domingo, 14 de janeiro de 2007

Raskol

Dia 22 de Dezembro de 1849. Na praça Semenov, em S. Petersburgo, os pés dos transeuntes enterravam-se na neve. Vários regimentos guardavam a praça, entre os quais a Guarda Imperial do Regimento de Infantaria de Moscovo, pois um dos homens condenados à morte nesse dia aí fora oficial. O pano negro que recobria o cadafalso salpicava-se dos flocos brancos. Sobre ele esperavam 21 homens, 16 dos quais entregues ao carrasco. Entre estes contava-se Dostoievski.
Voltemos atrás. O grande escritor havia nascido em 1821, numa altura em que o ímpeto reformista do czar Alexandre II, revelado quarenta anos depois, aproximando a Santa Rússia da Europa, era uma simples quimera que se pagava com a vida. Falamos de um mundo em que a prosperidade se media pelo número de “almas”, servos em regime de escravidão, ao dispor de uma aristocracia burocratizada e domesticada por um czar paternalista e sobre-humano. À boa maneira asiática, a sociedade russa daquele tempo estava rigorosamente estratificada: nobreza, clero, negociantes, cidadãos, camponeses e mais alguns grupos intermédios. A classe culta compunha-se de nobres, oficiais e funcionários públicos. Desde o tempo de Pedro o Grande cada nobre era compelido a “servir”. Tal “serviço”, porém, era de duração curta: permitia-se que se resignasse o cargo a favor de indivíduo de classe mais baixa e se levasse o resto da vida liberto de ambições públicas. Os oficiais dividiam-se em 14 patentes e cada nobre poder-se-ia inscrever em 6 registos!
Em Janeiro de 1838, Dostoievski ingressou na escola militar de engenharia de Petersburgo. Aí encontrou algumas das afinidades e círculos de influência que haveriam de o perseguir para o resto da sua vida. A publicação de Pobre Gente tinha-lhe garantido a entrada nos meios literários da capital. Entre eles, encontrava-se o círculo conspiratório animado por Petrashevski. Que houvera criado um grupo de seguidores, inspirados por Fourier, dispostos a introduzir reformas liberais na Rússia. O movimento chamava-se A Primavera dos Povos. Numa dessas reuniões, leu uma carta de Belinski a Gogol, refutando as suas afirmações monárquicas e religiosas. Tal leitura e a participação no ambiente conspiratório do grupo custaram-lhe a condenação à morte.
Encontramos o escritor novamente em frente do pelotão de fuzilamento. Sabe-se que, no último momento, chegou um emissário pessoal do czar. Com instruções para a sua e as outras penas serem comutadas entre o degredo perpétuo para a Sibéria, até uns "simples" quatro anos num centro de detenção naquelas gélidas paragens. Foi este o no seu caso.
Desse tempo em Omsk, nasceu uma das obras-primas da literatura, justamente intitulada Recordações da Casa dos Mortos: o pan-eslavismo cristão e uma cruel análise psicológica, lado a lado numa fascinante “reportagem” jornalística, mas sobretudo literária.
Ao longo da sua obra, para acentuar as diferenças entre as suas personagens, o escritor optou sempre por uma completa semelhança. Como se pretendesse demonstrar que a maior diferença existe, não entre duas cores diferentes, mas entre duas tonalidades muito aproximadas da mesma cor. Por exemplo, no julgamento do parricida, em
Os Irmãos Karamazov o promotor não acredita que o réu – Dmitri – seja culpado, ao passo que o advogado do acusado se convence profundamente do contrário. O leitor não duvida que a defesa triunfará, mas o Tribunal reconhece o réu culpado. Nesta caricatura das relações perversas entre as instituições públicas e a verdadeira natureza humana, Dostoievski, inconscientemente, confessa-se um anarquista, resguardando, sob as vestes de Deus e do Czar, a sua própria anarquia.

Publicado no jornal "O Interior"

PS: Sobre o romancista, ver também o que aqui e aqui neste blogue já se escreveu.

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