quarta-feira, 23 de junho de 2010

Na morte de Saramago

José Saramago era um escritor do meu país. Muitos portugueses o leram e ouviram cuidadosamente. Mas Saramago rebelou-se contra o país em que eu e ele nascemos. Achou que o país Portugal era uma parte de um país maior, em que a Espanha era a outra parte. Mas eu e ele nascemos num outro país de que todas as partes são parte integrante: a Morte. Somos todos cidadãos desse Estado, que sempre cobra o seu imposto.
Saramago não era um homem da «Paz e Amor». Esse é um outro país que muitos visitam, e aonde todos querem voltar, sem ter que atravessar a fronteira. A sua última novela chamou-se «Caim». Já muito se disse sobre ela. Caim vem do verbo hebraico «qanah», ou seja, adquirir, obter. Saramago obteve muita coisa na vida, nomeadamente fama, glória, reconhecimento e foi o primeiro Prémio Nobel da Literatura do meu país, que vai de Portugal ao Brasil, de Moçambique a Timor, e de Cabinda a Macau. Saramago não recebeu só isso: como muitos dos seus colegas, tal qual Camões, Fernando Pessoa ou Camilo Castelo Branco, ele recebeu o salário da Inveja, do desprezo, da perseguição. Ao contrário deles, venceu grande parte dessas feras e pôde viver em paz, ao lado de alguém que o amava. Esse foi o seu verdadeiro prémio Nobel e graças a Deus que há muitos premiados desse Nobel, pelo Mundo fora.
Mas Saramago preparava um outro romance, esse certamente bem interessante, em que se interrogava porque é que as fábricas de armamento nunca têm greves. Embora essa suposição não seja inteiramente correcta, a verdade é que Saramago vinha confrontar-nos com esse outro cais de chegada ao Estado acima citado, do qual, ele e eu somos súbditos: a Morte. A indústria da Morte, ou seja a produção e criação da destruição e do aniquilamento. É como se a Humanidade, possuída dum repente de mau génio, de menino malcriado, preferisse deitar as bolachas de chocolate ao chão, pisá-las, borrar-se toda com elas, em vez de as comer. Até o mau jeito e a perversão constituírem uma segunda natureza. E o espelho enfeitiçado nos diz, todos os dias, que o feio é belo e que o mal é livre.
Por isso, José Saramago escolhera esse apelido de uma erva amarga a qual cresce nas montanhas portuguesas. Saramago tinha, desde sempre, um travo amargo na boca e – ao contrário de muita gente – decidiu reter esse travo e expeli-lo, em vez de o engolir. Outras pessoas, amarguradas pela mesma persistência do travo amargo, reconheceram-se comensais desse prato amargo que nos obrigaram a comer, ouvindo «tem de ser» ou «sempre foi assim», «come e cala» e, com ele, Saramago, passaram a virar a mesa ao contrário, a cada sopa de amargor servida aos pobres.
Esperemos por outros tempos que virão, em que não nos teremos que levantar do chão (relembrando uma bonita novela de José Saramago) como quem contraria a força da gravidade, a mesma força da gravidade de Newton, que em vez de fazer tudo cair, faz os planetas e as estrelas rodarem em torno uns dos outros, numa harmonia que nos dá vontade de cantar.
Tempos melhores, onde pessoas como José Saramago não tenham que lutar contra tantas adversidades para verem reconhecido o seu valor, e tenham outros obstáculos além da inveja e da má-consciência. A vaidade é um triste pecado, sobretudo para aqueles que se marimbam tanto, que nem piedade têm, e estouram como bombas de Carnaval quando a impiedade lhes bate à porta. Mas o rancor é como um cão tresloucado que ladra contra o próprio eco. Entre a vaidade e o rancor há uma outra cegueira que Saramago não abordou no seu Tratado.
Camões morreu dizendo (e sabe lá Deus o que ele fez para o conseguir) que «morria na Pátria e morria com ela».
Saramago morreu fora da Pátria que eu sei que ele respeitava, lá no fundo do coração. Houve Portugueses irmãos de espanhóis, amores felizes sobre a fronteira ibérica, caídos portugueses pelas causas de Espanha e caídos espanhóis pelas causas de Portugal. Mas cada Nação tem a sua cruz, cruz de pedra que floresce em rosas quando a Primavera chega, como dois irmãos deserdados que partem, um para Poente, outro para Nascente.
Espero que a morte de Saramago nos faça a todos, profundamente, pedir-lhe desculpa, por não termos tido a coragem de construir para ele, e para outros como ele, um país sem fronteiras onde não tenhamos de nos levantar do chão, a cada manhã.
André

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