Está a seguir o processo? O Mestre está a começar a escrever; quando acaba de fazer o primeiro rascunho da frase nas costas, a cama da de algodão começa a rolar e, lentamente, vai virando o corpo para abrir espaço ao Ancinho para escrever. Entretanto a parte lacerada que estava a ser escrita, fica em contacto com o algodão, que foi especialmente concebido para estancar a hemorragia, e assim fica pronta para receber uma nova passagem mais profunda das letras. Então estes dentes na extremidade do Ancinho, à medida que o corpo vai sendo virado, retiram o algodão das feridas e projectam-no para a vala e o Ancinho entra novamente em acção. E lá vai cravando cada vez mais fundo as letras, ininterruptamente, durante as próximas doze horas.
Um dos aspectos mais importantes da obra de Franz Kafka (1883-1924) é a sua crítica implacável dos fundamentos do Estado moderno, à mecanização da vida contemporânea e ao surgimento de uma elite administrativa altamente burocrática, hierarquizada e despótica. É indubitável que a crítica kafkiana de uma modernidade opressiva e desumana se tenha constituído, até hoje, na questão que mais interessou os estudiosos da obra do escritor checo.
Na Colónia Penal é talvez o texto de Kafka em que o absurdo da autoridade é apresentado da maneira mais brutal e desumana. Um soldado detido numa colónia francesa é condenado à morte por indisciplina. A sua sentença é executada por uma máquina de tortura que, por intermédio de um sistema de agulhas, escreve repetidas vezes no seu corpo a seguinte inscrição: “Honra os teus superiores”. Todavia, o personagem principal deste pesadelo não é nem o Visitante, que é convidado para assistir ao suplício, nem tampouco o Oficial, o Condenado ou mesmo o Comandante. O protagonista é, sem dúvida, a Máquina. Neste contexto, a autoridade atinge o culminar da abstracção: ela já não é mais fruto da acção humana, mas de uma instância mecânica que se emancipou, estabelecendo o seu primado. “Ao longo da explicação do Oficial, a Máquina aparece progressivamente como sendo um fim em si”, descreve Lowy. O prisioneiro é oferecido à Máquina, para que esta possa levar a cabo a sua obra-prima. O próprio Oficial não passa de um servidor da máquina, sacrificando-se, no final do texto, a “esse insaciável Moloch”. Para Lowy, a autoridade aparece no conto “na sua vertente mais alienada, mais reificada, enquanto mecânica ‘objectiva’: fetiche produzido pelos homens, acaba por os subjugar, dominar e destruir”. Nesta parábola onde a culpa paira à procura de um culpado, (W. Benjamin), Kafka faz jus ao seu estilo sóbrio, sereno e desconcertante, para exprimir a sua profunda desconfiança em relação à sociedade industrial. Que desumaniza o indivíduo, mecaniza a sua existência, reduz os espaços da sua interioridade e dissolve a condição humana numa massa de reflexos indistintos da própria máquina. O texto, escrito pouco antes da I Guerra Mundial, ainda que publicado após o seu fim, é uma advertência macabra sobre as consequências, na estrutura social e nas relações de poder por ela entretecidas, de um processo de industrialização e mecanização acelerado, que diviniza a máquina e o progresso em detrimento das aspirações tradicionais do homem. Eficiência, eis a nova palavra de ordem, que substitui os anseios por liberdade e justiça. A conclusão do conto é a afirmação cabal do carácter negativo da crítica de Kafka, uma afirmação trágica da impotência do homem diante dos novos monstros gerados pelo sonho da razão.
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