de leve e abocanharem lábios, o delírio, boca para o ventre dela, omniventre túmulo, a sua boca moldou o hálito expelido sem palavras, uuéééaaaaah, rugir de planetas incandescentes, rugindo longelongelongelonge...

terça-feira, 20 de junho de 2006

Instantâneos - 1

13 de maio de 1988. Chet Baker caiu do 4º andar da janela do seu quarto, num hotel em Amsterdão. Nunca se soube, nem provavelmente nunca se saberá porquê. O certo é que levava consigo o trompete que fora buscar ao quarto. Na altura, houve quem assinalasse o ângulo do seu braço em relação ao intrumento caído no chão. Ou quem imaginasse ver na singular posição dos seus dedos uma espécie de persistência em transportar a música para a eternidade. Eu simplesmente acredito que o conseguiu.

Shatov versus Kirilov

No seu livro "Os Demónios", Dostoievski utiliza dois personagens, Kirilov e Shatov, para exprimir a ambivalência da necessidade e importância de Deus.

Kirilov acredita que a vida consiste em dor e sofrimento. Para ele, Deus não existe e, consequentemente, tudo é possível, incluindo o suicídio, encarado como a expressão máxima da transcendência humana noutra forma, maxime uma existência divina. Ele observa que a felicidade não tem correspondência com as circunstâncias individuais, mas com um estado de espírito. Nesta linha, se alguém acredita na felicidade será feliz e nada haverá que a possa negar. O entendimento de Kirilov acerca de Deus ou da sua falta permite encará-lo como um dos personagens mais carismáticos criados pelo autor russo. Nesta obra, Kirillov surge como uma espécie de figura crística. Planeia matar-se para libertar os outros membros do grupo, perecendo pelos seus pecados. Toma assim em mãos o papel de Cristo, libertando a espécie humana para que todos possam aceder à tal transcendência que os aproximará de Deus

Shatov, pelo contrário, quer acreditar em Deus, mas pressente que não tem fé. Valoriza a ideia de Deus e toma a religião como um factor essencial para a identidade da nação russa. Mas deu-se conta de que o seu modo de vida e as suas referências não lhe permitem ter fé. Admite a existência de Deus, mas tal postulado, só por si, não atrai a verdadeira fé. Por fim, Dostoievski coloca Shatov num papel trágico: no momento preciso em que se começa a conhecer, desenvolvendo uma convicção religiosa, é assassinado.

Quer Kirilov quer Shatov possuem convicções inabaláveis: o primeiro tem fé mas não acredita em Deus, já o segundo acredita, mas não tem fé.

segunda-feira, 19 de junho de 2006

Imagens de Portugal romântico - 2

Coimbra, jardins de Santa Cruz


Douro


Nostalgia

Antes, no segredo das manhãs,
quando uma janela aberta era
todo o tempo que por ela passava,
os anos seriam um longo sorriso
assistindo à infindável partida
dos príncipes.

eram barcos e barcos,
um vazio imenso onde os homens partiam
sem que viessem os fantasmas acenando

eram os campos desertos
imaginando o seu próprio trigo,
eram as marionetas ascendendo
ao encontro do tempo:
da ferrugem nascia um império
diziam...

mas era agora o mar que invadia a terra
era um país inteiro
suspirando as tetas salvadoras,
espalhar nos olhos sublimes gestos
anunciar solenes giestas.

Alice, podes subir.
são deste lado as maravilhas. não

desistas de nós: somos
ainda vozes e pássaros. e
não sabemos como desistir da noite.


in "Labirintos"

quarta-feira, 14 de junho de 2006

Sinais interiores de riqueza

Escrever para um blogue não é o mesmo que escrever uma carta à prima, ou um discurso para uma tomada de posse, por exemplo. Também não é só escrever "para", mas escrever "por causa", escrever como um corsário pelo ciberespaço, sem bandeira, numa bárbara demonstração de um apetite de abordagem ou do abandono de uma condição demasiado humana, que não revela "boas pessoas", mas pessoas que querem pensar noutro lugar, na língua crepuscular de Sherazade.
Querem então um exemplo do que não se deve fazer nisto dos blogues? Depois de lerem, digam lá se não parece uma daquelas trivialidades de que as revistas mundans estão cheias? Afinal, de que nos importa a nós o roteiro cultural e social da senhora? Alguém lhe perguntou alguma coisa? Não, é claro, mas ela já respondeu: "Ora vejam, seus sonsos endiabrados, sentiram a minha falta? Pois estive aqui e acolá e acoli! Sou importante, point it? Adeeeeeus!"
Mas vejam também outro exemplo. E outro. Aqui, ainda que o cenário seja o quotidiano dos autores, o motivo é um quotidiano transfigurado, filtrado pela paleta de um impressionista e revelado como uma epifania. Não se trata de uma descrição narcísica, mas de uma inscrição onde a linguagem é um pano cheio de buracos. Que todavia não esconde de onde parte, nem se envergonha de revelar de onde irrompe. Uma simples, mas decisiva questão de estilo.

Os novos vendilhões do templo

Há uma certa esquerda - representada pelo respectivo Bloco, satélites, amanuenses (tipo Daniel Oliveira) e afins - que adoptou um comportamento, digamos, sacerdotal, ao reivindicar incessantemente novos territórios para um sagrado de que se julga fiel depositária.
Numa operação bem urdida, muniu-se, em primeira linha, de uma canónica legitimidade moral, que ninguém pediu, mas que a todos impõe. Depois, vai coleccionando causas atrás de causas pour epater les bourgeois, devidamente artilhadas com soundbytes cirurgicamante dirigidos. A fase seguinte é mais delicada, incomparavelmente mais subtil: se antes criou um espaço, faltava avocar um tempo. De preferência um tempo imaginário e autofágico de que se julga a única intérprete qualificada, um tempo cuja idealização alucinada serve para justificar uma espécie de pedagogia revolucionária insuportavelmente paternalista.
É a tentação heurística no seu estado puro, mas sem a utopia como pano de fundo natural. Não! A construção é muito mais prosaica e eficaz. Ofertam ao escrutínio público a versão hedonista de um consolo desde sempre conhecido das religiões: o consolo da imaginação, necessário para suportar a realidade; o auto-engano, para nos suportarmos a nós mesmos. Os novos evangelizadores do politicamente correcto dispõe assim de uma nova/velha arma: a ficção compensatória.
Veja-se, por exemplo, o caso do Arrastão da praia de Carcavelos. Segundo testemunhos directos, apareceu realmente um grupo considerável de jovens negros que importunaram quem lá estava, com danos e furtos de permeio. Se, numa primeira fase, parece ter havido algum exagero da comunicação social e do relatório policial, os dados posteriormente apurados determinaram o que efectivamente se passou. Entretanto, com zelo militante, vem a jornalista Diana Andringa desmascar o que considerou ser uma "conspiração xenófoba". Os seus esforços foram recompensados com uma resolução da AACS, em que se passa uma reprimenda aos media que noticiaram os factos e onde se determinou a fonte da "conspiração": o alarme infundado dado pelo dono de um restaurante, naturalmente xenófobo, a que as direcções dos jornais, num irresistível impulso (adivinhem) xenófobo, deram cobertura. Perceberam?
O verdadeiro "contra-arrastão" veio depois: a tal esquerda prosélita desenvolveu uma autêntica operação de branqueamento da criminalidade. Específica, é certo, mas de criminalidade, mesmo que praticada por emigrantes negros da segunda geração. Há autênticos arrastões nos comboios suburbanos, inclusivamente registados em vídeo? Não, é tudo uma construção de mentes racistas, seguindo-se o piedoso argumentário do costume: é tudo uma questão "social", étnica, de integração, etc. Para ilustrar o que descrevo, atente-se a este exemplo. Obviamente, esta fábula já foi devidamente desmontada. Aqui
De qualquer modo, a imaginação delirante destes senhores vai decerto reservar-nos mais surpresas, justificando o injustificável e promovendo o catecismo dos novos interditos. Uma perspectiva inquietante, mas que se tornará risível numa sociedade que valorize mais as liberdades negativas do que a liberdade por catálogo. Entretanto, aguardo-os tranquilamente, como quem espera que batam à porta testemunhas de Jeová ou vendedores de enciclopédias. Mas esses, ao menos, sempre acreditam no que dizem, ou no que escondem.

terça-feira, 13 de junho de 2006

António Sousa Homem

A notícia chegou-me através do Pedro Mexia. No blogue Em Certos Aspectos têm vindo a ser editadas, desde Janeiro, as crónicas de António Sousa Homem para a Revista Notícias Sábado. Em boa hora, acrescento, pois nasceu a oportunidade de um público mais alargado ficar a conhecer um dos maiores cronistas portugueses. Leitura imprescindível.

Aqui vai um exemplo: "Mudar o mundo é uma tarefa muito aborrecida porque as pes­soas, em geral, gostam deste, com as suas imperfeições e com os seus momentos de felicidade. É, provavelmente, um sinal de que o mundo, em geral, também não aprecia o gesto (..) pressinto o problema das pessoas que nunca conseguiram con­ciliar as duas coisas: a música e o ruído que vem dos pátios. Elas querem o silêncio absoluto ou a música absoluta. Coisas impossíveis, como sabemos hoje, para bem da humanidade."
in "A música que vai e volta", 10.06.2006

O Autor nasceu no Porto em Março de 1920 e vive actualmente em Moledo. Advogado de profissão, é autor de um livro de botânica e de um roteiro do Minho Litoral, ainda inéditos. Em 2002 editou o seu primeiro livro ("Os ricos andam tolos" - Edições ASA), que reunia, reescritas, algumas das crónicas que escreveu para o semanário O Independente. A partir do dia 14 de Janeiro de 2006 volta a publicar as suas crónicas, desta feita na Revista Notícias Sábado.

segunda-feira, 12 de junho de 2006

O canal SPORTV tem-nos habituado a um comportamento tipicamente monopolista, lesivo dos interesses dos consumidores e muito duvidoso em termos de concorrência. Veja-se o passado recente. Primeiro emitiu a célebre circular onde pretendia impedir a transmissão dos jogos do Mundial de Futebol em estabelecimentos abertos ao público. Corrigida logo depois, saliente-se. Soube agora que a Cabovisão está a cortar o sinal a três canais que distribui - o M6, a RTL e a RaiUno - durante o período em que estas estações, em sinal aberto, transmitem os jogos daquela competição. Contactada aquela empresa, foi-me dito que tal acontecia porque a Sportv detinha o exclusivo das transmissões. Como se vê, há um canal difundido por assinatura, que dá instruções à rede que o distribui para silenciar outros canais, por razões puramente comerciais. Canais esses que também pagaram os seus direitos de transmissão dos jogos. Para quando uma tomada de posição sobre o assunto pela Alta Autoridade da Concorrência?

domingo, 11 de junho de 2006

Carlos Vaz Marques em conversa com Paul Auster. Em "Pessoal e Transmissível", na TSF.
Poderá ser ouvido aqui

SOS

Tudo parecia estar em ordem, a solidão tornava-se forte e altiva, o passado era vencido e a hora vindoura não trazia pavor...

Herman Hesse, Ele e o Outro

sábado, 10 de junho de 2006

Crimes exemplares - 3

Menina estás à janela
com teu cabelo à lua.
Não me vou daqui embora
sem levar uma prenda tua...

Naquela noite de domingo, o feitor da Quinta das Rolas aproveitou o magnífico luar de Verão para desenferrujar as pernas. Um cheiro muito forte e indefinido estava a guiá-lo para os lados do solar do Côto. Um cheiro que ele bem conhecia, mas não tão intenso. Mal chegou, apercebeu-se de que o enorme portão de ferro estava aberto e, logo à frente, do que parecia ser uma cratera de uma explosão. Avançou. No centro, um vulto colado ao chão, rodeado de pedras que tinham sido derrubadas do muro. A coisa estava para quem tivesse sangue frio, como ele. Aproximou-se. O corpo estava desfigurado. A custo, lá conseguiu reconhecê-lo. Cruzes canhoto, era o filho do patrão! O que é que houve aqui?
Como toda a gente na aldeia, bem sabia que o solar era habitado pela única herdeira, cuja beleza só era igualada pelo mistério em que vivia. Segundo diziam, entre outras bizarrias, tinha a casa cheia de recordações de todo o tipo que o pai tinha trazido da guerra do Ultramar. Examinou o corpo. Do bolso interior do casaco retirou uma folha de papel. Ainda se podiam ler os versos, escritos à mão, para a sua amada...

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sexta-feira, 9 de junho de 2006

Imagens de Portugal romântico - 1

Arrábida

Lisboa, aqueduto das Águas Livres
Braga

quarta-feira, 7 de junho de 2006

Silencio

Así como del fondo de la música
brota una nota
que mientras vibra crece y se adelgaza
hasta que en otra música enmudece,
brota del fondo del silencio
otro silencio, aguda torre, espada,
y sube y crece y nos suspende
y mientras sube caen
recuerdos, esperanzas,
las pequeñas mentiras y las grandes,
y queremos gritar y en la garganta
se desvanece el grito:
desembocamos al silencio
en donde los silencios enmudecen.

Octávio Paz

O Diabo a quatro


Ontem, por coincidência de calendário (06.06.2006.) foi o dia "oficial" do Tal: o Coiso, o Fute, oTinhoso, o Capeta, o Ferrabrás, o Capiroto, o Zambeta, o Belzebu, o Cão Coxo, o Mafarrico, o Dianho, o Sem Nome...
Questiono-me se esta popular familiaridade com o Mal, comum à maioria das culturas, não terá a ver com o facto de nos segredar infinitamente que somos mais espertos do que ele...

A prole 2

Afinal aquele sinistro projecto de penalizar quem não tivesse filhos, por via do agravamento da taxa contributiva para a Segurança Social, não irá ser posto em prática. É de aplaudir o elementar bom senso do Governo ao fazê-lo. E não sou certamente o único a dizê-lo. Veja-se aqui porquê.

terça-feira, 6 de junho de 2006

Todas as boas mentiras começam com a verdade.

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Confissões de um cão tolerado pela gerência

Toda a gente achincalhou a iniciativa de Marques Mendes na A.R., propondo a institucionalização do Dia do Cão. Repito, toda a gente. O país anda eufórico. Compreende-se. Eu louvo entusiasticamente a proposta. É um acto de uma suprema dignidade, especialmente num país a crédito, alucinadamente futebolês, corrupto, venal, atrasado, em permanente festividade corporativa, onde a vidinha é que conta, onde a solidariedade é letra morta, onde a grandeza e o mérito são relegados para a gaveta, onde o Estado se intromete descaradamente na vida de de cada um.
Dizem os detractores da iniciativa que ela representa o paradigma de uma sociedade hipócrita que, numa manobra escapista, dá direitos a quem não os pediu e tolhe outros de forma inaceitável. Isso é verdade, mas noutros contextos. É que, esta inflação de direitos esconde uma realidade tenebrosa: nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância, como bem notou Pasolini, afastando ainda mais cada um da possibilidade de, autonomamente, clamar pelos seus direitos.
Esta invocação simbólica - o Dia do Cão- diz respeito à nossa humanidade mais profunda, à capacidade de podermos ainda sentir compaixão pela vida. Toda a vida. Valha então aquele olhar terrivelmente humano do bicho. Que me atravessa até à medula. Que me desperta para qualquer coisa que esqueci ao nascer. Que me coloca num lugar anterior a todos os lugares. Igual aos iguais.

domingo, 4 de junho de 2006

Crimes exemplares -2

Eu tenho dois amores
em nada são iguais.
Não tenho a certeza
De qual eu gosto mais...

Enquanto ela cantava, conseguiu olhar finalmente para o marido, recostado na cadeira da sala de jantar. Tinha a cabeça inclinada para trás, os olhos perdidos no vazio, uma espuma esverdeada a escorrer-lhe da boca. Na mesa, a ressudante mancha de vinho, entornado na toalha por um copo caído no chão, e os restos do jantar interrompido a meio.
"Bah! Nunca fui boa em contas!", ainda pensou, antes de pegar no telefone.

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sábado, 3 de junho de 2006

Ay nós coitados...


A Guarda é uma das cidades portuguesas com melhores condições naturais para ser "vendida" como um sítio apelativo. Pela sua especificidade, pela memória, pelo património natural e edificado, pela posição estratégica, pelas capacidades instaladas, pela condição de finis terra. Matéria consensual, ao que parece.
Recentemente, fiquei a saber que a Câmara Municipal, através da Vereadora do Ambiente - logo colocada em alta na comunicação social local sem se saber muito bem porquê - veio anunciar uma série de intenções avulsas no domínio do marketing, englobadas num programa de promoção turística da cidade.
Após ter colocado um aparelho para surdos e uns óculos para ver em 3D, utensílios que os guardenses costumam envergar quando deparam com, ou ouvem falar um político local - invariavelmente recrutado na III Divisão política e cívica, com algumas excepções, é certo... - percebi que a autarca tinha mandado imprimir umas T Shirts com a célebre cantiga de amigo atribuída a D. Sancho, exaltando os seus amores pela judia Ribeirinha. Fiquei mais descansado. Pensei que a inscrição dizia respeito às inúmeras mulheres desempregadas ou vítimas de maus tratos domésticos que, no concelho, naturalmente vivem "en gran cuidado" pelo seu futuro ou pelo seu benemérito "amigo". Mas, no amor, todos os cuidados são poucos, ou então, deliciosamente risíveis, como se sabe.
A Vereadora, num impulso digno de nota, corre para "vender" a imagem da Guarda ao exterior. Não obstante, antes de qualquer planeamento, antes de qualquer estratégia a seguir, é fundamental que o debate se alargue e nele participem e dêm o seu contributo o maior número de cidadãos, empresas e instituições, guardenses ou não.
Ora, o critério decisivo a preencher nesta questão será o de responder a duas simples perguntas: quais as vantagens comparadas com que a Guarda se pode afirmar junto do público, isto é, que produtos irão integrar a "marca" Guarda? Qual a imagem distintiva que irá dar-lhe visibilidade, poder de atracção? Para responder a essas questões, proponho um exercício prévio. Sem pensarem muito, respondam sem medo e honestamente ao seguinte: o que tem realmente a Guarda para oferecer? Pensem bem antes de responder. Pensem no que vos levaria a deslocar muitos kilómetros para visitar uma cidade em muitos aspectos atrasada e provinciana no pior sentido possível. Pensem bem. Seriam os versos do Rei Povoador? Seria a magnitude incompreendida e ignorada da Sé? Seria uma restauração medíocre, com duas ou três excepções dignas de nota? Seria uma vida nocturna em ascensão, mas com uma oferta pouco segmentada e onde a música difundida é de uma previsibilidade bocejante? Seria a observação in loco do homem beirão, um Sísifo voluntário, como disse Miguel Torga, que ambiciona o poder e o mando, truísmo já assinalado por Gil Vicente - olhai vós bem que este sam eu, diz o Juiz da Beira. Nada de confusões ou familiaridades apressadas, portanto - características temperadas, valha a verdade, por um irredutível desejo de liberdade e sua defesa, ou por uma radical mundividência? Seria um comércio que não se modernizou, desajustado à procura e com preços incrivelmente altos? Seria o apelo da montanha, a piedosa grandeza do granito, a limpidez do ar, um paradigma que já foi medicinal mas que agora poderá ser de um inconformado meneio espiritual, ou de um irrequieta pulsão desportiva? Seria a mais que razoável oferta cultural, no entanto desacompanhada de soluções urbanísticas que a prolonguem e potencializem? Seria para simplesmente ver confirmado o insólito: não existe, numa cidade de montanha, um único circuito pedonal na zona envolvente, ou sequer uma ciclovia, nem uma programação pública e regular de actividades que promovam a ligação e a descoberta do património natural? Seria a crua imagem de uma terra ingrata e austera, quase imóvel, mas onde a naturalidade ainda pesa mais do que o artifício? Seria a louca e pueril persistência dos que decidiram ficar, certificando-se no espelho de que o seu encontro com a cidade não foi uma ilusão, e cuja puerilidade alucinada se transformou numa espécie de mistério, poeira oculta, movimento encerrado num espaço sem tempo?
Tantas perguntas, senhora Vereadora! Que tardam, e non vemos. Mas o seu ar sorridente, televisivo e asséptico, envergando a singular T shirt decerto vendida na inenarrável Loja do Concelho, seguramente já respondeu às minhas. Teme-se o pior.

Publicado no jornal "O Interior"

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Lista de tarefas


É preciso correr é preciso ligar é preciso sorrir/é preciso suor/é preciso ser livre é preciso ser fácil é preciso a roda/o fogo de artifício /é preciso o demónio ainda corpulento/é preciso a rosa sob o cavalinho/é preciso o revólver de um só tiro na boca/é preciso o amor de repente de graça/é preciso a relva de bichos ignotos/e o lago é preciso digam que é preciso/é preciso comprar movimentar comércio/é preciso ter feira nas vértebras todas/é preciso o fato é preciso a vida/da mulher cadáver até de manhã/é preciso um riso na boca do pobre/é preciso a máquina a quatro mil vóltios/é preciso a ponte rolante no espaço/é preciso o porco é preciso a valsa/o estrídulo o roxo o palavrão de costas/é preciso uma vista para ver sem perfume/e outra menos vista para olhar em silêncio/é preciso o logro a infância depressa/o peso de um homem é demais aqui/é preciso a faca é preciso o touro/é preciso o miúdo despenhado no túnel/é preciso o braço coberto de espuma/a luz o grito o grande olho gelado/ E é preciso gente para a debandada/é preciso o raio a cabeça o trovão/a rua a memória a panóplia das árvores/é preciso ainda que caias de borco/na cama no choro no rogo na treva/é precisa a treva para ficar um verme/roendo cidades de trapo sem pernas

Mário Cesariny, Manual de Prestidigitação

Nova cara

Caros leitores e leitoras:

Para quem tem visitado com frequência este blogue já se deu conta que, recentemente, sofreu uma profunda reestruturação ao nível gráfico. O que implicou, numa via experimental, o recurso a vários modelos sucessivos, numa lógica de tentativa e erro. Durante este processo, é natural que tenham sentido alguma perplexidade. Mas eis que o barco chegou a bom porto e o que agora vêm é a solução gráfica adoptada. Espero que seja do vosso agrado, tanto como o está a ser para mim.
Para os que só agora chegaram, que sejam bem-vindos.
Obrigado.

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Nel mezzo del cammin di nostra vita
Mi ritrovai per una selva oscura
Ché la diritta via era smarita


Dante, Divina Comédia