quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sobre as praxes

No "Água Lisa", de que sou leitor quase-diário, João Tunes acaba de publicar um comentário sobre as praxes académicas, partindo de um texto que aqui editei. Fá-lo com bastante acuidade, pelo que o debate poderá ganhar com isso. Devo dizer, antes de mais, que embora perfilhe a sua grelha analítica, não sigo algumas das conclusões a que chegou.
1. É claro que não existe um "direito a praxar", da mesma forma que não existe um "direito a ser praxado". Nem será defensável tolerar agressões e humilhações várias, só porque se filiam numa tradição, seja isso o que for. Outra coisa são os costumes versus direito positivo. Aposto que orientamos a nossa vida numa ratio de 80% para os primeiros e 20% pelo segundo. Muitas vezes, o direito funciona como uma caução para o costume que acolhe e um index para o que ostraciza. E a balança está deveras inclinada para o primeiro prato. É por isso que o "direito por tradição" a que se refere, só o é verificando-se cumulativamente dois pressupostos: um amplo consenso social que o legitime; estando em causa bens juridicamente tutelados, a linha divisória passa pelo que é disponível, ficando de fora o que não é. Só no primeiro caso aceitaria a tradição. O que vale para qualquer uma, mesmo que o pensamento politicamente correcto lhes tente lançar o opróbrio: as touradas de morte, a matança do porco, os rituais nas sociedades secretas e as praxes em geral.
2. Não é igualmente razoável, como afirma, incluir no "contrato académico" de que fala qualquer estatuto determinado pela estranheza de quem entra ou pela prepotência de quem "já está". Mas isso nada tem a ver com paternalismo. O mais natural para quem chega a uma instituição, a um novo local de trabalho, é procurar a informação que lhe possa ser útil. Nada melhor do que os seus pares para lha transmitirem. Quer pelo exemplo, por uma reconhecível consciência ética, pela vastidão do conhecimento, pela coragem. Ou pelo seu oposto. Caberá ao recém-chegado validar as suas referências. Facultativas e não impostas, sublinhe-se. A Universidade é o local por excelência onde se fixam as coordenadas políticas, éticas e ideológicas que serão transportadas para o resto da vida. Minimizar esse encontro, possibilitado pela sobriedade, pela generosidade e por uma disponibilidade ímpar, é um erro que qualquer sociedade pagará caro. É legitimar o "cada um por si", o individualismo feroz, a anulação do logos. Daí falar em "crescimento".
3. De acordo, a "humilhação" e a "integração" só pelo praxado são percebidas como tal. Mas tomar a ideia até ao limite é elevar a simples subjectividade até ao absurdo. Há um carácter lúdico na praxe que não é de desprezar e que, quer o autor queira ou não, é comum aos participantes voluntários num mesmo espectáculo. Neste caso, o erzatz paródico da verdadeira violência, da verdadeira humilhação. É que, quando falo em integração, não é no sentido sociológico, mas num outro, que transporta para outra esfera. Por um lado, existem tipos de praxes, estas sim realmente bárbaras, associadas a universos fechados, e de que raramente há notícia: prisionais, militares, etc. O que as distingue da praxe académica, tal como eu a entendo, é que, para além de serem barbárie pura, não possuem o que esta tem como marca central: o seu lado teatral, a sua faceta catártica e subversiva. Organizada como um ritual em que o cómico nega a sacralidade do próprio ritual, que promove a sua lenta dissolução através da sátira, que lembra a universalidade do “humano demasiado humano”, que brinca, que quer a derrisão, que cria a dúvida em relação a um conhecimento que se vai adquirir para servir os verdadeiros praxantes.
4. Por último, cabe discordar de João Tunes, quando afirma que "nenhum cidadão tem o direito a abdicar dos seus direitos de cidadania, submetendo-se a poderes não legítimos." Neste caso, circunscreve a praxe a uma "violência não autorizada", sendo que participar nela "é uma conivência com o não permitido". Presumo que o autor parte do princípio, tal como eu, de que o Estado tem o monopólio da violência, em sede penal, e no respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. Vamos então por partes. Se for negada aos cidadãos a possibilidade de abdicarem dos seus direitos, então deixaria de haver no Código Penal bens jurídicos disponíveis, incluindo a figura da exclusão da ilicitude no caso de ofensas corporais com consentimento expresso da vítima, fora das situações que envolvem tratamento médico. A conciência e o livre arbítrio preexistem em relação ao direito positivo. Os direitos de cidadania são essencialmente negativos: posso exigir, erga omnes, o seu reconhecimento e o seu respeito. Mas eles existem sobretudo para que possa exercer a minha liberdade e lutar pela minha dignidade. Por isso, não estarei nunca a abdicar deles se me submeter a uma autoridade que, não sendo legítima para uns, é legítima para mim. Se assim não fosse, ficaria arredado o direito, esse sim irrenunciável, à desobediência civil, à insurreição, ao não cumprimento de uma lei injusta, independentemente da sua origem. Por outro lado, a praxe académica é um costume. Concorde-se ou não com ela, associando-o estritamente ou não a uma prática violenta. Aferir ou não da sua legitimidade em função de juízos de valor não chega. Outra coisa é, como faço, afirmar que ela reproduz status sociais e dá livre curso a comportamentos psicóticos. Ou que se limita ao macaquear indigente de maus filmes de terror. Para tudo o resto, existem os tribunais. Rematando, o autor fornece o exemplo ad absurdum da escravatura voluntária como corolário dos seus argumentos. Devo dizer que, no caso, havendo uma manifestação de vontade dos intervenientes nesse sentido, livre de qualquer coação, consciente e expressa, na ausência de qualquer ilícito associado, nada há que o proíba. Poderemos naturalmente ter uma opinião sobre o assunto, mas não julgar quem o fizesse. Qualquer cidadão pode renunciar àquilo de que, no domínio da sua esfera jurídica, pode dispor. Até mesmo à sua liberdade. Da mesma forma que é o único decisor acerca do seu corpo, ou das substâncias que entender consumir. Por maioria de razão, decidir ser ou não praxado, quando isso é possível, advém de uma convicção imperscrutável e eminentemente pessoal.

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