sexta-feira, 29 de setembro de 2006

"A Estratégia da Aranha"

Sobretudo nos sistemas políticos democráticos, geram-se perversões ao normal e transparente funcionamento das instituições que, supostamente, seriam o seu pilar. Em Portugal há um fenómeno que, não sendo particular, adquire proporções catastróficas: a existência daquilo a que os sociólogos chamam de "elites dos fluxos". Trata-se de uma espécie de casta que, por razões profissionais, de classe, ou de poder reivindicativo, actuam como se estivessem fora das responsabilidades que lhe são exigidas num Estado de Direito. Mas não abdicam da proximidade do poder - poder legítimo e soberano, entenda-se - para, na qualidade de insiders, influenciarem a opinião pública e as instituições, bloquearem o Executivo, criando uma teia de dependências, propícia ao compadrio e ao mais rasteiro corporativismo. As estruturas representativas das magistraturas - não a classe no seu todo, é claro - são o exemplo mais nítido deste modus operandi. Sendo cabeças de cartaz personagens como Noronha do Nascimento, recém-nomeado Presidente do STJ.
Razão pela qual se transcreve o editorial saído hoje no "Público", de José Manuel Fernandes, com o mesmo título deste post. E que poderá ser aqui lido por assinantes da edição on line .

Noronha de Nascimento, o homem que vai presidir ao Supremo, representa a face sombria da nossa justiça.

    Querem um símbolo, um expoente, um sinónimo, dos males da justiça portuguesa? É fácil: basta citar o nome da Noronha de Nascimento e tudo o que de mal se pensa sobre corporativismo, conservadorismo, atavismo, manipulação, jogos de sombras e de influências, vem-nos imediatamente à cabeça.

    O juiz - porque é de um juiz de que se trata - é um homem tão inteligente como maquiavélico. Anos a fio, primeiro na Associação Sindical dos Juízes, depois no Conselho Superior da Magistratura, por fim no Supremo Tribunal de Justiça, esta figura de que a maioria dos portugueses nunca ouviu falar foi tecendo uma teia de ligações, de promiscuidades, de favores e de empenhos (há um nome mais feio, mas evito-o) que lhe assegurou que ontem conseguisse espetar na sua melena algo desgrenhada a pena de pavão que lhe faltava: ser presidente do Supremo Tribunal de Justiça. O lugar pouco vale (quem, entre os leitores, sabe dizer quem é o actual presidente daquele tribunal, formalmente a terceira figura do Estado?). Dá umas prebendas, porventura algumas mordomias, acrescenta uns galões, mas pouco poder efectivo tem.

    O problema, contudo, reside neste ponto: tem, ou terá? Os senhores juízes, que aqui há uns tempos se empenharam na disputa com o Tribunal Constitucional para saber quem era hierarquicamente mais importante (ganharam os do Supremo a cadeira do protocolo, deram aos do Constitucional a consolação de terem ao seu dispor um automóvel topo de gama...), nem sequer são muito respeitados. Por sua culpa, pois sabe-se que alguns passam pela cadeira do Supremo apenas uns meses e para engordar a sua reforma. O presidente daquele agigantado colégio de reverendíssimos juízes pouco poder tem tido, só que Noronha de Nascimento apresentou-se aos eleitores - ou seja, aos seus pares, aos que ajudou a subir até ao lugar onde um dia o elegeriam - com uma espécie de programa que arrepia os cabelos do mais pacato cidadão.

    O homem não fez a coisa por pouco: ao mesmo tempo que vestiu a pele do sindicalista (pediu que lhe aumentassem o salário e que dessem menos trabalhos aos juízes...), pôs a sobrecasaca de subversor do regime (ao querer sentar-se no Conselho de Estado) e acrescentou o lustroso (pela quantidade de sebo acumulado) chapéu do "resistente" às reformas no sector da justiça.

    Se era aconselhável que um presidente do Supremo Tribunal desse mais atenção a Montesquieu e ao princípio da separação de poderes do que à cartilha da CGTP, Noronha de Nascimento fez exactamente o contrário. Reivindicou como um metalúrgico capaz de ser fixado para a posteridade numa pintura do "realismo socialista" e, esquecendo-se de que é juiz e representante máximo do "terceiro poder", o judicial, pediu assento à mesa do "primeiro poder", o executivo. É certo que o poder do Conselho de Estado é tão inócuo como o penacho de ser presidente do Supremo Tribunal, só que a reivindicação contém em si duas perversidades. A primeira é ser sinal de que Noronha de Nascimento se preocupa mais com o seu protagonismo público do que com os problema da justiça. A segunda, bem mais grave, é que o homem se disponibiliza para ser o rosto de uma fronda dos juízes contra as decisões reformistas do poder político, neste momento objecto de um consenso alargado entre o partido do Governo e a principal força da oposição.

    É tão patético que daria para rir, não estivéssemos em Portugal e não entendêssemos como funcionam as estratégias das aranhas. O homem, creio sem receio de me enganar, é tão inteligente e habilidoso como é perigoso. Até porque tem já um adversário assumido: o novo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, um dos raros que tiveram a coragem de lhe fazer frente."

quinta-feira, 28 de setembro de 2006

Diário de um tolo -9

A devastação era, até agora, verdadeira e imaginável. Porém, está a tornar-se uma condição sem retorno.

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quarta-feira, 27 de setembro de 2006

Passeando na blogosfera - 3

Com as botas de trekking calçadas, mochila às costas e um impermeável para o que desse e viesse, mas sem bússola, fiz recentemente uma incursão exploratória pela blogosfera. Algumas surpresas agradáveis aconteceram. Vejamos então quais:
1. Para quem gosta de estar actualizado em matéria de software, com algumas dicas para optimizar os sistemas operativos, o Peopleware é imprescindível. Trata-se de um site que funciona como um blogue, onde são colocadas as novidades de software, informação q.b. e o respectivo link para descarga imediata. A apresentação é muito simples e intuitiva e o template do site está irrepreensível. Excelente.
2. Numa altura difícil para quem tem a sua paixão clubista pintada de vermelho, como é o caso do escriba, recomendo dois blogues: o Dianabol, editado pelo"guitarrista", o mesmo que transitou do biqueiradas. As questões são colocadas de forma séria, descontraída e irreverente, fugindo um bocado ao habitual maniqueísmo dos blogues sobre futebol, mas sem deixar de vincar uma insuspeita parcialidade; noutro registo, temos o Ser benfiquista. Um fórum mais estritamente futebolístico, onde a "clubite" está ausente, substituída por uma análise rigorosa e descomprometida da gestão, resultados e intervenientes do SLB e não só. E onde não se foge à verdade, mesmo que ela doa.
3. Por último, e num assomo de nostalgia, fui dar ao Bar Velho. Trata-se de um blogue editado por alunos da Faculdade de Direito de Lisboa, bastante participado e, embora direccionado para temas mais próximos, não se esgota aí. Recordo que, quando frequentei a Casa do Pó e Leys , ainda não havia blogues. O fervilhar de ideias e projectos tinha outros canais. Que passavam quase sempre pela distribuição de fotocópias com textos inflamados, ou por discussões intermináveis na sala da Tertúlia e...no Bar Velho. Força, pessoal.

Nota: realce para o post de João Gonçalves no "Portugal dos Pequeninos", intitulado, "A Escrita Maricas", a propósito de mais um académico de sucesso criado nas capelinhas literárias. Inspirado e arrazador. Ver aqui.

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Crimes exemplares - 7

Fui a essa repartição uma e outra vez para tratar dos terrenos que o meu avô me deixou. Havia sempre mais um rendilhado da infindável trama requerimental que me era exigido. Foi então que comecei a dormir mal. Tinha pesadelos violentos. A simpatia forçada e a condescendência que era forçado a exibir estavam a esgotar as minhas forças, a esgotar o tutano da minha dignidade. A pior situação era quando me davam a entender que a "licençazinha" estava encaminhada e depois voltava tudo atrás. O movimento era circular e aparentemente eterno. Tão agradecido estava a esta linearidade ocupacional que a demonstrei ao chefe da repartição. Numa brumosa tarde de Inverno, após ter esperado que saísse do serviço, fui ter com ele. Mantendo o sorriso, encostei-lhe a lâmina ao pescoço e fi-lo engolir, um por um, todos os papeis que ainda restavam do que me tinham obrigado a preencher para o "bom andamento do assunto". Ao terceiro, deixou de espernear. Pelo silêncio que se seguiu, não era difícil adivinhar que o pedido fora finalmente deferido.

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segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Imagens de Portugal romântico - 8

Albufeira
Amarante
Abrantes


Os poetas, a actriz e o consenso

Na semana passada registei-me no site do jornal "Sol", ao qual está associado um blogue pessoal. Que poderá ser acedido aqui. Anteontem coloquei lá o post sobre o Outonoaqui publicado. Apareceu então um comentário assinado por uma actriz de telenovela - pelo que me foi dado a entender - afirmando que, "de poetas consensuais já estava farta". Referia-se à inclusão do excerto de um poema de Eugénio de Andrade e, implicitamente, ao de Teixeira de Pascoaes.
O enunciado é curioso e revelador. Hoje em dia, sobretudo na blogosfera, quando se pretende argumentar, não se pega numa ideia, ou numa simples projecção subjectiva e, do lugar onde ela nos transporta, se devolve essa ou outra impressão para um lugar neutro. Não! Pega-se num soundbyte, que muitas vezes é um simples referente, uma citação que envolve o propósito do texto, para lhe acentuar o sabor e o contexto. Depois, é só disparar uma boutade, e já está! Assim fez aquela comentadora. Por outro lado, o que são poetas consensuais? Antes de mais, ser apelidado de consensual é concerteza o pior pesadelo que qualquer poeta deverá ter. Ora, acredito que só os verdadeiros poetas inscrevem no mundo um enigma insolúvel e uma inexplicável coerência. Que, sem eles, seria uma casa desabitada e sombriamente consensual.
Por outro lado, supondo-se que o consenso apontado se refere a uma aceitação generalizada e inquestionável da qualidade da obra, será isso, só por si, critério para a julgar? Repare-se que a comentadora poderia ter dito: "lamento, mas não gosto da obra desses autores", por qualquer razão intrínseca à própria obra. Mas não, ela qualificou-a de acordo com a sua aceitação. Esta perversão argumentativa em que toma parte, pode ser definida como a afirmação do consequente. Isto é, uma falácia em que se ignoram outras causas a partir da ocorrência de um efeito. A fórmula seria: P, então Q; Q; então, P. Exemplo: "se estiver a chover (P), o correio atrasa-se (Q). O correio atrasou-se (Q), entaõ está a chover (P). Ou então, estaremos em presença de uma negação imprópria, onde se confunde a causa e o efeito, trocando-os.
Seja como fôr, é bom não esquecer que, embora uma obra poética possa ser consensual, um poeta jamais o será. A comprová-lo, bastaria visitar a casa-museu de Teixeira de Pascoaes, em Amarante, incursão para a qual desde já convido a comentadora. Garantindo que uma manhã em locais como esse é substancialmente mais inspirador do que qualquer telenovela. Mas as telenovelas não são, afinal, o paradigma do consenso, do mainstream?

sábado, 23 de setembro de 2006

Eu fui ao jardim celeste...

Pedido de desculpas do Imperador Manuel II Paleólogo

Desfile de cozinheiros exibindo receitas originais do Bacalhau à Brás

Vítima de traumatismo craniano à saída do Hospital mostrando a conta respectiva

Contra-manifestante, adepto da feijoada à transmontana

Novo treinador do Benfica, dando indicações do banco

Já aqui se comentou a reacção do mundo islâmico a declarações do Papa contidas na conferência académica que proferiu na Universidade de Ratisbona. Tudo girou à volta da citação da frase de Manuel II Paleólogo, imperador de Bizâncio, que diz a um seu interlocutor muçulmano: "Mostra-me o que Maomé trouxe de novo e encontrarás coisas más e desumanas, como o direito de defender pela espada a fé que pregava." Mas aquilo que está verdadeiramente em causa é a matriz grega do pensamento ocidental, segundo a qual a fé é inseparável da razão - o logos - como conclui, e bem, JPP , no Abrupto. Correspondência essa ignorada no Islão.
Ocasião pois para mostrar algumas das imagens que faltavam para uma melhor compreensão dos métodos da "persuasão musculada" utilizada nas terras do Crescente.

sexta-feira, 22 de setembro de 2006

O Outono, finalmente


Após meados de Junho, é quase uma fatalidade: anseio sempre pelo regresso do Outono. O Verão com "seus potros fulvos", como escreveu Eugénio de Andrade, é para mim um período descolorido, pleno de uma agitação inconsequente. Mas com os primeiros alvores do Outono, é a matéria e o espírito que se envolvem numa dança impensável, e um despertar luminoso começa a envolver a memória. A natureza recolhe-se, mas esse espaço é preenchido pelo tempo, fazendo-nos saber o que ainda espera por nós. O resto é conhecido: a infindável paleta de cores, os aromas que pairam no ar, a luz que se vai despedindo com um secreto pudor, as castanhas e as nozes que se apanham ao final da tarde. E sobretudo o vento já agreste, que nos recorda a fundamental efemeridade da vida. Como dizia Teixeira de Pascoaes, não sei se a pensar nesta época, "quando a folha cai, a alma sobe".

Publicado no jornal "O Interior"

Breviário


A pedido do Diácono Remédios, aqui ficaram alguns conselhos para meninas bem ou mal comportadas. O que chateia é que esta literatura, tornada obsoleta após os anos 60, consegue marcar alguns pontos. Isto para quem acredita que o verdadeiro poder está no triunfo sobre si próprio. A questão é que, esse triunfo não é uma sobreposição, nem uma anulação da natureza de cada um. Pelo contrário, é tirar partido dela e transfigurá-la, independentemente da forma em que se apresente.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

O guarda-nocturno

Da lavra de José Carlos Alexandre, saiu esta semana no jornal "O Interior" uma crónica com o subtítulo a urgente educação dos intelectuais subdesenvolvidos. Na sua saga em defesa do gosto do bom povo, o autor fustiga violentamente os tais intelectuais, com epítetos como: "luminárias", "artistas de meia tijela", "snobes insuportáveis". Estes são, segundo ele, os sinistros representantes de uma elite obscura, que pretende educar o povo com "alta cultura" e que justifica o atraso do país com o facto provado (pelo autor) de que o povo não está interessado em "alta cultura" e prefere futebóis, fados e religião (sic). Acrescenta ainda que as elites que temos não prestam, "tomaram decisões desastrosas", desde o liberalismo, supõe-se, e que "nos conduziram ao triste estado em que estamos". Outras elites de países "civilizados" são, segundo o autor, mais tolerantes com os gostos do respectivo "povo". Dá o exemplo da Alemanha, onde, informa, o Volkgeist se resume à "cerveja, ao futebol, ao cabaré e outro qualquer entertenimento pimba" (sic). Termina de modo assertivo, com o discurso habitual de que o que interessa é "dar" a todos o acesso à "alta cultura", sem a intervenção dos tais intelectuais subdesenvolvidos. A quem estará vedada qualquer tutela sobre os gostos das massas, pois "não têm nenhum mandato para o efeito", ainda por cima com o rico dinheirinho dos contribuintes. Alexandre consegue mesmo vislumbrar uma "ambição estalinista" nestes degenerados.
Acreditem que isto é mesmo verdade. Está escrito, como soe dizer-se no jargão burocrático. Vou-me então cingir à questão das elites, pois sobre políticas culturais, sobre as responsabilidades do Estado e autarquias na matéria e sobre uma estratégia nesse domínio para a Guarda, já aqui e aqui exprimi o meu pensamento. Para além do artigo publicado na edição do mesmo jornal de 7 de Setembro.
Em primeiro lugar, devo dizer que, de facto - e aqui acompanho o cronista - há demasiada arrogância e demasiado narcisismo por parte de alguma intelectualidade, próxima ou não do poder e, sobretudo, no mundo artístico. Esse pedantismo, que alguns confundem com excentricidade, é inversamente proporcional à existência do verdadeiro talento, ou de uma genialidade que não busca aprovação imediata. O mesmo se aplica ao universo literário. Este funcionando num complicado sistema de capelinhas em regime de troca de laudas, apoiado em grande medida nos media. Mas essa é uma outra história, que merecerá um tratamento à parte.
Em segundo lugar, independentemente de o texto ter pouco de liberal e muito de populista, qual é a sua função prática? Facilmente se adivinha: estamos em presença de uma proclamação de conquista territorial, uma cobertura "ideológica" apta a caucionar a gestão medíocre e popularucha do actual executivo camarário. Sob a forma de recados cirurgicamente dirigidos. Adiante. Todavia, subsiste a tal dúvida razoável: a que elites se refere o texto? Às políticas? Às económicas? Às culturais? Não se sabe. O cronista está igualmente certo, convenhamos, sobre a escassa qualidade das elites nacionais. Mas a razão é outra. É que, desde a Regeneração, a notoriedade pública em Portugal passou a existir em função de factores estranhos ao mérito, à competência, ao dinamismo, à coragem. Hoje em dia é uma questão puramente mediática, aleatória. Mas julga o autor que essas elites estão preocupadas com o povo? É claro que não. Procuram até distinguir-se o mais possível desse povo, ridicularizando aqueles que com ele mantém a ligação, as tradições e os hábitos. O fenómeno do "Independente" tem muito a ver com isso: uma auto-proclamada vanguarda que se limitou a reunir, distribuir e dar novo brilho a uma proverbial fraqueza nacional: o ressentimento. É dessas elites que fala o autor? Ou não será antes o ponto de vista de uma elite em formação, sobre outra que nem sequer funciona como tal? Onde o ressentimento de quem construiu uma identidade à custa do esvaziamento interior vem agora buscar a fusão desesperada com a "situação". Para ter carta branca para depôr aqueles que se recusam ao embuste: alguns artistas, alguns intelectuais, alguns que não abdicam da sua dimensão cívica, todos aqueles, enfim, cujo programa de acção não dispensa a fantasia, a inutilidade, a insubmissão?
Em terceiro lugar, qual é , no texto, o lugar da "alta-cultura"? É simples, parece ser sinónimo de cultura erudita. Ora, sabe-se que a ópera era muito popular, mesmo em Portugal, na última década do séc. XIX e nas primeiras do seguinte. Sendo-o agora menos, será por esse facto "alta cultura"? Os espectáculos de ballet e de música erudita eram acontecimentos com uma adesão impressionante nos países do Leste. Então, o que "cá" seria "alta-cultura", "lá" perderia essa qualidade? E na Alemanha, já que falou nisso, a música é incomparavelmente mais popular do que o futebol. A pergunta anterior repete-se. Mas saberá o autor porquê? Porque ALGUÉM tornou isso possível. Porque as entidades públicas não se demitiram das suas funções, no apoio à criação e divulgação culturais. Porque muitos "intelectuais subdesenvolvidos" deram o seu contributo profissional ou artístico, para que isso fosse possível. Da mesma forma que no nosso país já o fizeram e irão continuar a fazer. A questão não está pois em "educar" o público, mas em PROPÔR alternativas consistentes, aptas à constituição de vários públicos, à criação de hábitos de fruição da cultura. Sem perder de vista que a definição dos gostos e afinidades vai muito para além da simples oferta.
Em quarto lugar, o cronista fala do povo como de uma massa infantilizada, ao gosto do Estado Novo. Que urge pôr a salvo da contaminação das tais elites que refere. De uma assentada, esvazia o verdadeiro significado da cidadania, da arte como uma experimentação de diferentes percepções do mundo. Fala das massas, entidades passivas, mas esquece-se dos indivíduos e das suas infinitas motivações para a fruição e a criação culturais, que merecem a atenção do Estado, directa ou indirectamente. Com algum paternalismo, refere-se ao "povo" como uma categoria abstracta, convenientemente desresponsabilizada, com uma identidade deficitária, confinada ao seu mundo "castiço", inóquo. Qualidades essas que os vigilantes nocturnos, os fautores da neutralidade se encarregariam de assegurar, ou seja, disfarçadamente policiar.
O fascismo começou assim.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

Sonho da última noite de Verão

O que a RTP não mostrou



cortesia Welcome to Elsinore

Este ano arderam 5 000 hectares de floresta no Parque Nacional da Peneda Gerês. Algumas áreas situadas em zonas consideradas muito sensíveis, no que toca à biodiversidade. De que a zona do Mezio é um exemplo.
A propósito, há uns anos atrás, numa altura em que ainda era permitido acampar na Portela do Mezio, estive lá uma semana. Descobrir os carvalhais em volta, as brandas (pastagens de montanha vedadas com lajes), os monumentos pré-históricos, a aldeia do Soajo, foi simplesmente inesquecível.
Eis algumas imagens da tragédia que a RTP praticamente esqueceu, graças às alegadas recomendações do Primeiro-Ministro para não "alarmar" o País e justificar os milhões gastos na prevenção dos incêndios florestais.

terça-feira, 19 de setembro de 2006

Diário de um tolo - 8

Um lugar com um pequeno inferno. Onde digo sempre é preciso despedir-me é preciso uma terra feroz e sumptuosa. Uma noite enorme com palavras antigas para atravessar lentamente: sede, barco, sombra, ternura, música, sonho, pátria, árvore, azul, vinho, terra, ardor, fruto, lábios, criança, fogo, chave, deserto, água, barro, mundo, amante, quimera, corrida, fantasia, sono, peito, destino, branco, deus, tempo, loucura, montanha, infância, êxtase, viagem, magia, mulher, pássaro, verão, embriaguêz, nuvem, tu, mãos, passos, violino, inverno, melancolia, além, casa, outro, passagem, morte, belo, lago, guerreiro, libélula, beijo, ilha, eco, cabelo, orvalho aqui, noite, quente, nós, corpo, outono, poema ainda. É preciso despedir-me de tudo o que não encontrei nos limites da música, herdeira da inocência que cheirei numa tarde que nunca existiu para além dela. Onde sempre chegarei, mesmo agora que tudo esqueci, menos o mistério. Um mistério tremendo que me sussurra uma tenebrosa cumplicidade para um crime perfeito. Noites e dias para sacudir a mágoa que teima em inaugurar todos os caminhos que começam. Que sobe devagar pelas coisas. Que entra silenciosamente no meu sangue. É certo que existem muitos caminhos para a sede. Secretos todos. Uns límpidos como uma epopeia, outros errantes como um seixo. Mas o que fazer quando o único alimento é o desespero, uma ânsia desmesurada de errar pelos velhos caminhos, até encontrar o lugar, a casa acesa por dentro? Onde a terrível violência de uma esperança me dirija as mãos e os olhos? Para que eu seja finalmente absorvido pelo enigma, pelo movimento esmagador da inocência. Mesmo que, à volta, ainda os estilhaços de uma devastação sem nome. Sem rosto. Sem fim.

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segunda-feira, 18 de setembro de 2006

Anainanão, ficas tu, eu não

via "A Terceira Noite"

A terrível orfandade da esquerda herdeira do "socialismo científico" é dramática. Habituada a pensar e agir segundo abstracções - as "massas", a "classe operária", os "oprimidos" - cuja liderança esclarecida e "democrática" conduziria à vitória final, perdeu de vista o indivíduo e as suas verdadeiras necessidades. Alheou-se dos novos movimentos sociais e estéticos, cujo raio de acção caía fora da sua agenda política, preenchida esta quase na totalidade com reivindicações de carácter corporativo. Essa esquerda orgânica, acomodada ao hedonismo e à sociedade do espectáculo triunfante no pós-guerra, recusou-se a ver os sinais que vinham do lado de "cá" - a inviabilidade do "Estado Social", o desmantelamento da indústria pesada e com mão-de-obra intensiva, a terceirização da economia, a emergência de novos paradigmas de conflitualidade - e do lado de "lá": Hungria, Checoslováquia, Polónia, Cambodja, Cuba, China, etc. Indícios inequívocos da falência daquilo em que diletantemente acreditava. Com a queda do muro de Berlim foi o descalabro. O mundo deixou de ter bons e maus. Andou nesta indefinição durante uma década. Em seu socorro vieram alguns balões de oxigénio: a luta anti-globalização, a primeira guerra do Iraque, entre outros.
Mas algo aconteceu que veio alterar as coordenadas geográficas da sua busca incessante de novos paladinos anti-ocidente - a emergência do radicalismo islâmico. Que identificou erroneamente com os "oprimidos" do capitalismo global. Acontece que esse paladinos são precisamente os grandes beneficiários desse capitalismo e que, aliados às oligarquias reinantes, mantem a esmagadora maioria - sobretudo as mulheres - das populações dos respectivos países numa situação de quase indigência, num regime de cleptocracia fundada na autoridade inquestionável do Islão. Essa mesma esquerda ignorou ostensivamente a proliferação de madrassas, o massivo recrutamento de jovens descontentes - alguns tendo estudado no Ocidente - o crescente poderio militar dos fundamentalistas, a sua organização supranacional, a audácia com que iam cometendo atentados terroristas, financiados pelos potentados do golfo. Ao fim ao cabo, na sua perspectiva, eram lições merecidas pelo "Grande Satã" e pelo seu aliado sionista, os únicos responsáveis pelo estado a que as coisas chegaram. Em três coisas, no entanto, acertaram: as tentativas de laicização que nos anos cinquenta e sessenta foram feitas no interior do mundo árabe, de que Nasser e o Hamas da altura são exemplos, foram boicotadas pelos americanos, no contexto da Guerra fria; que também financiaram e armaram os talibãs e o Iraque, quando eram aliados estratégicos no combate, respectivamente, aos soviéticos no Afeganistão e aos iranianos; a invasão do Iraque, embora contabilizada como vitória militar, pode muito bem vir a ser uma derrota política, para além de ter criado mais um foco de instabilidade propício à demagogia dos radicais.
Voltando ao tema, o resto é fácil de seguir: padecendo de uma orfandade crónica, e carecendo de um inimigo de estimação para exercer o seu ressentimento - porque foi incapaz de fazer o luto, na sequela da desagregação do Leste - a esquerda elegeu um alvo preferencial: os Estados Unidos. A que associou recentemente o anti-semitismo. E nesta fixação doentia tem gasto grande parte das suas energias, em vez de se reformular, enérgica e drasticamente. Pelo caminho, e para além dos ultras islâmicos, aplaude os neo-populistas sul-americanos Chavez e Morales, Milosevic, Fidel, a escalada nuclear iraniana, o Hezbollah, etc. Ficando em silêncio no assassinato do cineasta Theo Van Gogh na Holanda - lembram-se? Idem quanto ao derrube das estátuas budistas no Afeganistão, às ordens dos Taliban. Alguém lhes exigiu desculpas? E alguém já as exigiu aos dirigentes religiosos islâmicos que diariamente insultam, ameaçam, caluniam tudo o que seja Ocidental? Que diariamente encontram qualquer pretexto para incendiar a "rua islâmica" e reforçar o seu poder. Neste ponto, o episódio dos cartoons dinamarqueses é exemplar. As maiores vítimas do terrorismo islâmico, é bom lembrar, são, em primeira mão, os próprios muçulmanos. As acções terroristas, cada vez mais desmaterializadas e planeadas localmente, obedecem no entanto a um programa preciso - manipulação dos media, agitação cirúrgica, concentração de meios em zonas conturbadas, mobilidade logística, recrutamento de cidadãos muçulmanos de países ocidentais como "soldados de Deus", "oferta" de serviços às populações em zonas ocupadas, imposição de um padrão islâmico regressivo para todo o mundo muçulmano, mesmo nos países mais "liberais" (veja-se o caso da Tunísia), sendo que, só os alvos são aleatórios. Porque dependem, cada vez mais, de circunstâncias puramente operacionais.
Mas essa esquerda, que com várias nuances continua a colher os frutos daquilo que tanto detesta, esqueceu-se de um pormenor: este terrorismo não escolhe os alvos pela sua maior ou menor simpatia com a sua causa. Portanto, também ela pode ser vítima, também os mesmos que subscrevem, explícita ou tacitamente, a cruzada anti-ocidental, podem ser os próximos a cair. Toda esta história se resumiria simplesmente à ironia, se não fosse profundamente trágica.

E não se pode irradiá-los?

O futebol nacional, como é sabido, anda pelas ruas da amargura. É um tema que raramente aqui é tratado. As evidências são arrazadoras sobre o que aconteceu de há 25 anos para cá. Isto é, o mundo do futebol tornou-se a escola dos principais vícios de que enferma o país: corrupção, promiscuidade, tráfico de influèncias, impunidade total, leis que existem e não são aplicadas, órgãos jurisdicionais que não funcionam, complacência e permeabilidade às pressões clubísticas por parte do sistema judicial, uma infinita arrogância de certos responsáveis e dirigentes, cumplicidade dos órgãos de comunicação social, falseamento da verdade desportiva, criação de um polvo gigantesco, com ramificações impensáveis.
Sobre o assunto, e de forma concludente, é obrigatório ler este artigo de Leonor Pinhão, na Bola. O qual assino energicamente por baixo.

domingo, 17 de setembro de 2006

Falsos ídolos - 3

Para melhor compreender as recentes declarações do Papa sobre o Islão, leia-se este post. Brilhante e esclarecedor, sem dúvida. Mesmo que se trate de uma tempestade num copo de água. No entanto, o texto suscita alguns apontamentos.
Antes de mais, devo dizer que as minudências teológicas me escapam completamente. Em matéria de religião, sou agnóstico. Com uma enorme simpatia pelo budismo. Precisamente porque não é uma religião convencional, com uma galeria de deuses, imposições, códigos de conduta, espectros, medos, castigos, dualidades, algo que nos infantiliza a ponto de a oração se resumir a pedir prendinhas ao Pai Natal. Encaro-o mais como uma filosofia, uma prática, onde se exige tudo do próprio, e a vida se reduz ao que ela é: uma relação permanente, mas transitória, de causa-efeito. De qualquer forma, depois de ler o "Tratado de História das Religiões" de Mircea Eliade, percebi que, do ponto de vista antropológico, a religião é um fenómeno poderoso. Mas que não esgota, nem de perto nem de longe, a verdadeira espiritualidade. Que pode também ser encontrada na arte, no erotismo, na contemplação da natureza, na meditação, ou no consumo de determinados alucinogéneos. Aliás, veja-se a recente tentativa de reatar a discussão sobre o creacionismo por parte da Igreja. Só esta aberração diz bem do estado a que chegaram as coisas. Sem retirar a inefável qualidade literária à história de Adão e Eva, é claro.
Quanto ao radicalismo islâmico e luta anti-terrorista, as minhas posições são conhecidas: tolerância zero. Subtilmente, o texto transmite a ideia de que o Ocidente é o agressor e de que a Jihad é justificável num contexto de auto-defesa. A tal inversão da vítima e do carrasco de que falei aqui outro dia. Ora este pensamento é inaceitável. Será que já se esqueceram do 11 de Setembro? O amor que é referido no post é algo respeitável. Mas de que amor se fala? Aos terroristas também é fornecida uma galeria de inimigos para liquidar a ainda se amarem por isso. É em nome do amor que querem destruir a nossa civilização. E em nome de Deus, ainda por cima. Com cobertura nos complexos de culpa coloniais ainda presentes no Ocidente, nos idiotas de serviço que estão em todas, num anti-americanismo primário que parece ter revigorado a esquerda cataléptica pós queda do muro de Berlim. Deus pode ser Razão para os verdadeiros crentes. Mas não duvidem que, para estas turbas de fanáticos, Deus é somente uma conveniência segura para exerceram o seu ódio e a sua sede de poder.

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Sonho de outra noite de Verão

As lâmpadas estátuas saem do fundo do mar e gritam viva DADÁ para saldar os transatlânticos que passam e os presidentes dadá o dadá a dadá os dadás uma dada um dadá e três coelhos à nanquim por arp dadaísta em porcelana de bicicleta estriada nós partiremos para Londres no aquário real perguntem em todas as farmácias os dadaístas de rasputin do tzar e do papa que só valem por duas horas e meia.
As lâmpadas estátuas saem do fundo do mar e gritam viva DADÁ para saldar os transatlânticos que passam e os presidentes dadá o dadá a dadá os dadás uma dada um dadá e três coelhos à nanquim por arp dadaísta em porcelana de bicicleta estriada nós partiremos para Londres no aquário real perguntem em todas as farmácias os dadaístas de rasputin do tzar e do papa que só valem por duas horas e meia.
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Hans Arp

Incursões - 1

Lagoa do Vale do Rossim

Penhas Douradas

Ontem à tarde andei pela Serra. Escolho cirurgicamente os momentos para lá ir. Sem as sazonais avalanches turísticas, em dias luminosos, com o ar agreste a espreitar logo ao fim da tarde. A escolha foi, desta vez, especialmente feliz. Ao longo do tempo, tenho mantido com a Serra uma relação de um imenso respeito. Aliás, não digo isto por acaso: experimentem um dia ser apanhados no meio de uma trovoada no Covão da Ametade. Saberão então do que falo. Retomando a narrativa, gosto de ir descobrindo a Serra aos poucos, saboreando cada nova perspectiva como um triunfo, ou como uma dádiva de um santuário onde a naturalidade esmaga um artíficio que praticamente não existe. Ontem, descobri um troço rural alternativo à estrada principal, no vale glaciar do Zêzere. Para além de ter percorrido, pela segunda vez, o fantástico trilho da Rua dos Mercadores, junto ao Cântaro Magro.
Não resisti, mais uma vez, ao circo glaciário do Covão da Ametade. É um local mágico, onde o silêncio tem uma qualidade especial, cristalina. Uma espessura que nos recorda a nossa insignificância e, graças a ela, a nossa imensidão. O seu peso é tal que qualquer ruído ganha uma amplitude como em nenhum outro lado encontrei. Decidi que iria até lá acampar dois dias durante esta semana. E subir mais uma vez ao Covão Cimeiro. Mas sobretudo fazer o percurso deslumbrante até à Lagoa dos Cântaros - cuja forma é a de um coração - pelo caminho sinalizado com pedras sobrepostas. Chegado lá, só ouvirei decerto as rãs e o vento. E TUDO, mas mesmo tudo, parecerá um sortilégio distante em que é difícil acreditar.

A metamorfose


Quando certa manhã Gregório Gil despertou de um sonho agitado, viu que se transformara, durante o sono, numa horrível barata.
Percebi depois porquê. Tinha-me esquecido de comprar o SOL no dia anterior. "Corri" então ao quiosque da frente, à sucapa. O empregado, vencendo a repugnância, informou-me que o semanário tinha esgotado, num ápice, logo na manhã de sábado. Rastejei penosamente até casa, e ainda fui pregar um valente cagaço à vizinha boazona do lado. Vista de baixo, convenhamos, até valeu a pena. A custo, consegui ainda visitar o site radioso. Fiquei a saber que os 128 000 exemplares postos à venda se esgotaram em todo o país. E ainda por cima a edição não está disponível on line! Com medo que o gato me comesse, fui um bocado até ao esgoto, para ordenar as ideias. Para já, nunca mais acreditarei naqueles gajos que dizem que o sol, quando nasce, é para todos. Depois, estava já pronto para mandar mais umas achegas sobre os custos da interioridade, tipo "ninguém se lembra de nós", etc. Mas nem isso será possível, pois o jornal esgotou em todo o lado. Até na Madeira. Para já, vou-me conformar à clandestinidade durante uma semana. E juro-vos, caros humanos, que no próximo sábado, logo às 7 da manhã, vou irromper da sarjeta junto ao quiosque, com ar ameaçador, pôr toda a gente em debandada, pegar no jornal com as pinças e rastejar até à máquina do café do bar em frente. É mais do que óbvio que, nesse momento, voltarei ao meu aspecto normal. Mas a vingança será terrível...

Publicado no jornal "O Interior"

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Os netos de Estaline

Conheço os métodos do PCP desde a minha participação na vida associativa na Faculdade de Direito de Lisboa. Na altura, integrei uma lista não alinhada que venceu as eleições para a Associação Académica. No seguimento, elementos da JCP (na altura, como hoje, não suportava juventudes partidárias, qualquer que fosse a sua origem) tomaram a lista por dentro, subvertendo-a completamente. De tal forma que, sem esforço, aqueles elementos puseram a circular nos meios da AAL e nos corredores partidários que aquela Direcção era da sua cor. Houve quem reagisse e eu fi-lo com vigor, numa célebre reunião, onde se pedia a cabeça dos elementos ligados à JCP. No entanto, evidenciando uma capacidade de mobilização impressionante, os "submarinos" ganharam a votação por dois votos. E assim, ficaram a governar sozinhos, como é de calcular. Seguiu-se um período de demagogia impressionante, em que os lobos vestiram a pele de cordeiro, nunca assumindo a sua filiação política. Utilizando a célebre estratégia de tutelar a contestação e a irreverência vivida no interior do mundo universitário, instrumentalizando-a seu bel-prazer. Como é de prevêr, muitos cairam no engodo, servindo, sem saber, desígnios puramente partidários. E assim se conseguiram manter no poder durante 5 anos. Sobre os tais métodos, fiquei na altura devidamente esclarecido.
Ora, soube-se que este ano as FARC, uma organização terrorista colombiana - assim classificada pela União Europeia - estiveram presentes no Pavilhão Internacional da Festa do Avante, a convite do PCP. Quer este, quer os convidados vieram dizer que, na verdade, a presença das FARC foi perfeitamente "normal" e o repto foi dirigido ao jornal oficial daquela organização, a revista "Resistência". Got the idea? A iniciativa desencadeou uma onda de indignação, um abaixo-assinado na blogosfera e embaraçou o Governo.
Lembro que esta organização, em 2001, raptou Ingrid Betancourt (na foto) candidata à presidência colombiana. Situação que se mantém, apesar da pressão internacional para a sua libertação.
Para rematar, leia-se aqui a história exemplar de Anabela Fino, militante do PCP, "jornalista" e membro da Direcção do Sindicato dos Jornalistas. De resto, a luminária é também chefe de redacção do jornal "Avante". Onde escreve coisas como esta. É espantoso como uma organização cada vez mais próxima do "Ensaio sobre a cegueira" ainda pretende dar lições de democracia a toda a gente. É caso para dizer, só há duas categorias de pessoas que, haja o que houver, nunca mudam os seus métodos: antigos seminaristas e comunistas.

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Elogio da velhice

Desde há uns meses largos que me rendi incondicionalmente perante as crónicas de um senhor chamado António Sousa Homem. Foi neste post que tudo começou. Recentemente - a 9 de Setembro - saiu mais uma crónica na Revista Notícias Sábado e, como todas, aqui publicada. É dificílimo permanecer indiferente a este caudal proustiano, circulando pelas deambulações de Sterne. ASH convida-nos a caminhar pela horta (a tal horta do Cândido de Voltaire), participar em surpreendentes narrativas coligidas pela memória, à luz de um sereno e irónico epicurismo. A sua voz emerge sempre do texto, densifica-o como um milagre que nos torna cúmplices, fazendo-nos mergulhar no poço do tempo, numa viagem partilhada, jamais imposta. Sem que percamos de vista a sua genealogia e os aromas e cores do Moledo. Momentos de felicidade pura.
No referido texto, que convido os leitores a percorrer, pode ler-se: Ser velho é uma ocupação sincera; nada nos pode enganar, em nada podemos enganar os outros – vê-se pelo corpo. O Doutor Homem, meu pai, considerou que a travessia dos seus anos derradeiros devia fazer-se com a mesma velocidade a que viveu: moderada, mas a vários tempos. (...) A verdade é que nos habituamos a quase tudo. Questão de sobrevivência, como se sabe: com o tempo, e as suas ameaças, resta-nos aceitar a ordem das coisas, e a ordem das coisas manda que aceitemos a velhice como uma condição. Há uma ideia muito comum hoje em dia, certamente alimentada por muita má-fé e uma certa nostalgia da imortalidade, segundo a qual se deve perseguir o ideal da “eterna juventude”. Não é uma ideia generosa,(...) mas o princípio de que se deve promover a juventude é próprio de quem não reconhece a força do destino ou de quem se quer substituir a ele. (...) Muitas vezes penso que esse mundo, ao qual pertencem os velhos como eu, o mundo de há trinta, quarenta ou cinquenta anos, é uma vaga inutilidade rodeada de fantasmas que, mesmo sendo fantasmas, vão morrendo aos poucos. Mas reconhecer isso seria perder a única coisa que nos resta, a todos nós: o contentamento de saber que as coisas não ficam por aqui. (edit meu)

Passeando na blogosfera - 2

Fui espiolhar a blogosfera egitaniense. E não é que apanhei algumas surpresas, convenientemente graduadas pelo interesse que suscitaram! Passemos então à degustação, começando pelas entradas: "Sobre(o)viver", de Júlio Seabra. Aí se pode encontrar um texto intitulado "Guarda com horizontes". Um panegírico que fala por si:
Em menos de um ano de mandato de Joaquim Valente, os egitanienses já viram tornadas realidade algumas propostas assumidas sob palavra de honra, que este assumiu no seu manifesto autárquico, aquando da sua eleição a 9 de Outubro de 2005. (...) Joaquim Valente sabe da importância destas premissas, a nível interior e exterior, e tem apostado, com sucesso, na realização de acções culturais, recreativas e desportivas, que dão mais vida à cidade e ao concelho. (...) Veja-se aqui o resto.
Provadas que foram as entradas, alguns apontamentos:
1º O autor devia ser contratado para relações públicas da Câmara, ou, no mínimo, escrever os editoriais do seu Presidente nas habituais folhas de propaganda. De que é que está à espera, sr. Engenheiro?;
2º deve com certeza haver uma relação - tão óbvia que me escapa - entre o Mundialódromo (?), a Volta a Portugal, a animação de Agosto e a descida da taxa de desemprego ( segundo dados do Director do IEFP-Guarda, reproduzidos num jornal local e sem confirmação por outras fontes). Já para não falar na subida dos níveis de auto-estima, medidos à saída dos espectáculos das Festas da cidade por uma equipa de psicólogos amadores orientados pelo Prof. Karamba (o tal que anda aí a distribuir papelinhos nos pára-brisas, garantindo expeditivo remédio para um sem fim de maleitas, desde dor de corno a hemorróidas);
3º A tal animação deve ter sido um êxito, mas então não percebo como é que, num dia à noite que passei pela Praça Velha no momento em que estava ser projectado um filme na Mediateca, o público se resumia ao técnico e a duas funcionárias da Biblioteca;
4º Em qualquer tempo e lugar há sempre quem se dedique às prestimosas apologias da"situação". O wishful thinking é sempre o mesmo: vá lá, todos juntinhos em volta do chefe, ele está cheio de ideias para nós, ele vai salvar-nos, cerrem fileiras com "intervenção verbal e física", ou com "palavras optimistas e com novos horizontes". Sejamos claros: também penso que a Guarda necessita urgentemente de uma estratégia de desenvolvimento ambiciosa, de uma imagem. Não acredito é que estas realidades se atinjam com unanimismos, mas com consensos entre quem pensa de modo diferente. Se assim não fôr, corre-se o risco de as opções políticas a tomar serem permanentemente bloqueadas e que contributos críticos iconoclastas sejam catalogados como discurso pessimista. Se assim não fôr, está aberto o caminho ao carreirismo e ao grau zero da política.
Ainda nas entradas, apareceu um prato chamado "Do alto da serra". Trata-se de um blogue marcadamente pessoal e de inspiração territorial (não confundir com regional). Revelam-se os gostos do autor - gastronomia, viagens, acontecimentos populares, Tony Carreira, Festival Jovem da Canção Religiosa e, acima de tudo, Festas da Cidade. Neste ponto, o "guardador de rebanhos" revela uma irreprimivel satisfação pelo retorno das Festas ("o regresso às origens, ao que era bom") salientando que "o povo anda contente" por aqueles dias. Aproveita então para lançar uma farpa assassina ao TMG, lembrando o "buraco que cavou em ano e meio". Adivinhando-se a juventude do Autor, e até algum esclarecimento, é arrepiante observar a fixação pelo gosto mediano, para não dizer pimba.

(continua)

Ver anterior

terça-feira, 12 de setembro de 2006

Vai um chouriçinho?

Mário Soares e Pacheco Pereira estiveram frente a frente na emissão de ontem do Prós e Contras na RTP 1 sobre os acontecimentos do 11 de Setembro.
Os espectadores puderam assistir a um fantástico debate entre um fantasma da guerra fria e um pensador contemporâneo, entre um sub-gaulês anti-americano e um adepto da liberdade na tradição de Tocqueville, entre um coleccionador de slogans jacobinos e um investigador com um pensamento notoriamente estruturado, entre uma glória senatorial da república prontinho a negociar com os terroristas e alguém que já percebeu desde a primeira hora que estes terroristas só negoceiam cadáveres e medo, entre um campeão do politicamente correcto que pretende transformar as vítimas em carrascos e os carrascos em vítimas e alguém que sabe bem como o fundamentalismo nasce do medo de ser livre e do ódio a quem o consegue ser.
Pela minha parte, fiquei definitivamente esclarecido sobre o delírio irresponsável e suicidário da esquerda quando encara estes temas. Sou defensor intransigente do laicismo, como única forma de organização política em que as convicções religiosas de todos os indivíduos - ou a sua ausência - podem coexistir, mas nenhuma é imposta. Por isso, este estranho fenómeno de incapacidade de interiorização da perda de que a esquerda padece, sublimado num anti-americanismo para lá de qualquer racionalidade, é algo espantoso. Ora, sendo o Islamismo, tal como é interpretado pelos teocratas, a negação daquele princípio secular básico, escapa-me completamente a simpatia com que a esquerda encara uns milhares de fanáticos em vias de possuirem armas nucleares, sem sequer imaginar que, se os terroristas impusessem a sua vontade, os relógios atrasariam, pelo menos, 800 anos.

Para abrilhantar a festa, comparaceu o extraordinário Yossuf Adamgy - o tal que em tempos defendeu a lapidação de Amina Lawal - afirmando a pés juntos que o 11 de Setembro não existiu. Ver aqui o desenvolvimento. O delirante "pensamento" deste artolas pode de resto ser saboreado nesta citação da sua obra "A Mulher no Islão". Imaginem um meio termo entre os apedrejadores da mulher adúltera no filme "A Vida de Brian" dos Monthy Python e o Diácono Remédios. Aí têm o homem. É caso para dizer: ó pá, vai um chouriçinho?

Nota: nestas alturas ganham peso as teses da conspiração, inspiradas no Professor Zandinga e no "Código da Vinci". Algo entre os resumos do Livro de S. Cipriano e as tendas da feira de Vale de Perdizes. Basta ver o documentário recentemente passado sobre o assunto na RTP 2 e toda a dúvida cessa. Há gente para tudo. E até se ganha bom dinheiro e notoriedade com isso. Portanto, recomenda-se a leitura da divertidíssima proclamação das "Seis teses negacionistas sobre o 11 de Setembro", no "Corta-fitas".

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Passeando na blogosfera - 1

Com os blogues "institucionais" mantenho uma relação puramente instrumental. Retenho a informação que me interessa, sabendo que à partida é credível. E pouco mais. Há outros que são como pão para a boca, como as crónicas de António Sousa Homem, o Quid Rides (o rigor formal extremo ao serviço dos conteúdos), o incontornável Abrupto, e quase todos os que estão linkados ao lado. Mas são os "confessionais", em versão minimalista - de que o Estado Civil, do Pedro Mexia é o modelo - aqueles em que as infinitas possibilidades da blogosfera mais se notam. Para o melhor e para o pior. Já aqui expliquei porquê. Ontem cruzei-me com seis blogues femininos - ou escritos por mulheres, como quiserem - de se lhes tirar o chapéu. Uma verdadeira pedrada no charco. Concretizou-se aquilo de que já suspeitava desde os 13 anos, quando ouvia as conversas secretas das raparigas hospedadas em casa da minha avó, ignorando-me completamente, na suposição de que era um puto inofensivo: em comparação com o mulherio, nós homens somos autênticos meninos de coro. Em verdade vos digo. Quando o Nietzsche, numa das suas conhecidas provocações, dizia que uma mulher calada e vestida de preto até parece inteligente, nem imaginava a caldeirada onde se estava a meter. Mas sobretudo nunca imaginou que um dia haveria blogues...
Tomem nota: Tristes Tópicos; Batons, tampões e saltos altos; O Mundo Perfeito, (onde este post é de cair para trás) Sociedade Anónima; Rititi e Elas Vêm aos Pares
Bom, depois de uma leitura apurada, até fiquei com falta de ar. De tal modo que tive que ir até à piscina nadar um bocado para espairecer. Ufa!

Notas: para os mais sensíveis, recomendo que tenham à mão a lista telefónica na parte das linhas de apoio SOS;
para meninas bem comportadas, recomendo três Avé marias e 10 Pai nossos.

Falsos Ídolos - 2

Deixo aos comentadores e politólogos os balanços destes últimos cinco anos de globalização do medo. A propósito de qualquer fundamentalismo, mas pensando sobretudo no islâmico e na escalada do terror associada, transcrevo as palavras absolutamente apropriadas de Arno Gruen, autor já aqui referido:

Quando as mudanças sociais e económicas destroem concepções valorativas antigas e, por si só, contribuem para a penúria e o empobrecimento generalizado, o ódio acumulado tem de se descarregar. E se, então, aqueles que estão libertos de empecilhos morais interiores, concedem a permissão para destruir e conquistar em nome de uma missão sagrada, os últimos resquícios de contradição interior entre o amor e o ódio são sacudidos. Com isso, o Homem renuncia ao seu Eu próprio; permite a fusão deste com um inebriante sentimento de vingança que se disfarça com o próprio amor.(...)
Essa foi uma das realidades de que o fascismo se aproveitou. Dirigiu-se directamente ao desejo de vingança do Homem e apresentou-o, sem contradição anterior, como sagrado. O que outorga o poder a todos os líderes não é tanto o facto deles nos prometerem uma vida melhor como, sobretudo, o de nos libertarem da luta interior, da contradição entre o amor e o ódio. Fornecem-nos inimigos para matarmos e ainda nos amarmos por isso.
Se as pessoas se alhearem da sua cultura, porque esta já não lhes permite definirem o seu Eu "oficialmente", a "completude" pessoal passa a poder mostrar-se apenas quando se manifesta aquilo de que esse Eu transborda: o ódio. Então como hoje, os seus líderes nunca por nunca se referem à razão primeira de um novo sentimento de identidade - nem à raiva assassina que daí decorre. Todavia, nem as vítimas da sua raiva destruidora nem a sujeição a novos opressores resolveram a sua situação. A procura é cega porque o que se procura é o caminho por onde escapar ao Eu verdadeiro. A fuga à ocupação com as causas do mal-estar e às dores que isso acarreta implica causar dores a outros.

Falsos Ídolos, 1997, Paz Editora, pg. 34

domingo, 10 de setembro de 2006

11.09.2001: o dia que mudou o mundo











Ligações perigosas

"Luís Filipe Vieira (LFV) - Eu não quero entrar mais em esquemas nem falar muito...
(...)
Valentim Loureiro (VL) - Eu penso que ou o Lucílio... o António Costa, esse Costa não lhe dá... não lhe dá nenhuma garantia?
LFV - A mim?! F.., o António Costa? F... Isso é tudo Porto!
VL - Exacto, pronto! (...) E o Lucílio?
LPV - Não, não me dá garantia nenhuma o Lucílio!
VL - E o Duarte?
LPV - Nada, zero! Ninguém me dá!... Ouça lá, eu, neste momento, é tudo para nos roubar! Ó pá, mas é evidente! Mas isso é demasiado evidente, carago! Ó major, eu não quero nem me tenho chateado com isto, porque eu estou a fazer isto por outro lado.
(...)
VL - Talvez o Lucílio, pá!
LPV - Não, não quero Lucílio nenhum!
(...)
VL - E o Proença?
LPV - O Proença também não quero! Ouça, é tudo para nos f...!
VL - E o João Ferreira?
LPV - O João... Pode vir o João. Agora o que eu queria... (...) Disseram que era o Paulo Paraty o árbitro... O Paulo Paraty! Agora, dizem-me a mim, que não tenho preferência de ninguém (...) à última hora, vêm-me dizer que já não pode ser o Paulo Paraty, por causa do Belenenses.

Pinto de Sousa - A única coisa que eu tinha dito ao João Rodrigues é o seguinte... É pá, há quinze [dias] ou três semanas, ele perguntou-me: "Quem é que você está a pensar para a Taça?"... Eu disse: "Estou a pensar no Paraty"...
VL - Bem, o gajo está f... (...) O Paraty então não consegues, não é?
PS - O Paraty não pode ser. (...) Até para os árbitros restantes, diziam assim: "É pá, que diabo, este gajo tem tantos internacionais e não tem mais nenhum livre, pá?!".
(...)
VL - Eu nem dá para falar muito ao telefone, que ele começa para lá a desancar. (...) Mas qual é o gajo que o Porto não quer?! O Porto quere-os todos, pá! Qualquer um lhe serve!
PS - É... Por acaso é verdade...
VL - O Porto quer lá saber disso!
PS - Se é o Lucílio... Se fosse o Lucílio, era o Lucílio, se fosse o António Costa, era o António Costa...
VL - Ao Porto qualquer um serve!"

sábado, 9 de setembro de 2006

A penny for your thoughts, 2001, Susan Aldworth

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

A selva - 2

A vergonha no caso Gisberta ainda não acabou. Recentemente, foi noticiado o afastamento de duas técnicas das oficinas de S. José, onde os jovens anjinhos eram apascentados, cuja venalidade foi terem feito (e bem) o seu trabalho. Agora lê-se no "Portugal dos Pequeninos" que o menor a quem foi imposta a medida de internamento de 13 meses em regime fechado foi mandado para casa, por ordem do Tribunal da Relação do Porto. Com o aval de um douto relatório da Segurança Social, supõe-se. Na calada da silly season, a Justiça continua a demonstrar porque é a maior vergonha nacional, a seguir aos dirigentes desportivos.

Supa Sista




Em 2001 Ursula Rucker estreou-se no panorama musical com «Supa Sista», disco onde aparecia com o apoio de colectivos como Jazzanova e 4Hero e mostrava já como é uma personalidade bastante crítica em relação a tudo o que a rodeia. Dois anos mais tarde mostrou-nos «Silver or Lead», onde Ursula Rucker nos continuou a presentear com a sua poesia interventiva, embuída em sonoridades hip hop, downbeat e electrónicas.
Este ano a cantora e poetisa norte-americana volta ao ataque com «Ma’at Mama». Mantendo um registo de spokenwords com traços comuns a Laurie Anderson, a figura da mulher é algo a que Ursula Rucker dá especial destaque, referindo com a sua crueza e frontalidade já conhecidas, o papel da mulher nos dias de hoje e a constante exploração sexual que se faz em torno da sua figura.
Há já algum tempo que o seu trabalho despertou o meu interesse. Ursula Rucker é algo de diferente, um hip-hop muito particular, muito especial, que alia a tradição contestária desta cultura ("Hip Hop is not a music category, it's a culture") com preocupações feministas fundamentais, como a opressão do patriarcado, violência doméstica, a alteridade, a experiência da assimetria e da diferença entre os sexos. Ursula é poeta e joga com o poder da sua palavra e da sua voz muito clara. Nascida em Philadelphia, destacou-se com o primeiro álbum, Supa Sista. Alimentada por todo um imaginário Feminista + Black Power, canta a opressão. Denunciando discriminações várias, num estilo musical muito particular e muito bem concebido, assume-se como uma songwriter de intervenção. Ursula Rucker canta a partir do seu standpoint feminista, dando alento à luta, da qual não se exime e à qual alude várias vezes, como na referência ao célebre Ain't I a Woman de Sojourner Truth, recuperado por Bell Hooks e que deu forma e conteúdo ao feminismo negro e à análise experiências de dupla e tripla discriminação - género, etnicidade e classe. Aconselho vivamente o Silver or Lead, onde até a white trash lady tem lugar.
Em «Ma’at Mama» Ursula Rucker já não se faz acompanhar de vários músicos célebres que partilham consigo esta mescla de sonoridades com suporte no hip hop, mas que voa até ao jazz (muito presente neste disco), blues, soul ou funk, mas desta vez decidiu contar apenas com a ajuda de Anthony Tidd (membro dos The Roots). No entanto, este facto não provocou terramotos na música de Úrsula Rucker, pois esses estão sim presentes em cada uma das palavras que esta cantora vai cantando ou declamando, capazes de abalar o espírito mais dormente.
A ouvir com especial atenção: Rant Hat in Here; I Ain't Yo Punk Ass Bitch; Children's Poem.

Imagens de Portugal romântico - 7

Vila do Conde
Torres Vedras
Sintra, Penha

Cântico

Obscurece-me a vista:

a minha força são dois ocultos
dardos diamantinos,

confundo o trovão longínquo
com o respirar da casa paterna,
nós cegos numa trança de músculos,

e na noite não brilham mais
as asas do meu dorso:

na festa, como uma vela, me consumi.

se ao crepúsculo apanharem a minha derretida cera,
esta página dir-vos-á o segredo do choro e do orgulho,
como
ao repartir a última porção de felicidade
morremos em levitação
e no abrigo de um tecto ao acaso
nos acendemos póstumos
como uma palavra.

in Labirintos

segunda-feira, 4 de setembro de 2006